30 de jul. de 2009

Agora eu era: corte dois

Foto: Romi Pocztaruk


O caldinho da mamãe*

É quando vem o sol que tudo se acalma, se lagarteia. As pessoas param de girar, os zunidos param de girar, os problemas param de girar. Os adultos não ficam tontos porque já estão acostumados com a bebida. Acho que a adolescência é um porre. Um osso duro de roer. E, quando adultos, pais e mães de família, famílias boas e famílias reais, sabemos que, quando o osso é muito duro, a gente faz uma sopa.

“Agora eu era: corte dois” é o osso que bóia na sopa. Se o “Corte Um” era mamãe trazendo o prato da cozinha, a cozinha, a mamãe, o prato, o cheiro, a televisão ligada, o guardanapo de papel e a luz incandescente de 60watts... Se o “Corte Um” era o establishing shot. O “Corte Dois” é um close. Um closão no ossão.

- Ele é feio, mas ele dá tutano. Roa!

E ele não bóia. É o prato que não é fundo.

João Pedro Madureira nos dá a ver o segundo pedaço de sua pesquisa, essa feita junto com o Grupo Vai! e pede permissão para continuar a história em que temos, agora um protagonista e não só (e apenas) um herói. Há um osssão nessa sopa. Um ossão que nos diz que essa sopa não é de legumes, não é de miojo, não é capelletti: é de osso mesmo. E diz também que você não pode desprezá-lo, nem tem tanta liberdade imaginativa assim quanto tinha quando a mamãe de avental vermelho vinha da cozinha com os cabelos cheios de laquet. O personagem de Vinícius Meneguzzi, Camilo, é o protagonista-com-tutano. Ponto.

O mais não se sabe. Não me ocorre mesmo de ter tomado sopa de osso, mas lembro que o gosto que minha boca já sentiu lambendo ossos foi sempre o do frango que, segundos antes, esteve grudado ali. O personagem protagonista, assim como está dado, por mais tutano que tenha, se mostra sem gosto. E a sopa, por isso, também.

Madureira, e, quando eu digo diretor, digo, pelo que fiquei sabendo, todo o grupo incluindo Romi Pocztaruk, Mariana Terra, Felipe Catto e Francisco de los Santos (vídeos, iluminação, trilha sonora e figurinos), experimenta o teatro com muita intuição. Vemos belas imagens serem construídas em situações potentes. O leão de um lado e a paz do outro. Uma Marilyn que canta através de Camilo, por Camilo, para Camilo, sendo Camilo. Brincadeiras de crianças. No vídeo do youtube, pés cruzando linhas. Imagens potentes, quali-signos. Marcações desprovidas de significado, mas capazes de fazer nascer significados. O prato, assim, está dado como raso porque é para ser enchido várias vezes. O teatro desse jovem diretor também cheio de tutano se estabelece na disposição de potências e não na resolução, na centralização, na linearidade. No entanto, o aponte de Camilo como centralizador faz a gente, que sente, relacionar. E relacionar já é sin-signo, já é conflito, já é trama, drama, dramático.

Do tomate ao caldo, mesmo que o caldo tenha saído do tomate e não do osso, tudo parece vir do osso.

- Servir sopa em prato raso não é uma boa idéia! – deve pensar a mamãe quando vê o caldo escorregar e sujar a toalha.

O ritmo cai vertiginosamente no fim. E a peça termina numa sensação de repente. Osso não tem vocação para elemento principal da sopa, que não fica bonita num prato raso. Não chega a ser um desastre porque foi uma tentativa. Por que não lavar o prato fundo, sujo do Corte 1, ainda na pia da cozinha?

A grande diferença da linguagem verbal para as demais é que o falante da primeira não produz suas próprias palavras. Há um idioma (paradigma) e um número mínimo de usos (sintagma) que ele deve fazer para ser entendido. Na linguagem teatral, o falante é quem inventa a sua fala, podendo recorrer se quiser e da maneira e grau que desejar dos paradigmas existentes. Assim, a coerência dentro da obra não se dá na relação com outras obras, mas dentro de si mesmo. Camilo, com seus conflitos existenciais e tutano, não é coerente com o prato raso, por mais saudável que seja.

