31 de jan. de 2010

Solos Trágicos

Foto: Betânia Dutra

F5 teatral

Outro dia, tive que excluir um amigo do twitter. Não. Ele não é do tipo chato, quem posta cinco tweets por minuto informando aos seus mil followers notícias chocantes sobre o alface que cai do seu sanduíche ou impressionantes apontamentos sobre uma letra que digitou errado no MSN. Não é esse o caso. Trata-se de um amigo que expressa no miniblog do momento a ânsia por mostrar ao mundo que seus vinte anos valeram a ele, até agora, mais leituras e vivências do que a muita gente de quarenta. A cada novo post, havia uma informação mais nova, um hiperlink mais interessante, uma expressão que eu nunca tinha ouvido falar. Resultado: ao efessincar o browser, eu acabava desviando minha atenção dos estudos para saber sobre o quê o menino estava dizendo. E lá ia eu pesquisar alucinadamente até compreender a mensagem coolest do minuto. Deusmelivre da não atualização!

Há tempos, me intrigava essa coisa nervosa do teatro pós-dramático. É fácil compreender o que motiva o espectador/leitor de uma história hierarquizada: ele quer saber o que vai acontecer no final, uma vez que tudo se encaminha pra isso. E não desiste do objeto enquanto não descobrir que final é esse. Então, só ontem eu entendi o frenesi de um texto em que as informações não convergem, os personagens não se unem, os elementos narrativos não são interligados e a lógica é a ausência de lógica, a coerência vive independente da coesão. Na platéia de “Solos Trágicos”, novo espetáculo do Depósito de Teatro, eu percebi que, a cada efessincada, uma multidão de hiperlinks surge com novos sentidos na fruição dessa assinatura de Roberto Oliveira. E você não descansa enquanto não dominar todos eles, ávido por não ser/estar ultrapassado.

Não há dúvida: Porto Alegre é uma cidade bem servida de diretores teatrais. Mas, de fato, muitos precisam comer bem mais feijão para se aproximar de quem também se chama Modesto Fortuna. E, para que não se pense que o calor da hora ainda não passou e se reflete nessa consideração, explico: noto que, quando vou ver uma peça do diretor X, Y ou Z eu já sei o que vou ver. Já sei que vai ser uma peça tradicionalista, já sei que vai ser um espetáculo sem cenário, já sei que vai ter muitos vídeos, já sei que os atores vão gritar muito, já sei que vai ser uma produção muito cuidadosa, etc, etc... Como poucos, no entanto, Roberto Oliveira me dá duas certezas: já sei que vou ver algo que o diretor, até então, nunca fez e que, para ele, é um desafio. E tenho a certeza de que vou ver algo bom. “Solos Trágicos” é o exemplo da vez.

Fiz questão de não ler o blog da peça que, agora sei, mais funciona como o caderno de direção de Oliveira, o que é um material de consulta excelente! Assim, sabia por amigos que se tratava de um espetáculo em que vários trechos de tragédias foram picoteados e colocados fora de seus contextos em forma de monólogos na boca de oito atores. Para me prevenir da chatice conferentória, não me interessei em saber que tragédias eram essas, que personagens eram esses, que textos seriam utilizados à guisa de outros. Na platéia, então, aqui e ali reconhecia uma Ofélia, uma Antígona, um Hamlet, bibibi, mas nunca realmente tinha a total certeza disso. Invocação: quem são esses personagens? Que texto é esse? Que história é essa? Que autor é esse?

Então, vem o coro e outros elementos surgem, muitas vezes, em direções opostas ao texto dito. O texto dito é só um texto pronunciado. Completamente descontextualizado, unido a outros textos e de outras partes da mesma história, e, ainda, acompanhado de personagens de outros tempos e luzes com outras propostas e uma trilha proposital (os músicos) e não proposital (os sons do ambiente) motivadora, sua força semântica se perde totalmente. Dele, das palavras ditas, fica quase sempre apenas o som. Convocação: O que esses personagens têm a ver com isso? O que esse ator está dizendo? Por que ele está assim vestido? Que barulho é esse? Olha aquela luz lá!!! Meldeuz, que imagem linda!

Então, olho para o público, cochicho com um amigo que me acompanha nessa assistência e que não sabe absoltamente nada de Shakespeare, Racine, Eurípides e Nelson Rodrigues. Os rostos de quem recebe a peça me dizem muito: poucos parecem entender o que estão vendo, mas ninguém tira os olhos da cena em nenhum momento. Então, me lembro de um relato da estréia de Show Boat, um musical de 1927. Quando o espetáculo produzido por Florenze Ziegfield, o maior produtor da Broadway antes da depressão americana, termina os aplausos vêm mornos. Entristecido, Ziegfield vai pra sua casa consciente de que, pela primeira vez em sua carreira, produziu um fracasso. Um espetáculo teatral como aquele nunca tinha sido produzido: caro, grandioso e inovador: números de vaudevilles, música popular, figurinos modernos, dança contemporânea (anos 20). Só no dia seguinte, o produtor entendeu que os aplausos não eram de decepção: eram de êxtase em excesso. Ninguém estava acostumado com aquilo, não sabiam como reagir, não tinham meios de se expressar. O sucesso foi absoluto e repetido e repetível ainda hoje a cada musical que estréia no planeta. Em “Solos Trágicos”, me senti na platéia de Show Boat: você sabe que tem muita coisa ali, você sente que é algo muito bom, mas você não sabe o que é, você não domina, é alheio a você. Que raiva!

A motivação desse novo espetáculo do “Depósito de Teatro”, um dos grupos mais importantes da história do teatro gaúcho, é o constrangimento. Roberto Oliveira e sua equipe de produção desorganizam o público, nos deixam atônitos com tamanha carga sígnica, expressam na dramaturgia encenada a realidade vivida por quem não é Édipo, mas está em frente à Esfinge: ou responde, ou morre. Talvez, o trágico da pós-modernidade é a incapacidade humana de conviver com tamanha velocidade informacional: se um dia, o nome genealógico dividia os humanos entre castas, ou, então, a classe social e os bens patrimoniais, hoje, certamente, quem sabe mais, manda mais. E corra você ao seu browser mais próximo, evitando o Wikipédia, para estar on top dos assuntos do momento.

Em termos técnicos, pouco não deve ser elogiado na produção. O elenco é excelente, estando na surpreendente força de Fernanda Petit a concretização da força de Oliveira em fazer os músicos andarem com seus sons, em fazer a luz de Cláudia de Bem espalhar o espaço e aumentar o lugar, em motivar a concepção de figurinos que gritem tanto quanto e não menos do que qualquer outro elemento. As vozes dessa produção são, com apenas uma exceção, afinadas.

A exceção é Marcelo Adams e chegar a isso parece ridículo uma vez que, sabe-se, de todo o elenco, é o ator mais bem preparado intelectual e fisicamente para a tragédia clássica. Converso: ao andar pelo espaço de assistência, notei que, não importando o lugar em que eu parava, não conseguia fugir da dicção perfeita do ator. Na cena mais longa de todo espetáculo e também a última, só houve um elemento: o texto tão bem dito, tão bem interpretado, límpido. Diferente de tudo o que acontece até ali, no encerramento do espetáculo, estabelece-se uma hierarquia, dominamos o contexto, os demais elementos ficam em segundo plano infelizmente. E o ritmo cai. Por mais que o coro passante em roupas de banho e com champagne tente, o foco está inevitavelmente nele e não há outra opção. A voz de Marcelo Adams pára tudo, divergindo das demais cenas em que aproveitamos a confusão do texto para deitar nosso olhar em todos os outros elementos que, nem de longe, são o resto.

Apertar o F5 é atualizar a tela. Atualizar é unir o presente a quem assiste a ele. Assistir a Solos Trágicos é chorar por tudo o que não se sabe e vibrar pelo momento em que se sente vivo e disposto a correr atrás do que se perdeu. Até que, cansados da corrida, você resolva excluir do seu twitter teatral quem é mais cool que você, rendendo-se aos seus próprios interesses.

Mas minha sugestão é que você não faça isso e siga o @solostragicos.

*

Ficha Técnica:

Elenco: Marcelo Adams, Daniel Colin, Isandria Fermiano, Fernanda Petit, Rodrigo Fiatt, Elisa Heidrich e Lucas Sampaio.