Fico pensando se a sopa não foi só a entrada e logo virá um prato principal. Como me acho gordo, por andar comendo tanto teatro dramático por aí, estava ficando satisfeito com o caldinho da mamãe.

*Texto publicado na revista Things Mag #9


*


direção: João Pedro Madureira

assistência de direção: Vinícius Meneguzzi

elenco: Lucas Sampaio, Rafael Régoli, Sofia Ferreira e Vinícius Meneguzzi

dramaturgia: Maria Luiza Sá e Madureira

figurino: Francisco de los Santos

iluminação: Mariana Terravideos: Romy Pocztaruk

trilha sonora: Filipe Catto

direção de produção: Laura Leão

27 de jul. de 2009

Retratos do silêncio

Foto: Nilton Filho

Nem tudo é Chopin

Em 1995 e 96, eu participei daquilo que chamávamos de A.A.MU.GRA ou Associação dos Amigos da Música de Gravataí. Nas primeiras quintas-feiras de casa mês, na casa de alguém com piano, em torno de 30 pessoas se reuniam para ouvir boa música e ler poesias ou cantar. Guri do interior que eu era, lembro que me senti muito honrado em ter recebido o convite para estar naquele grupo todo composto pelas famílias tradicionais da cidade. Eu cantava (muito mal!) no coral municipal e esperava sempre ansiosamente pelos famosos saraus da Amugra, cuja carterinha de sócio guardo ainda hoje. No meio da adolescência, eu podia não saber muito bem a diferença entre New kids on the block e Unlimited, mas sabia reconhecer a Ópus 9 número 02 de Chopin, entre os noturnos de Schubert e de Schumann.

Quando na sala de espera do Teatro Nilton Filho, a pianista Lucila Conceição sentou ao piano, meu corpo lembrou das sensações daquelas reuniões que já não acontecem mais. A música, o clima aconchegante, o silêncio despertou sistemas adormecidos na minha mente. Quase quinze anos se passaram desde que a associação terminou, mas eu ainda reconheço Chopin. Um amigo chamou a minha atenção para o fato de que aquilo tudo despertava a imaginação da gente, nos transportava. E foi nesse clima, em que só faltavam uma lareira e um fondue para ser perfeito, que começou “Retratos do Silêncio”.

É Michel Foucault em “A arqueologia do saber” quem, quando fala de sua teoria dos enunciados, diz que: “O enunciado, ao mesmo tempo, não está visível e não está oculto”*. E Daniele Fernandes, professora da Puc-SP, acrescenta: “Ele está implícito nas frases e nas proposições; é anterior a elas, mas se manifesta através delas e, por isso, não é algo latente, está dito de fato, mesmo que implícito nas frases e proposições.” ** Com isso, quero dizer que eu posso ser o Rodrigo Envolvido Pelas Lembranças Do Passado, mas ainda estar no presente. As sensações que chegaram a mim através do piano despertaram sensações adormecidas, mas não expulsaram as demais. Lucila Conceição reorganizou meu pensamento e também minha capacidade de sentir o mundo (Conceito de Semiose de Peirce), mas isso não foi o suficiente para fazer com que eu esquecesse que, no mínimo, cem anos se passaram entre o que propõe a dramaturgia de Hyro Mattos e o que se tem hoje em termos de narrativa cênica. Assim, “Retratos do Silêncio” é um bom espetáculo para que nos aproximemos do que achamos que era fazer teatral no século XIX. Afora essa postura museológica, que não combina em nada com o teatro-elemento-vivo – que é o que, de fato, faz o teatro ser teatro e não documentário –, o que sobra é a boa música de Lucila na antessala e de Rafael Greco e Karine Isquierdo durante a apresentação.