Direção: Roberto Oliveira
Trilha Sonora: Arthur de Faria e Adolfo Almeida Jr.
Preparação Corporal: Carlos Gontijo
Preparação Vocal: Lígia Motta
Ambientação Cenográfica: Modesto Fortuna
Iluminação: Cláudia De Bem
Assistente de Iluminação: João Fraga
Figurinos: Coca Serpa, Francisco de los Santos e Modesto Fortuna
Maquiagem: Heinz Limaverde
Adereços: Elton Manganelli
Projeto Gráfico: Modesto Fortuna
Produção Executiva: Francine Kliemann
Orientação: Profª Dra. Marta Isaacsson de Souza e Silva

29 de jan. de 2010

The saga of Jenny


Foto: divulgação

Musicais

The saga of Jenny” é o penúltimo ato de “Lady in the dark”, musical de 1941 que tem o roteiro e a direção de Moss Hart, letras de Ira Gershwin (irmão mais velho de George Gershwin) e música de Kurt Weill, esse último mais conhecido no Brasil pelos espetáculos em que fez dupla com Bertold Brecht, apenas uma pequena parte de sua carreira. Idealizado para ser uma coletânea de músicas de Gershwin e Weill, pela influência da terapia psicoterapêutica de Hart, acabou se transformando numa peça de teatro musical. O mundo estava no meio da Segunda Guerra e os americanos já estavam nela. Do lado de cá do Atlântico, vários nomes internacionais se abrigavam da perseguição nazi-facista promovendo, assim, a rápida saída dos Estados Unidos do grande marasmo econômico em que estava mergulhado desde a queda da bolsa de Nova Iorque em 1929. Havia muito para ler, muito para ver, muito para assistir. Lugares a conquistar, pessoas a entrar em contato, novas culturas a conhecer. Liza Elliot, a personagem protagonista, é uma Miranda Priestly quanto à profissão, mas com um sério problema: ela simplesmente não consegue decidir-se sobre nada. O roteiro, nesse contexto, é desenvolvido a partir de três atos que se configuram em três sonhos. Incorporando tudo aquilo que o musical americano já tinha alcançado – grandiosidade, números acrobáticos, canções inesquecíveis e agilidade em cena com renomados atores-cantores-bailarinos – “Lady in the dark” arrebatou o público apesar de sua história cambaleante. Eliza era interpretada por ninguém menos que Gertrude Lawrence, a principal atriz de musicais tanto em WestEnd como na Broadway na primeira metade do século XX. “The Saga of Jenny” era o principal número do espetáculo pelo colorido do cenário (um circo) que oportunizava ao público assistir a malabaristas, a palhaços e a atos de grande pericolosidade. E tudo isso para dizer que não havia problema nenhum em não se decidir.

Em mais um ato de extrema coragem, Ernani Poeta concebe e dirige um espetáculo em Porto Alegre que, trazendo esse forte título e a proposta de oferecer uma obra recheada das músicas de Kurt Weill, é apresentado por 17 (dezessete) jovens atores e cantores desconhecidos no cenário teatral da cidade, todos concluintes da Oficina de Preparação para Curso de Teatro Musical ministrado pelo próprio Poeta. No site da Escola de Música Cordas & Cordas, ao trazer a agenda do Grupo Coro dos Contrários, Poeta acrescenta que o espetáculo foi inspirado, além de Weill, em Pina Baush.

A peça começa com os atores caminhando em cena: olhos fixos, corpo rijo, pausas. Ouvimos ser tocada lindamente no piano Youcali, que, infelizmente, não é cantada. A sequência é imensa e cansativa até mesmo para quem fica parado – a platéia. Fiquei pensando se foi está caminhada a relação entre Weill e Baush. Não consegui pensar em outra: Weill era um extremo apaixonado pelo teatro comercial e, sempre que podia, se manifestava contra as teorias teatrais que, segundo ele, mais afastavam o público do teatro do que levavam o teatro até ele. (Cf. GREEN, Stanley. The World of Musical Comedy. New York: Barnes & Co, 1960.) Por estar completamente inserida dentro da dança contemporânea, é possível imaginar que Weill dormiria sonhos tranqüilos sentado numa platéia de Pina Baush se ambos, claro, tivessem vivido na mesma época. (Baush tinha dez anos quando Weill faleceu de ataque cardíaco em 1950.)

Contudo, a cena inicial, após a longa promoção de bocejos, belisca Weill. O elenco canta Alabama Song e, logo depois, Janaina Lima faz um solo.

Primeiro: Ernani Poeta opta por fazer seu elenco dar início à peça com uma música cantada em inglês. Excelente opção! Um musical foi feito para ser acessível ao público. Mesmo não dominando o idioma, pelo contexto, se compreende a canção e o que ela faz dentro da narrativa.

Segundo: Janaina Lima mostra ser uma cantora de grande potencial. Com muita concentração, através da música, ela enfrenta o público, apresenta a proposta e estabelece a peça. O musical deixa o público confortável dentro da história, por mais conflitantes que estejam os pensamentos, como é o caso de A Ópera dos Três Vinténs, que Weill musicou para Brecht, como uma releitura de The Beggar’s Ópera, de John Gay. Com esse início de Lima, Poeta nos diz que, exatamente a la Weill, assistiremos a um espetáculo em que a música atinge uma importância superior aos musicais tradicionais.

Por muitos críticos, Weill é apontado como mais um autor de operetas do que de teatro musical. Ao que ele respondeu: “Você ouve muito do que falam a respeito do Ópera Americana que está chegando por aí. Na minha opinião, nós podemos e vamos desenvolver, isso sim, um gênero dramático-musical nesse país, mas eu não acho que isso possa ser chamado de ópera, ou que esse tipo de ópera possa ser separada do teatro comercial. Isso vai se desenvolver a partir do Teatro Americano, ou do Teatro da Broadway, se você preferir. Eu estou convencido de que muitos compositores modernos têm um sentimento de superioridade em relação às suas platéias. Para mim, eu escrevo para o hoje e não estou nem aí para a posteridade.” (GREEN, 1960, p. 236-237) 

O olhar e a força da atriz-cantora encarando firme o seu público é o hoje de que fala Weill, discordando do hoje de Poeta, quem conta a história de uma menina chamada Jenny que é esfaqueada por sonhar alto demais. A Jenny (similar de Geni, de Ópera do Malandro, paródia de Chico Buarque para a Ópera dos Três Vinténs) é uma prostituta com quem Macheath, o protagonista, teve um caso no passado. No musical de Ernani Poeta, Marci Berselli interpreta essa personagem que não é nada além de um motivo em volta de quem giram as músicas de Weill. Poeta, no entanto, acerta em não ter dado um solo à Berselli. A atriz pronuncia a tradução de Pirate Jenny ao invés de cantá-la. E faz muito bem. Não é nenhum defeito não saber cantar ou não ter voz ou afinação para tal. Mas é terrível alguém que não tem desenvolvido esse talento aventurar-se num pesadelo aos ouvidos de quem assiste.

Porém, o mesmo Ernani Poeta, que foi sábio em não ter deixado Berselli cantar, deu aos seus atores homens a Balada do Mackie Messer, para o nosso desespero. Em todos os sentidos, o lado masculino envergonha o espetáculo. São desconcentrados, não sabem as letras das canções (é visível o balbucio de suas bocas tentando acompanhar as atrizes) e se movimentam de um modo tão falso que, não fossem apenas parte da peça, destruiriam o trabalho de Poeta nessa produção. Duas exceções ao menos: Diego Farias destoa dos demais pelo olhar firme e pronto. E Pedro Andrade, embora apresentando uma interpretação rala como bêbado, é afinado e agradável solando sua canção.

O melhor desse espetáculo, porém, é Lilian Rolsenberg. Uma excelente cantora e uma atriz cuja interpretação exibe uma profundidade rara. Sua voz de soprana é lindamente afinada e seu corpo cênico deixa ver que há muita técnica, concentração e preparação. É um prazer assistir-lhe e, com ela, se emocionar. Atrás de Rolsenberg, mas bem próximo da expressão de seu talento, estão Cláudia Rocha e Paula Delazzana, outros dois ótimos momentos desse projeto corajoso e, de um modo geral, bem sucedido de Ernani Poeta, a que se acrescentam vários problemas de iluminação, um adequado uso do espaço cênico, boas opções de figurino e uma ótima utilização do tempo, apesar da longa caminhada inicial. Muito melhor uma hora cheia de espetáculo que cento e vinte minutos de muitas olhadas no relógio.

E, assim, Porto Alegre se abre os musicais ainda engatinhando nos bons momentos desse gênero popular no gosto, caro nas produções, difícil de ser bem feito. Liderado por Cíntia Ferrer, que foi a São Paulo estudar afundo o gênero, o grupo que se preocupa com a boa projeção desse gênero ganha a cada dia novos adeptos.