A dramaturgia de Hyro Mattos se materializa no seguinte contexto narrativo: nos anos 50, uma família (a mãe Marta, a filha Antônia, o filho Pedro, e a empregada Dona Nonô) se muda para uma mansão herdada e que há muitos anos está fechada. Há um retrato na sala dessa mansão em que vemos um casal e uma filha vestidos com roupas vitorianas (início do século XX). Lufadas de vento frio, vozes e coisas estranhas começam a acontecer. Pedro faz amizade com uma menina que nunca é vista pelos demais membros da família. Marta fica nervosa e fala com os filhos e a empregada de um jeito que não lhe é comum. Os personagens do quadro (a família Melo: Vitor, o pai; Cândida, a mãe; e Lourdes, a filha) são os fantasmas da mansão que, embora andando pela casa e falando com e através de seus moradores, não se encontram. O clima fica tenso até que uma vizinha estranha aparece. Dona Amélia traz um álbum de fotografias e conta que ali, há cinqüenta anos atrás, morava uma família que teve um final bastante infeliz. Na adega, encontrada porque a vizinha insistiu em beber Conhaque, Antônia encontra uma mala com documentos e um diário. Lê-se o diário e descobre-se que a mansão foi perdida numa dívida de Pôquer. Ao final, Marta descobre que herdou a casa porque o vencedor do tal jogo era bisavô de seu marido, esse morto junto a seu pai num acidente algum tempo antes da mudança.

Tenho a absoluta certeza de que os leitores hão de concordar comigo de que uma história como essa só não é mais mofada por uma questão estética: a situação atual (há cem anos, pelo menos) do melodrama. Narrativas desse tipo estão aí na televisão hoje, como há umas décadas atrás estavam no rádio. Nos palcos, há muito que esse tipo de história só faz chorar de tanto rir. E, se me perdoem a lembrança, “A Maldição do Vale Negro”, dirigida por Margarida Leoni Peixoto, foi a melhor tradução desse gênero a que já assisti (incluindo aquela assinada por Luiz Arthur Nunes, co-autor do texto, no Rio de Janeiro, no mesmo ano.). Hyro Mattos, no entanto, perde a oportunidade do melodrama e não carrega nas cores do texto. Fica claro que, para ele, a história é séria e que o objetivo é realmente nos tocar o coração, como se o nosso coração hoje fosse exatamente o mesmo que era no século XIX, antes das guerras, do holocausto, do câncer e todas as coisas horríveis a que o homem teve acesso através da comunicação, coisa que não existia quando histórias como essa faziam a plateia chorar.

A direção de Nilton Filho piora o texto. Permite que o tempo fique ainda mais arrastado, apesar de estarmos num palco pequeno. Cada vez que os personagens do quadro saem de seus lugares para se juntar aos personagens diegeticamente vivos, o ritmo cai de lento para quase-parando. Como convém ao texto, os atores fazem de conta que o público não existe e nós, confortavelmente separados do palco, assistimos passivamente à história acontecer. Mas nem aí há coerência. Nilton Filho usa e abusa de entradas pelo público num mau uso do código teatral que ele mesmo estabeleceu: se você se fecha para o público, você não entra no espaço dele.

Os elementos plásticos se espalham: por um lado, uma trilha que concorda com aquilo que está proposto no texto naquilo que lhe é aceitável: o aspecto museológico, sem conotação negativa como já me esforcei em dizer no início desse texto. Por outro, perucas que concordam também com aquilo que está proposto no texto naquilo que é inacreditável: o mau gosto. Eu já assisti à Gisele Faerman (Marta) em outra produção e lembro de que ela tinha cabelos bastante bonitos. Qual a razão para ela usar peruca? E também os demais personagens: Victor (Hyro Mattos), Dona Amélia (Lee Costa), Antônia (Eduarda Meneguetti), Dona Nonô (Jacqueline Severo) e Cândida (Mariana Azevedo)? No início dos anos 80, a cena em que uma bola imensa corria atrás do Indiana Jones nos fazia vibrar de excitação pelo medo de perder o nosso herói e pela qualidade gráfica do filme de Spielberg. Hoje, vinte anos depois, qualquer criança percebe o efeito de chroma-key e ri da cena, tão fake que ela é. O chroma-key já existia antes, mas só agora ele nos incomoda. Que agora é esse? High Definition! Se perucas não atrapalhavam há sessenta anos, agora é absolutamente incompreensível que alguém insista em usar nos seus atores sem um objetivo estético bastante claro.

Quanto à interpretação dos atores, não há muito o que falar. Como já tinha levantado uma vez, Gisele Faerman continua exibindo uma grande capacidade de dominar a cena. Jacqueline Severo, uma revelação para mim, pois não lembro de tê-la visto em outra produção, tem um timing pra comédia impressionante. Apesar de destoar de tudo o que se propõe no texto e na concepção para ele, sua independência traz um alívio para a plateia  chocada. Quanto aos demais, situam-se num espaço coerente e conformado, sem grandes momentos, nem piores.