Em todos os lados, fica sempre a mesma visão: se for fazer, faça bem feito!

E Ernani Poeta está bem próximo disso felizmente!

PS: Super recomendo o filme Star! sobre Gertrude Lawrence em que há uma cena de "The saga of Jenny" .

*

Ficha Técnica:

Elenco: Andréa Almeida, Adenildo Machado, Claudia Rocha, Diego Brasil, Diego Farias, Gabriela Veiga,
Graziela Franco, Janaina Lima, Juliano Fortini, Kelly Sousa, Lílian Rolsenberg, Marcello Azevedo,
Marci Berselli, Paula Delazzana, Pedro Andrade, Roberta Turski, Vanderson Santos
Direção e Concepção: Ernani Poeta
Pianista: Gilson Geiger

28 de jan. de 2010

A doce bárbara


Foto: divulgação

Companhia

Tava fazendo as contas e descobri que, em 2009, eu assisti a algo como 120 (cento e vinte) espetáculos teatrais. 93 pro blog, 16 no Porto Alegre em Cena, mais aquelas peças a que assisti, mas sobre as quais não escrevi. E, em boa parte dessas sessões, eu estava sozinho. Saí sozinho. Entrei no teatro sozinho. Sem conhecer a pessoa do lado ou da frente, fruí sozinho também. Considerando o fato de que é uma média de um espetáculo a cada três dias ao longo dos doze meses, o que me faz espantar quando alguém ousa duvidar se eu gosto ou não de teatro, a minha solidão na platéia é compreensível. Estava pensando nisso quando começou “A doce bárbara”, espetáculo que conta com a presença única de Antônio Carlos Falcão. Fazia muito tempo que ouvia falarem muito bem da peça, mas nunca tinha conseguido ver. No ano passado, por exemplo, meu ingresso caiu no dia mais quente no ano e, cinco minutos antes de começar, preferi ir embora do Espaço OX, sem nem ventilador e muito menos conforto, a fritar lá dentro contando os minutos pra terminar. Em 2010, consegui! E o espetáculo é realmente tudo o que me disseram e mais um pouco. Uma seara onde vários conjuntos significativos se encontram e que eu, com muita dificuldade de separar o joio do trigo, ouso apenas me manifestar sobre o que é teatral.

Lá estava Falcão. Lá estava eu. Lá estava Bethânia. Lá estava eu, agora, platéia. Não estava Falcão imitando Bethânia, tampouco eu sou público, embora publique um pouco do escrevo. Ele é melhor do que Bethânia porque, aparte a mulher cantora, o que existe é a mídia, o imaginário, o que fica entre nós e a irmã de Caetano. Mídia é média, média porque fica no meio. E pode até ser que Falcão tenha partido dela ou desse meio, mas certamente ultrapassou. Assiste-se a um personagem, a uma construção, a algo que só quem vê compartilha. E o teatral parte justamente do irreprodutível. Os ritmos dos textos dados. Os próprios textos ditos. A forma como bate na perna, levanta os braços, sorri e faz cara séria. O balanço dos cabelos, a interpretação de Chico, a interpretação de Nei, o movimento pelo palco. Cada signo é tratado e posto sob a luz a partir de um vistoso estudo e grande meticulosidade. O ritmo com que a história da ida de Bagé a Santo Amaro da Purificação e, de lá, para o mundo é contada deixa, então, ver o que há de mais teatral no espetáculo cujo nome lembra um show de 1976. Em “Os doces bárbaros”, Bethânia não estava sozinha. No palco, Falcão não está sozinho. Na platéia, também eu não estava só.

O ator é atento à resposta do público. O palco se ilumina e a banda é vista se divertindo em cena. A platéia é pega cantarolando as músicas, sorrindo sem parar, aplaudindo quando isso não atrapalha, gargalhando várias vezes com histórias como a de Eva Sopher, ela e Tania Carvalho correndo nuas pelo Gasômetro, por exemplo. Sim, Bethânia é o foco e o espetáculo é para a personagem. O monólogo conduz as músicas, as músicas continuam o texto. O figurino conversa com o ritmo da voz, o cenário com a alegria dos músicos. O mais somos, agora, nós soltos ao puro divertimento.

Tão difícil como separar o teatro do show musical é separar uma crítica de uma narração, de um conto, de uma crônica, de um poema. Tão fácil como identificar a diferença entre “A doce bárbara” e “Édipo-Rei”, é separar Cláudio Heemann e Sábato Magaldi de mim.

Mas cá estou, como Falcão quem tem a companhia da música, com a delícia da poesia da noite de ontem.


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Ficha Técnica:

Maria Betania: Antônio Carlos Falcão
Guitarra: Daniel Nodari
Violão: Alexandre Missel
Baixo: Aldo Ibanos
Bateria: Cesar Audi
Direção: Antônio Carlos Falcão

27 de jan. de 2010

Fora do ar

Foto: Luísa Barros

A tarefa do "da poltrona"



Fora do Ar” é uma peça de teatro que não tem absolutamente nada que não seja teatralização do próprio corpo do ator. Os atores não têm a sua disposição nada mais para ser teatralizado, a não ser, claro, o corpo do outro ator. E são quatro: Felipe Mônaco, que estréia na tarefa de diretor; Cassiano Fraga, que estréia sua primeira peça adulta no circuito comercial da capital; Leonardo Barison,que repete (ainda bem!) a mesma técnica empregada em Bailei na Curva, Tá e aí?! e Manual Prático da Mulher Moderna; e Patrícia Soso, para quem, temos a impressão, a peça é feita, tamanha são as oportunidades que lhes são concedidas de mostrar o seu grande talento esse expresso no corpo, na voz e na energia. Soso é, sem dúvida, quem tem o melhor desempenho em cena, tanto na cena de “Fora do Ar”, como na cena do teatro de comédia de Porto Alegre.

Ainda e, acho que para sempre, com “Som & Fúria”, na cabeça, a primeira impressão foi a de que “Fora do Ar” seria um espetáculo cheio de piadas internas relacionadas ao fazer teatral em que os atores, com certeza, adorariam, mas o grande público dormiria de desinteresse. Sim, Felipe Mônaco nos proporciona uma hora de risos sobre o ator, mas não sobre o fazer teatral. O ator não é visto do ponto de vista de sua profissão, mas a partir da relação que as pessoas têm com ele. O ator, afinal, é aquele que está, nas artes cênicas, entre nós e os sonhos. Dessa forma, não rimos dos atores, do teatro, das dificuldades, mas de nós mesmos e do jeito como olhamos para quem constrói o sonho. Na cena em que o filho anuncia publicamente que quer ser ator, o riso maior não vem dele, nem tanto dos pais. Vem do apresentador de TV, âncora do programa em que isso é transmitido. E mais: rimos de nós mesmos que assistimos a esse programa na célebre desculpa do zapping. “O que on a heck estamos nós fazendo aqui?”

O mesmo conceito de situação acontece em todas as outras cenas em que aquele que quer ser ator ou atriz é posto em uma realidade sempre assistida por quem, em sua casa na confortável poltrona, ri de si próprio. O prazer da comédia “Fora do Ar” vem do prazer de ver o outro se dar mal, outro esse que nos quer fazer bem. No caso, o outro é um ator, aquele que nos (e)leva a sonhar. Daí a não necessidade de cor, de objetos, de cenários e outros elementos que conferem ao ator um trabalho a mais antes de atingir o sonho. Antes de atuar, o ator teatraliza o palco, ressignifica a luz, dá sentido à música e ao movimento. Nessa comédia que estréia com um ótimo ritmo cênico rara e infelizmente visto, o ator trilha seu caminho sem outros recursos. Vai direto a, quem diria, ele mesmo.

O título “Fora do Ar” diz respeito a como encaramos aqueles que estão “no ar” e nossa relação com esse significado por nós mesmos construído. Ao entrar no quadrado desenhado no chão, que brilho é esse pelo qual se luta? Quem é que lhes confere esse brilho se não aquele que liga o botão on do televisor ou paga o ingresso do teatro?

É uma homenagem ao trabalho do ator em cuja assistência não se vê o tempo passar, diverte-se muito e, sobretudo, faz pensar sobre nossa relação com quem pode até admirar tudo o que foi dito nesse texto sobre aquele que nos leva a sonhar, mas, por fim, vê o teatro como um trabalho que, afinal de contas, não deixa de ter o mesmo número de dificuldades que todas as outras profissões.

E nenhuma a mais.

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FICHA TÉCNICA

Direção e Texto Original: Felipe Mônaco
Adaptação e Dramaturgia: Elenco
Criação de Luz: Carol Zimmer
Operação de Luz: Felipe Vieira de Galisteo
Sonoplastia: Elenco
Elenco: Cassiano Fraga, Felipe Mônaco, Leonardo Barison e Patrícia Soso
Produção: Cassiano Fraga e Luísa Barros

23 de jan. de 2010

Manual Prático da Mulher Moderna


Foto: divulgação

Pra não perder tempo

Não sou mulher, nem me acho moderno. E, geralmente, tenho problemas com coisas práticas, preferindo, por exemplo, a crítica teatral ao palco mesmo. Ficar horas lendo sobre o assunto, pensando, escrevendo, apagando, escrevendo de novo é coisa que me agrada. Às vezes, até esqueço de ligar o ventilador e aproveito o suor para deixar claro que estou “malhando o cerebelo”. Mas, como um ser humano que não quer nada além de ser normal, como se eu já não fosse, me diverti, gargalhei e aplaudo o “Manual Prático da Mulher Moderna”, espetáculo da Cômica – Produtora Cultural.

Foi na faculdade que aprendi que não há nada mais tolo em termos de arte que ficar gastando tempo falando mal de blockbusters, da Sandy Júnior e do irmão dela (cujo nome eu desconheço), do Zorra Total, de Avatar e de tantos outros produtos artísticos que fazem sucesso embora não agrade os intelectualóides de Wikipédia por aí. Como os filmes dOs Trapalhões, o Chaves, a Hebe Camargo e as velhas novelas da TV Tupi, que foram desconsideradas pela elite pensante em seu tempo, chegará o dia em que serão produtos de colecionador. Então, pra quê esperar a peça sair de cartaz para falar bem dela?

Sim, Manual Prático da Mulher Moderna é um espetáculo comercial, vende puro entretenimento e, como já disse em outros momentos, “não é necessário ser nenhum doutor em filosofia para fruí-lo”. E, como todos os projetos teatrais, há dois jeitos de concretizá-lo: o bom e o ruim. Patsy Cecato escolheu o bom. Três atrizes e um ator compõem o elenco. Uma delas (Patrícia Soso) formada pela Scuola Internazionale Teatro Arsenale de Milão/Itália, outra (Márcia Ohlson) licenciada em Artes Cênicas pela UFRGS e o ator (Leornardo Barison) é formado pelo TEPA – Teatro Escola de Porto Alegre. O elenco, assim, não é de pessoas apenas bem intencionadas, mas profissionais que dedicaram e dedicam o seu tempo à formação. Vale dizer ainda sobre os atores que o trabalho de Soso pode ser visto atualmente em diversos outros espetáculos: Bailei na Curva, O Urso e Fora do Ar. O de Barison em Tá e aí?! e em Fora do Ar. O de Patsy em Se meu ponto G falasse e Stand up drama. O que deixa claro que experiência não falta a ninguém.

Construído a partir de teses sobre o assunto “Mulher”, tanto a casada (ato 1) como a solteira (ato 2), o texto não engana: é uma conferência em que três doutoras falam sobre o assunto. Quem gosta como eu de uma boa história contada do início ao fim fica um pouco prejudicado, mas não o suficiente para não receber bem o espetáculo que já está em cartaz há sete anos. Cada tese é “ilustrada” com uma cena dramática, como as próprias doutoras informam a respeito de sua metodologia. E ilustração é um ótimo nome, uma vez que diz respeito a um desenho que serve para re-dizer imageticamente algo que já foi dito com palavras. “Manual Prático da Mulher Moderna” é uma peça composta de ilustrações. E não há absolutamente nada de menor nisso.

Entre os dois atos, há uma passagem em que as doutoras Aglaé, Liége e Tânia Regina usufruem das suas condições de personagens e ganham vida. É quando o espetáculo atinge o seu melhor momento, patamar que será o ocupado até o final. O ritmo fica um pouco mais acelerado, as atrizes e o ator já conquistaram o público e se beneficiam do carisma que têm, a platéia está convencida de que não há nenhum problema em gargalhar alto tanto dos acontecimentos do palco, quanto dos seus próprios colegas assistentes (a platéia rindo da platéia).

Muito provavelmente porque as três personagens femininas formam um grupo, o destaque maior é o de Leornado Barison. Cada vez que o “elemento diferente” entra em cena, sente-se que o espetáculo fica ainda mais atrativo: “algo muito engraçado virá!” E vem! Sozinho, ele representa o universo não feminino – e que não é necessariamente masculino, mas também é. E representa de uma forma que, coerente com toda a proposta, só traz ganhos.

O que acima foi dito sobre ilustração pode voltar ao texto quando tratamos do cenário, figurino e luz. Tudo é funcional, tanto no que se refere ao uso, como no que diz respeito à estética. Embora se possa dizer que os objetos cênicos não precisavam estar com a ferrugem à mostra, o fato de não haver nada que perturbe nossa atenção ajuda a explicar o porquê dessa comédia fazer tanto sucesso há tanto tempo.

O fato real é que ficar tentando explicar o motivo do sucesso desse espetáculo, em forma de aplauso, é um jeito de pôr em prática o que aprendo em teoria. Mas deusolivre uma comédia sobre isso.

Se bem que...

*

Ficha Técnica

Texto: PATSY CECATO
(com a colaboração de MÁRCIA OHLSON, PATRÍCIA SOSO e XICA CAMPAGNA)
Elenco: MÁRCIA OHLSON, PATRÍCIA SOSO, XICA CAMPAGNA e LEONARDO BARISON
Cenário: NELSON MAGALHÃES
Criação de Luz: JÚLIO CONTE
Figurinos e Coreografias: PATSY CECATO
Trilha Sonora: FLU e DEFF RECLAME

20 de jan. de 2010

O Bordel das Irmãs Metralha


Foto: Moacir Maciel

Bondade Humana

Como Anne Frank, eu acredito na bondade humana. Mas vou além: casa cheia a ponto de pessoas terem que ir embora porque não há cadeiras extras em espetáculo que continua sendo aplaudido mais de dez vezes (sem estar exagerando!) em cena aberta no seu quinto verão consecutivo é, sim, certificado de qualidade. Peça ruim, por mais que a crítica tenha gostado, não fica em cartaz. Acaba o patrocínio que pagou o cachê dos atores (financiamento, cartão de crédito, lei de incentivo, apoio...) e não há bilheteria que lhe dê uma segunda temporada. E, sensíveis que são, os próprios atores cansam de ver suas platéias dormindo, sorrisos amarelos dos amigos, gritinhos de viva mais pela comum "babação de ovo" do que pelo êxtase estético que só os bons espetáculos produzem. Não se trata de negar o valor artístico de peças não vistas, mas de reforçar o valor, esse tomado de assalto pelos invejosos de plantão, de uma peça que volta e revolta há tantos anos e com tantos aplausos.

Aqui estou falando de “O Bordel das Irmãs Metralha”.

Dados os parabéns, vamos tentar entender alguns dos aspectos que, talvez, apontem para o sucesso de bilheteria.

O espetáculo é simples: não precisa ser nenhum pós-doutor em filosofia para fruí-lo. Uma velha cafetina quer se matar numa noite de tempestade quando, motivadas pelo mal tempo, quatro mulheres se abrigam sob o seu teto. As mulheres não se conhecem e contam uma para as outras suas histórias tristes. Resolvem, como saída para as cinco desesperadas, reabrir o bordel convidando os políticos nacionais e da região para conhecer a casa. Termina com abertura do lugar e a chegada dos clientes. Entretenimento puro.

A estética, felizmente, não atrapalha em nada a produção e só conduz a ela, o que é um ganho e tanto! A decrepitude do lugar é vista nos móveis, na decoração e, sobretudo, no título.“Irmãs Metralha” lembra algo que foi muito divertido há décadas atrás. “The Beagle Boys” era a quadrilha de ladrões que queria roubar o cofre do Tio Patinhas. As quatro invasoras podem ser vistas como as novas “The Beagle Girls” que, ao chegar no cofre da “Mamãezinha Querida”, a dona do Bordel, descobrem que não há nada que possa ser roubado.

Os figurinos conservam em si características que apontam para as personagens. Todos eles sustetam uma réstia de glória que, no tempo narrativo atual, nada mais é que sonho. A nordestina veste uma chita. A que quer ir para os Estados Unidos veste um vestido que lembra a Big Apple. A personagem atriz usa um vestido já de morno requinte, sóbrio e cintilante. A dançarina veste uma malha azul com uma saia rosa. A anfitriã, nada menos que brilho, brilho e brilho,advindo, no entanto, de um barato tecido de origem preferencialmente desconhecida.