Dona Amélia ensina à família de Marta o único jeito de fazer com que os fantasmas dos Melo se encontrem e saiam da casa. É preciso fazer o Círculo do Amor. Amélia, Marta, Noêmia e Antônia ajoelham-se no chão em Círculo e ficam em silêncio. Pedro não está no círculo e ninguém chama pelo garoto. Depois, entendemos que, por causa de um truque de dramaturgia, ele não poderia estar. Pedro aparece correndo, no fim do espetáculo, para dizer que estava brincando com Lourdes no balanço até quando, de repente, ela sumiu. Entende-se, então, que o círculo funcionou. Será que o que se acumulou de teorias do teatro e estudos de recepção artística precisam funcionar como Pedro, que faz parte da família, mas só aparece para dizer que a peça terminou?

Quinze anos depois, talvez, eu observaria que os grandes pianistas e músicos da Amugra talvez não fossem tão bons assim. E que a importância daquela experiência se deve unicamente aquilo que eu era naquele tempo. E não nesse.

*FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves.
Petrópolis-Lisboa: Vozes-Centro do Livro Brasileiro, 1972. p. 137


** Disponível da página 6 de http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo/cognitio_estudos/cognitio_estudos.htm


FICHA TÉCNICA

Texto: Hyro Mattos
Direção: Nilton Filho
Assistente de Direção: Hyro Mattos

Elenco: Hyro Mattos - Eduarda Meneghetti - Gisele Faerman - Jacqueline Severo - Júlia Pilotti - Júlio Morales - Lee Costa - Mariana Azevedo

Participação Especial: Antônio Carlos Castilhos

Trilha sonora: Rafael Ruschel Greco e Karine Isquierdo
Cenografia e Iluminação: Nilton Filho e Hyro Mattos
Cenotécnico: Hyro Mattos
Figurinos e Cabelos: Nilton Filho
Operação de luz: Kaká Medina
Operador de Retroprojetor: Rebecca Pegado
Fotos: Nilton Filho
Bilheteria: Sueli Ribeiro
Divulgação e Assessoria de Imprensa: Silvia Abreu
Produção: Teatro Nilton Filho
Realização: Cia. de Teatro Construção

21 de jul. de 2009

Primeiro as Damas


Foto: Isa Reichert

Faixa Amarela

“Eu quero presentear
A minha linda donzela
Não é prata nem é ouro
É uma coisa bem singela
Vou comprar uma faixa amarela
Bordada com o nome dela
E vou mandar pendurar
Na entrada da favela”


Sempre que toca essa música na minha casa eu e minha amiga, que é mestranda em Administração, rimos por algum motivo qualquer da letra. Resultado: ontem, na comemoração do “Dia do Amigo” pendurei na porta da nossa casa uma faixa amarela com o nome dela escrito. Não preciso dizer que o riso tomou conta da tarde até o momento em que a tal faixa enrolada foi parar dentro do armário dela. O presente estava dado.

Mas qual era o presente? Uma faixa simples, dois metros e um pouco mais, talvez? Não. Meu presente foi a lembrança.

(Uma vez um personagem em um filme, peça, programa de tv, livro, não-sei, me disse: “Se você não quer construir uma relação, não construa história. Não há história sem relação.”)

A simplicidade do objeto dinâmico (num vocábulário de C. S. Peirce) não está na mesma medida relacionado à riqueza do objeto imediato. O primeiro é a existência concreta e real da faixa. O segundo é o signo e todo o sistema que ele propõe. O pedaço amarelo de tecido custou muito pouco. A lembrança é de grande valia. “Primeiro as Damas” custa quase nada. As risadas dadas têm um valor que não é possível medir.

Um microfone no proscênio e um banner atrás. No meio, algo como quatro e sete minutos para preencher. Já lembrava Bahktin que a relação cronotópica (tempo e espaço) é justamente característica da arte dramática (ele estudou literatura) justamente porque abre uma fenda vertical no espaço e no tempo em que historicamente habitamos, além de produzir um meio de relacionarmos horizontalmente esse momento histórico-dramático com outros similares ou díspares. Para Cris Pereira e Lucas Krug, o tempo é o espaço a preencher. E o espaço leva tempo ou tempo lhes falta para ocupá-lo todo. O conflito do stand-up comedy ou espetáculo-do-tipo-terça-insana (“terça insana” – com minúsculas – virou bombril ou maiz(s)ena) é justamente esse: vencer a ocupação do espaço-tempo, diminuindo as tensões entre os dois.