O texto exorta a imagem de alguém no mais baixo nível da decadência mas com olhos para cima, para o alto, para o sonho. As grandes histórias são feitas disso. Lembrei agora de Cinderella, de Oscar Hammerstein II e Richard Rodgers (os mesmos autores de The Sound of Music, Oklahoma!, Carrossel, The King and I e South Pacific) em que Julie Andrews viaja por vários mundos e, então, volta para sua velha cadeira no cantinho da cozinha.

In my own little corner, In my own little chair
I can fly anywhere and the world will open its arms to me. 

Mamãezinha Querida, apesar do nome, tem em si o gosto amargo do abandono e não se cansa de lembrar as visitantes do horror de suas existências. Talvez ela se encontre nas que a ela chegam e, sem que possamos definir quando e onde, resolve re-abrir com elas o Bordel e dar-se uma nova chance.

O humor do texto, que se reflete nas situações criadas pela dramaturgia e é conseqüência das cinco interpretações, é o maior motivo por tantos aplausos e gargalhadas. Assim como um lugar abandonado representa a solução para a vida de cinco personagens, xingamentos são elogios, gritos são sussurros, aplausos são ofensas. Tudo é visto não a partir do como se mostra, mas pela possibilidade de adianta.

As interpretações são ótimas. Dandara Rangel, Everton Barreto, Glória Crystal, João Carlos Castanha e Lauro Ramalho exibem um domínio de público raro. Jogam com a platéia, jogam entre si, jogam os personagens e a narrativa. Ao dublarem canções conhecidas (três delas da Ópera do Malandro, do Chico Buarque), dão ao personagem uma voz que não é nem delas, nem da cantora que ouvimos no playback. Ouvimos a voz da personagem, suas brincadeiras, seu humor. Deve ser dito que Dandara Rangel é a que menos explora sua personagem em relação às suas colegas de palco: sua dublagem de New York, New York (Liza Minnelli) deixa a desejar mais pelo histrionismo de Dandara, expresso pela sua necessidade de jogar com a platéia, do que pela relação da música com o contexto de sua personagem.

Está em João Carlos Castanha, a Mamãezinha Querida, o grande e máximo ponto de “O Bordel das Irmãs Metralha”. Simples, puro, honesto, o ator faz uso de sua fragilidade, de sua ironia e de sua voz forte e entrega tudo isso para a personagem, para a história, para o espetáculo. Quem ganha e aplaude somos nós.

A peça, dirigida por Zé Adão Barbosa, termina exatamente quando tem que terminar, o que dá a ver uma noção de ritmo cênico coerente com os mais de 30 anos de experiência que o diretor tem.

Desfrutar de um espetáculo como esse nada mais é que uma bondade para consigo mesmo. Afinal de contas,   a bondade de abrir sua casa para quem a invade pode fazer nascer uma nova vida.

*

Ficha Técnica:

Direção - Zé Adão Barbosa.
Roteiro - João Carlos Castanha e Zé Adão Barbosa.
Elenco - Dandara Rangel, Everton Barreto, Glória Crystal, João Carlos Castanha e Lauro Ramalho.
Cenografia - Luiz Setinger.
Figurinos - Naray Pereira.
Iluminação e operação de luz - Carlos Azevedo.
Produção e divulgação - Lauro Ramalho.
Projeto gráfico - José Alessandro.


18 de jan. de 2010

Stand up drama

Foto: Marcelo Nunes

Tristeza pela tristeza?!

Achei que nunca escreveria isso, mas dessa vez eu preciso:

“Stand up drama” é um espetáculo que não deve ser visto.

- Por quê?

Os atores são reconhecidamente bons: Margarida Leoni Peixoto e Patsy Cecato são experientes e, ao longo dos anos, sempre receberam críticas positivas. Nesse espetáculo, no que diz respeito às interpretações, nada pode ser dito em contrário. Não conhecia o trabalho de Léo Ferlauto, mas Bob Bahlis, quem assina a direção, merece ser aplaudido por trazê-lo ao palco. O Prof. Dr. Clóvis Massa, o mais contido entre os quatro, também não deixa a desejar.

O trabalho de ambientação é excelente. A forma como o desenho de luz risca o palco é um dos melhores usos do instrumento que eu tenho visto nessa última temporada. Não consegui achar quem é o responsável pela iluminação, mas aqui afirmo que o resultado fica à altura da qualidade do elenco. Alia-se a isso a discrição dos figurinos, a composição das letras DrAMA, a trilha sonora.

- Por que, então, não deve ser visto? Por que é triste?

Sim. Porque é inutilmente triste.

- Inutilmente, como assim?

Abandona-se do teatro sem energia alguma. Não se chora. Não se emociona. Não se comove com nenhuma das primeiras sete histórias. Apenas a última fica, marca, permanece. E o único motivo desse privilégio da oitava história triste é o fato de ser a última. É tão bem contada como as outras. É triste como as demais. Mas só ela fica.

- Por que ela fala da morte de uma mãe e todos temos mãe, não?

Não. Todas as histórias são boas, são fortes, são pesadas. Escritas por Paul Auster e Mario Benedetti, a direção dada individualmente a elas por Bob Bahlis é muito sensível. Se a das ervilhas fosse a última, pensaríamos nela. É na estrutura da dramaturgia onde está o problema.

- São oito dramaturgias.

Não. Cada espetáculo tem uma dramaturgia só. A síntese faz com que o homem receba o objeto artístico como um todo. E como é organizado esse todo? Todas se apresentam exatamente da mesma forma:

1) O ator entra e arruma o microfone à altura de sua boca;
2) O ator dá um passo para trás e, logo depois, um passo para a frente, dando início à contagem de sua história;
3) A história começa descontraída. O ator olha para o público e diz algo que tem uma cara (falsa) de improvisação;
4) A história avança e o ator dá ao seu personagem-narrador um tom emocionado;
5) A história termina com uma frase de efeito. A luz morre, a trilha sobe e o ator sai.

E esquecemos, assim, a primeira história quando começa a segunda. E a segunda com a descontração da terceira. A sétima com a última. E, como não há nona, saímos com a oitava. Uma hora de espetáculo hermeticamente previsível, duas histórias para cada ator. Todas elas são baseadas em temas diferentes, embora se consiga perceber que o que rege a sua união é a faixa etária dos personagens. Na primeira, o protagonista tem 8 anos. Na última, a mãe da narradora tem noventa.

- Mas qual é o problema da tristeza? Porque você não gosta de histórias tristes não recomenda a assistência do espetáculo?

Em primeiro lugar, gosto de histórias tristes. Realmente, adoro chorar no cinema e me encanta o desafio de fazê-lo no teatro. Vi Titanic oito vezes e chorei em todas as sessões. Tenho me mantido longe das imagens do Haiti porque já chorei um par de vezes com o que vi. Chorei três vezes em “Agora eu era” e duas vezes em “Arca de Noé”, só para citar algumas provas de que eu sou chorão.

Em segundo lugar, aqui não se trata de gostar e não gostar. Se trata de tentar entender por que, numa platéia cheia como a que eu fiz parte, ninguém ficou emocionado, à guisa do relato do diretor na sua entrevista para o Sated/rs quando narra o ensaio na cozinha do seu apartamento. Lá, Margarida Leoni Peixoto estava sozinha. Grande atriz que é, tenho certeza, mesmo sem ter visto, que, como ela (e os demais) fez também no palco, deu colorido para história. Sem mexer nada além dos braços e da face, colocou toda a sua interpretação no ritmo, na contagem, na respiração. Todo o ambiente era para essa história, para esse momento, e é isso que difere do que acontece em “Stand up drama”.

A união das histórias deixa claro uma intenção negativa: “tentaremos, a todo custo, fazer você chorar.” E, justamente por isso, não conseguem. O clima é para choro e não para a história contada. As histórias contadas, assim no plural, nos tiram a energia, nos deixam cansados e suscetíveis. Não sensíveis.

Respondido?


*

Em tempo, ontem (24/03/2010) revi o espetáculo.

Antes, quero dizer que é muito importante, em todas as críticas, os leitores lembrarem que o referente (nunca o todo do objeto, mas apenas parte) é sempre a encenação recém vista e não a temporada inteira, o espetáculo inteiro e muito menos o histórico das pessoas envolvidas. Minha assistência de ontem não resultou nas mesmas impressões da vez anterior.

O espetáculo me pareceu bem menos rígido, bem menos formal o que é um ganho. As interpretações continuam ótimas, com destaque para Áurea Batista, que ainda não tinha visto nesse elenco. As histórias continuam as mesmas: todas muito bonitas. E a produção continua ótima: é o único espetáculo bem acabado de Bob Bahlis. A luz está excelente, a música entra na hora certa, tudo converge para um resultado positivo. Até o ritmo, como eu disse, que antes era feito de oito pausas e também oito reproduções exatas de contagem de oito histórias diferentes, agora, é levemente ascendente numa única linha, quase sem pausa nenhuma.

Mas continua-se saindo do teatro com a sensação de que um caminhão veio e passou por cima, levando embora todas as energias da gente. Parece-me que essa foi a intenção e, por isso, o espetáculo atinge o seu objetivo.

Mas volto a mesma pergunta inicial: precisamos disso? Ficar sem energia serve para quê?

*

Ficha Técnica:

Direção e texto: Bob Bahlis

Elenco: Léo Ferlauto, Margarida Leoni Peixoto, Clóvis Massa e Patsy Cecato.

Há um incêndio sob a chuva rala



Foto: Claudia Elia

Sem chuva e sem fogo


Uma parte discordante torna o todo disforme. Em peça que se apresenta como dramática, ou seja, um único foco, uma história contada do início ao fim com peripécias, reconhecimentos e catarse, a parte é só uma amostra do todo. Embora o todo “Há um incêndio sob a chuva rala” tenha um cenário significativo, uma luz pontual, um figurino interessante e uma atriz que não deixa a desejar, o texto adaptado equivocamente impede que os sentidos se estabeleçam de forma plena. Diferente de todos os elementos do palco, o ator é o único que, sendo também ele um elemento, pode transformar os demais: Daniela Lima transforma as meias paredes do cenário de Cláudio Benevenga em um apartamento, o blackout na luz de Taylor Rocha em uma queda de energia, barulhos de trovões saindo das caixas de som, em uma tempestade. Diante, no entanto, de uma adaptação nada coerente, não consegue fazer com que todo o esforço empregado atinja o grande potencial a que se propôs.

No conto de Vera Karam, a personagem principal não aparece em seu apartamento. A história começa quando ela surge na porta do vizinho de cima e se apresenta como a nova moradora de baixo que precisa dar olhada na área de serviço para... (Reticências de Karam.) O conto é intimista, a personagem fala baixo, seu ouvinte está próximo. Ao entrar numa casa desconhecida, ela visita uma intimidade que não é sua. E, como em Nelson Rodrigues e em tantos outros contistas do século XX, é no final que teremos a grande revelação que dará sentido a todo o seu anterior. A personagem de Karam, na verdade, não visita um desconhecido, nem o desconhecido é desconhecido. Ela e o vizinho já foram íntimos num passado revisto na situação dramática do conto. “Há um incêndio sob a chuva rala” é uma imagem cuja profundidade é digna de muitas páginas e horas de discussão. Aqui podemos imaginar um incêndio queimando as gotas de uma chuva fina. A chuva não desiste de tentar. O fogo não desiste de tentar. Em seu absoluto contraste, ambos coexistem.

Na terrível adaptação de Juliana Thomaz, não há fogo e muito menos chuva. Não há também intimidade e nem ao menos visita. E, que tédio!, não há desconhecido, uma vez que esse espetáculo é, por sua dramaturgia, uma cópia mal feita de “Pois é, vizinha...”, adaptação de “Uma mulher só”, de Dario Fo e Franca Rame. Maria, de “Pois é, vizinha...”, está em seu apartamento e fala com a nova moradora do apartamento em frente ao seu. Maria fala porque tem necessidade de conversar consigo mesma, sendo essa sua única chance de não enlouquecer. Sua loucura crescente explica os gritos janela a fora e nos alivia de tentar achar explicações, dando-nos tempo para descobrir novos sentidos. No monólogo em cartaz em Porto Alegre há 17 anos, Maria exibe para o público sua própria intimidade. No monólogo estreante no 11º Porto Verão Alegre, a protagonista desvenda a intimidade do outro que, inacreditavelmente, não fecha a janela, mas permanece em silêncio.

Não se consegue entender o porquê da protagonista almejar olhar a área de serviço do apartamento do prédio da frente na adaptação de Thomaz. Em Karam, é natural o vizinho debaixo precisar entrar no apartamento de cima em função de algum vazamento. Que olhos têm a protagonista de Thomaz para enxergar a coleção de discos do vizinho? Como ela faria uma extensão do telefone dela para o apartamento da frente? E que sacada é essa em que a nova moradora precisa se esconder para não ver o vizinho tomar banho em seu próprio banheiro dentro de sua casa? Essas perguntas são sem respostas coerentes e, sem elas, o espetáculo não anda porque não conseguimos acreditar na história. Verossimilhança, base para a cartarse, passa longe.

Fica a voz projetada da atriz Daniela Lima que conversa com alguém além da rua dizendo um texto que é para ser dito baixinho. Não fica o impacto final do belo conto de Karam, em que nova vizinha aponta uma arma para o morador, seu anfitrião agora indefeso. Em Thomaz, ao ver a vizinha louca e faladeira do prédio da frente lhe apontar uma arma, com toda certeza, ele simplesmente entrou para o seu apartamento e fechou a porta, como deveria ter feito nos primeiros cinco minutos de falatório, esse escutado por toda a rua, todo o condomínio, todos nós.

Literatura e Teatro são duas artes que vivem muito bem em separado há milênios. Mas, assim como a água da chuva e o fogo precisam de oxigênio para existir, a literatura dramática e o teatro dramático necessitam de coerência para se estabelecer em plenitude.

Aristóteles precisa ser lido mais vezes.

*

Ficha Técnica:

Texto: Vera Karam
Adaptação e Direção: Juliana Thomaz
Atuação: Daniela Lima
Orientação Cênica: Vinicios Cáurio
Trilha Sonora: Rafael Siqueira
Cenário e Figurino: Cláudio Benevenga
Iluminação: Taylor Araújo
Produção: Produtora Teatro Hebraica

17 de jan. de 2010

Solteiríssima


Foto: divulgação

Círculos

Num piscar de olhos, caminhamos para o sol. 




Sei que constar num texto que se pretende crítica teatral a expressão gostei/não gostei é fatal. Mas dou a essa análise a chance de morrer perigosamente mantendo, assim, a idéia de dizer que GOSTO DE CÍRCULOS. E é neles que Solteiríssima se baseia e, por isso, os anuncia.

Sem que fiquemos no básico dizer sobre a estrutura dramática dessa comédia, que se conta num grande círculo, terminando por onde começou, chamo a atenção de quem me lê para a observação de como a história se conta espacialmente.

Lugar cênico: o espaço na relação ator – público. Renata Peppl, a protagonista, desenha um círculo no chão do palco. Começa no centro ao fundo, vem para à direita na frente, vai para a esquerda da frente, volta para o fundo e, assim, gira. Com ela, através da personagem Suzana, os demais atores: José Alessandro, Juliane Bitencourt e Lucas Krug e os muitos personagens de cada um. Com um cenário composto apenas de elementos cênicos sem nenhuma informação que não seja suas próprias utilidades, os objetos entram e saem dos locais que ocupam o espaço como se fosse uma roda, um relógio. Peppel nunca sai de cena, conduzindo a peça, se comunicando diretamente com o público, sob os refletores.

Espaço cênico: o lugar na relação personagem – narração. Suzana conta as suas desventuras enquanto uma mulher que encontrar um marido. Vemos o namorado da escola, o noivo aventureiro, o homem casado, o blind date, o bonitão gago, o vendedor de loja e o personal trainer. Uma a uma, as histórias vão sendo cenicamente contadas e, em todas elas, há um reinício a partir da anterior. Mini círculos que vivem dentro de um grande círculo. Sob o sol, há mais para encontrar que se possa ser encontrado.

A história escrita pela própria atriz principal encontra a direção de Tiago Melo e esse namoro dura nove anos com muito sucesso. Registra-se a crise da cena do motel em que o ritmo cai vertiginosamente na funcionária que demora para atender o casal que pede um quarto. A graça perde-se e vai embora. O espetáculo só não se torna ruim porque o fim dele está bem próximo felizmente. As boas risadas dadas, a fácil identificação com histórias reais, as boas interpretações dos atores fazem com que repensemos o espetáculo e façamos com ele as pazes após a briga. Tudo termina bem ou, assim, recomeça.

Assim, são os relacionamentos que vamos tendo na vida. Mesmo os duradouros são providos de pequenas voltas em seu próprio eixo. Cabe a nós descobrirmos os eixos dos relacionamentos que mantemos e girar em volta deles.

Como numa volta sem fim.

*

Ficha Técnica:

Autor: Renata Peppl
Elenco: José Alessandro,
Juliane Bitencourt, Lucas Krug, Renata Peppl
Direção: Tiago Melo

15 de jan. de 2010

Pois é, vizinha...


Foto: Kiran

Porque há relação


Pois é, vizinha...” é uma adaptação do texto “Uma mulher sozinha” escrito em 1991 pelo mais importante dramaturgo italiano vivo Dario Fo e sua esposa, a ex-senadora Franca Rame. Débora Finocchiaro assina a adaptação e direção, além de atuar no espetáculo desde sua estréia em 1993. O monólogo, junto com Bailei na Curva e Tangos Tragédias, além de Dona Gorda e Se meu ponto G falasse, faz parte do grupo de espetáculos que não conseguem sair de cartaz tamanho número de pessoas que gostam de ver e rever sua montagem. Para mim, que há dez anos não ouvia a história de Maria, trancada em seu apartamento pelo marido Aldo, o constante retorno desse trabalho, o mais importante na carreira de Finocchiaro, é motivo de orgulho para a capital gaúcha. Além de ser um motivo de grande interesse por parte da análise crítica. Por que “Pois é, vizinha...” faz tanto sucesso?

Em primeiro lugar, não menos importante que os outros, o motivo é Débora Finocchiaro. Depois, penso em Fo e Rame e, por fim, na Companhia de Solos & Bem Acompanhados, que realiza o espetáculo. Uma vez que teatro é um objeto de arte composto de várias partes que só fazem sentido na relação, ou ausência de, com outras semelhantes, é impossível dedicar um só parágrafo para cada ponto acima levantado. Ia ficar um check-list bem bonitinho, mas nada verdadeiro. Um aspecto só é importante porque tem o outro. Pena esse texto ser literatura e, por isso, me oferecer muitos desafios para atingir esse objetivo. Senão, falaria (e não escreveria) sobre tudo ao mesmo tempo. Aldo só é machão porque Maria é submissa. A porta da casa de Maria só está trancada porque alguém a fechou e ninguém (assistam à peça) abriu. A protagonista só conversa com a vizinha porque ela, sendo vizinha, mora no edifício da frente. Esse texto, se ninguém o ler, continuará sendo o texto. Se ninguém visse “Pois é, vizinha...” ela nunca teria deixado de ser só um ensaio lá no início dos anos 90.

Ao criar uma história que se apresenta aos poucos, Fo/Rame cria uma personagem  que se mostra devagarinho na sua maior complexidade. Excelente atriz que é, Finocchiaro, que parece superficial e cheia de máscaras e sons infantilóides no início, vai deixando ver que é na casca que se encontra o refúgio de sua personagem, já desprovida de conteúdo, agarrada às migalhas de esperanças que vai recolhendo do chão brilhante de seu apartamento. Quanto mais a peça avança, mais caras e bocas a atriz faz. Seu corpo se movimenta, sua energia fica mais nervosa, a personagem parece transpirar. Maria serve-se da agilidade de Finocchiaro, de sua disponibilidade vocal, de seu corpo criativo e, principalmente, de seu carisma. Junte-se isso, o colorido do cenário e dos objetos cênicos que rodeiam a produção e avançam sobre a interpretação tão rica em figuras marcantes. A mãe do professor de inglês, o marido Aldo e a empregada sem pescoço não são ilhas na direção de “Pois é, vizinha...”, mas, ao contrário, excelentemente, se apresentam como pontos de vista de Maria, esses carregados de crítica e de deboche. Maria sobre Finocchiaro nos faz rir e nos faz pensar sobre a crueldade que nos motiva a rir. Fo e Rame não criaram uma comédia. Somos nós quem vemos no texto a comédia de que fugimos. Em algum momento de nossas vidas, afinal, todos estivemos presos dentro de um apartamento, mesmo sendo esse lugar nós mesmos.

A produção que completa 17 anos já atingiu a maioridade há muito tempo. A quantidade de pessoas que já a assistiram já passou dos duzentos mil divulgados. Maria, no entanto, segue a mesma. Sempre presa. Presa ao Aldo, presa à Finocchiaro, presa ao colorido, à sonoplastia, à necessidade de alguém na platéia que a ouça, que sorria com ela e pense sobre ela. E que, quem sabe, também escreva sobre ela.

Cara Maria, aqui vai minha contribuição.

I Love You.


*



Ficha Técnica:
Texto: Dario Fo e Franca Rame
Direção, Adaptação e Atuação:
Deborah Finocchiaro
Ator convidado: Zé Derli Rodrigues




14 de jan. de 2010

Aurora da minha vida


Foto: divulgação

Boletim

Preciso dizer, nesta introdução, que estava com medo de rever “Aurora da minha vida”. Já tinha visto o mesmo texto ser encenado três vezes por grupos do interior de teatro estudantil e nunca tinha realmente gostado dele. Sempre me lembrou “Liberdade, liberdade”, do Millôr: lindo texto, mas que mofou com o tempo se estivermos falando em teatro e não em literatura. Mas fui assistir à peça tentando fugir de qualquer lembrança ou conceito construído anteriormente à produção da Cia de Teatro Gato e Sapato que nada tem a ver com as minhas experiências com esse clássico da dramaturgia brasileira. Dito isso, passamos aos elogios, iniciando a crítica.

Montar esse texto é de uma coragem aplausível porque “Aurora da minha vida” é de uma chatice quase insuportável: não é uma narração. Naum Alvez de Souza, em 1981, criou uma dissertação dramática sobre a escola e o ensino brasileiro a partir das memórias dele até aquele ano quando a LDB nº 5692/71 completava dez anos. Essa foi a lei militar que seriou o ensino, excluiu filosofia, sociologia, latim e psicologia do currículo e incluiu Educação Moral e Cívica, OSPB e Técnicas Agrícolas, Comerciais, Industriais e Domésticas no lugar. Foi a lei que criou o ensino técnico (normal passou a se chamar magistério, por exemplo) e excluiu o famoso “vestibulinho” que era feito por quem saia do primário (então, quarta série) e ia pro ginásio (hoje, ensino fundamental- séries finais). No texto, os alunos e os professores, marcados como tipos (Menina Birrenta, Aluno Bajulador, Professora de Canto Orfeônico, Diretor, Padre, Aluno Quieto, etc), aparecem e desaparecem sem que haja uma linha narrativa que dê ritmo à história. O texto expressa, de forma cruel, as relações que se estabelecem na escola entre alunos, entre alunos e professores, e entre famílias. É um texto pesado cuja montagem geral e infelizmente ganha feições de Malhação ou de Carrossel, ao invés de se aproximar de Apareceu à Margarida, com quem faz uma excelente dupla. A Cia de Teatro Gato e Sapato, através do jovem diretor Leandro Ribeiro, enfrentou o desafio e, de um modo geral, deixou a encenação doce: abusou da poética, assumiu a jovialidade dos envolvidos na produção, construiu um tempo narrativo em que os personagens sejam fixos e seja possível prever o fim: quando todos os atores-alunos tiverem interpretado também professores, a peça acabará. Ao meu ver, a constituição de personagens fixos foi o maior ganho de Ribeiro ao texto de Naum.

Os figurinos são limpos e comportados expressando uma concepção que abrange toda a obra: há muito pouco aprofundamento em todos os setores, o que dá a ver uma coerência tão faltante em tantos espetáculos a que se assiste. Ao invés de uniformes, as cores ratificam a criação de personagens que se mantém em suas construções os mesmos. E, quando uma opção estética ratifica outra, estamos falando de drama felizmente.

Douglas Carvalho é o melhor em cena principalmente ao interpretar o Padre e o Aluno Louco. Seus gestos expressam uma corporalidade que diz muito sobre os personagens dentro da superficialidade adotada. É engraçado, interessante ao olhar do espectador e emprega um ar de naturalidade que acrescenta valores à obra, cativando a atenção de quem a assiste.

É muito interessante também assistir ao trabalho de Mari Freitas e de Gabriel Aquino, Aluna Gorda e Aluno Quieto respectivamente. São leves e espontâneos, convidando para lhes assistirem entrando no jogo que eles mesmos criaram com seus pares em cena. A forma como se movimentam no palco e agem através de diálogos está impregnada de uma verossimilhança que só faz bem à contagem dessa história não-história de Naum.

Não fosse um espetáculo participante num festival comercial, que cobra entrada do público e ocupa uma vaga na grade de programação que muito bem poderia ser aproveitada por outros espetáculos profissionais que, como “Aurora da minha vida” ganhou apenas três dias de apresentação, esse texto terminaria aqui desejando sucesso na carreira de todos que nesse espetáculo trabalham. Mas não é esse o caso. O parâmetro de análise aqui deve ser o mesmo de grupos profissionais.

Por isso, não dá pra fechar os olhos e dizer: “são novos... estão começando...”.

Sapatilhas pretas são visíveis. Não são sapatos e, por isso, não combinam com o figurino.

Gorda é uma coisa. Grávida é outra. O figurino de Mari Freitas é de uma aluna grávida que nunca ganha o bebê que espera.

Não se entende porque o tecido verde e amarelo que cobre o tarol usado na cena da banda de música aparece minutos depois no pescoço do professor de inglês.

A trilha sonora, que inclui trechos de musicais (I Will follow him, de Sister Act; With a little help from my friends, de Across the universe; Mamma Mia, de Mamma Mia; Somewhere over the rainbow, de The Wizard of Oz; Aquarius, de Hair) traz para “Aurora da minha vida” um clima que vai em direção oposta ao texto tão carregado de crueldade: “crianças boas morrem cedo”, “mãe morta”, “reprovação”, “racismo”... Além disso, nenhum ator tem preparação vocal para os vários números vocais constantes no espetáculo. Por isso, cantam muito mal, o que torna assistir a essas cenas algo bastante constrangedor. Não são afinados, não têm potência vocal e a letra das paródias às melodias já conhecidas é de gosto duvidoso. Há apenas um número musical interessante: o cantado por Douglas Carvalho, em que o ator obtém um resultado aceitável pelo colorido que dá à voz na canção que executa.

Reações que antecedem ações são, a olhos vistos, resultado de interpretações inexperientes e de uma direção mal cuidada. Os atores construíram personagens usando máscaras corporais (ombros tensos, voz infantilizada, braços presos) e partituras de movimentos que aprisionam e evitam a espontaneidade esperada em personagens crianças ou pré-adolescentes. O resultado é desconexão, silêncios, tempos mortos e ritmo rareado.

Duas horas e quinze minutos de espetáculo é um pouco demais para uma peça sem outros atrativos que não o texto.

“Aurora da minha vida” termina com a formatura de alguns alunos. Com diploma na mão enfrentarão cobranças profissionais. Aqui se lembra disso.


*


Ficha Técnica:
Texto: Naum Alves de Souza
Direção: Leandro Ribeiro
Elenco: Douglas Carvalho, Gabriel Aquino,
Igor Ramos, Ketti Cardozo, Marelize Obregon,
Mari Freitas, Márjori Moreira e William Molina

13 de jan. de 2010

Dançarei sobre o teu cadáver


Foto: Licia Arosteguy

A quente realidade



Julio Conte começa “Dançarei sobre o teu cadáver”, espetáculo que se originou de uma oficina oferecida pelo hoje diretor, com os atores sentados na platéia, espalhados pela sala. Desde então somos tomados por duas certezas: que a história a ser contada nascerá do palco e não da coxia, tendo a não-realidade como método; e que a narrativa dirá a respeito da contemporaneidade de que todos somos construtores. Uma realidade quente a todos nós será o tema. Não fosse teatro, o diálogo não-real sobre um assunto real seria contradição. Como é, que fique entendido que o não-real, aqui, é o “como”, e o real é o “o quê”. “Dançarei sobre o teu cadáver” é uma história contada a partir de personagens e textos que, assumindo-se como teatro, diz sobre nossa relação com a contemporaneidade, bem aos modos brechtinianos. Uma relação também quente.

Parece, no entanto, que o quente da relação e da história não são o suficiente. Já na apresentação dos atores se tornando personagens, num esforço da direção em deixar ainda mais clara a dramaturgia, essa já cândida como mais tarde apresentaremos, ouvimos piadinhas “quebra-gelo”. Nas duas vezes em que assisti ao espetáculo, não lembro de terem sucesso frases do tipo “Eu sou o Boni, mas não o Boni da Globo” ou, então, “1,95cm pra cima e 30cm pra frente”, apenas para citar alguns exemplos. O pesado título “Dançarei sobre o teu cadáver”, ao som de Elza Soares, num palco sem cenário com a predominância da cortina negra discordam desse tipo de tentativa de aproximação, já estabelecida, aliás, pela recepção. Só se quebra gelo quando há gelo. Estando a platéia disposta a assistir ao espetáculo, o gelo é unicamente construído por quem conta a história.

As tentativas de acessar o público pela via direta continuam acontecendo, nem todas fracassadas graças ao carisma de alguns atores. Fernanda Moreno, interpretando Vida, mas merecendo Tracy Turnblad só pra ela, é a melhor atriz nesse espetáculo simplesmente por lembrar que é atriz, que está interpretando uma personagem e ter a certeza de que todos sabem disso. Como felizmente também acontece com Nina Eick (Anastácia), Anderson Oreda (Pantera) e Carol Falcão (Lorinha), não vemos neles o texto duro, escrito por Júlio Conte e Vicky Mendonça, dito com todos os Ss e Rs a que se tem direito num português que nem professores como eu falam. Quanto aos demais atores, com alguns momentos de exceção, o que se sente é basicamente o mesmo: ocupar um lugar em cena, firmar as pernas e dizer o texto sem errar nenhuma palavra. Depois, sair e seguir a rígida marca, template Júlio Conte do teatro gaúcho, tão bem feita em Bailei na Curva e Se meu ponto G falasse, cujos sucessos fazem com que, ano após ano, voltem a cartaz. “Dançarei sobre o teu cadáver” não tem o mesmo bom resultado dos espetáculos citados porque, embora firmado nos mesmo conceitos de direção, tem atores que não sustentam a história que contam. E, em peça de Júlio de Conte, não há o subterfúgio: ou é o ator ou é o ator.

Outro exemplo de tentativa de acessibilidade é a narração das cenas. Na primeira parte do espetáculo, antes da cena se estabelecer, algum personagem informa o público sobre o que ela se trata e quem está nela. Como uma forma de dizer “também estamos assistindo à peça como você! ;-)”, os personagens aumentam o ritmo da narrativa por facilitar o entendimento, pasteurizando a história e tornando irreal o tema que nos foi apresentado como real. E que história é essa?

A história é sobre um garoto, Lifeboy, que, embora esteja a caminho de uma mudança de vida, ainda vive as conseqüências de seu passado envolvido com drogas e ilicitudes da periferia da cidade. Em seu entorno, amigos, nem-tão-amigos e familiares que, de alguma forma, ligados entre si, poderiam ter feito alguma coisa para que Lifeboy não morresse. Qualquer um que já leu “Crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel Garcia Marquez, lembra acertadamente do clima de incapacidade em que os personagens são absorvidos diante do destino. Essa que é a tragédia já tão bem tratada por Beckett, agora com cores de novela policial, adquire a acessibilidade com as classes populares fazendo-se entendida por toda a população. Chico Buarque, na mesma intenção, já cantava: “Mas eis que vem a roda-viva e carrega a roseira pra lá”. “Dançarei sobre o teu cadáver”, no entanto, não situa a história numa localidade latina sem nome, nem fala de roseiras pra falar sobre o vento que leva as pétalas por mais lindas que elas estejam. O lugar é Porto Alegre. O protagonista estuda na PUCRS. A narrativa, assim, já é bastante acessível.

Pouco se sabe dos personagens. Pouco há no palco para ser visto. Ambas realidades são desafiadores para um encenador, para um ator e também para o público. Centrar a história e construir uma trama faz com que seja elevada a importância da interpretação a um limite maior do que o elenco disponibiliza. “Dançarei sobre o teu cadáver”, embora apresente uma história interessante, não só não quebra o gelo como o faz ficar ainda maior. Do lado de cá, assim, a realidade continua quente.

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Direção: Júlio Conte
Texto: Júlio Conte e Vicky Mendonça

Elenco:
Anderson Oreda (Pantera)
Boni Rangel (Luiz)
Carol Falcão (Lorinha)
Cristiano Godinho (Habib)
Fabiano Geremias (Lifeboy)
Fernanda Moreno (Vida)
Luciana Domiciano (Cida)
Martha Brito (Neneca)
Nina Eick (Anastácia)
Romes Pinheiro (Santos)

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