De uma forma geral e superficial poderíamos identificar uma relação entre os seis personagens: O primeiro, Rodson dos Anjos, se anuncia como o mestre de cerimônias do “Primeiro as Damas”. O último, Fagundes, é um artista. Sucede o primeiro já citado, cuja história se estabelece apartir da feiúra, um segundo, Frederico Alberto, bastante feio também e que não se importa com as piadas que os colegas fazem dele, não se considerando, assim, vítima de preconceito. Nesse caminho, sucede-lhe Jorge, um homossexual dono de borracharia. Embora tenha tentado, não consegui forçar, como fiz até aqui, uma relação entre Jorge e o Seu Cucar, um vovô de 98 anos que tem uma ereção anual e sua fraldas geriátricas. Tampouco desse com Claudiovaldo, gerente de flanelinhas e vendedores de bala de goma. O modo desse último encarar seu ofício, uma arte, pode ser relacionado com Fagundes, se quisermos finalizar um processo inútil de união entre os personagens que compõem o quadro. “Primeiro as Damas”, cujo título não se explica, não é um espetáculo temático. Entre os mil quadros do Zorra Total, que completa dez anos esse semana, não há uma ligação objetiva.

“Primeiro as Damas”, direção de Eduardo Holmes, é um espetáculo de humor rasteiro. Embora nem todas, a maior parte das piadas gira em torno de sexo (feiúra, homossexualidade, impotência, ereção, zonas erógenas,...) e escatologias (merda, diarréia, mijo, vômito, ranho,...). Para mim, considerando o talento dos dois atores, a opção por utilizar esses temas me leva a refletir sobre dois aspectos:

1) Humor rasteiro e mal humor são coisas diferentes. O espetáculo é muito engraçado e dizer algo diferente disso é sustentar uma hipocrisia que não leva a lugar algum. Em agosto, com Lucas Krug no elenco, está para estrear uma comédia de Moliére. Há alguns anos, com Jorge Dória no papel principal, eu vi o mesmo texto clássico ser apresentado. Escatologias e sexualidade, assim como piadas políticas, fizeram muito bem ao texto francês de 1668 na montagem do início do novo milênio;

2) Lucas Krug e Cris Pereira, os dois atores, tenho certeza, aprendem algo novo sobre o gênero a cada nova apresentação. No youtube, é possível conferir as diferentes versões do mesmo quadro. A aposta no certo deixa claro a inexperiência, essa, aos poucos, passível de ser abandonada.

Vencer o tempo não é, contudo, desafio de todo ultrapassado pela dupla. Quadro após quadro, a sensação é a mesma: começamos bem e, daí para diante, o ritmo cai. Nessa caída, chegam até nós as raseirices já citadas. Num dos quadros, por exemplo, Krug interpõe, sem motivo algum, um comentário sobre seus testículos estarem divididos como os gomos de uma bergamota. A imagem é engraçada, mas, por estar sem contexto, exibe nitidamente a força que está sendo feita para agradar. Força essa desnecessária porque, como um todo, “Primeiro as Damas” agrada muito. Outro quadro sucede o anterior, e o ritmo volta a crescer num preenchimento de uma hora e meia. Tanto um ator como o outro, exibem personagens incrivelmente diferentes. Não só o figurino, mas a voz e a postura se modificam num uso de máscaras bem próprio do que se construiu como comédia ao longo dos séculos. A direção é limpa e o tempo, que poderia ser um pouco menor, é preenchido de forma variada. É na pobreza de “Primeiro as Damas”, sem passos de dança, grandes cenários, figurinos rebuscados e luzes coloridas que se concentra o valor da relação dos atores e sua platéia. E é nessa relação que se baseia o nosso riso despretensioso e saudável.

Despretensioso e saudável como a comida equatoriana que minha amiga fez para mim, ela que nunca cozinha nem pra ela. Ou como a música de Zeca Pagodinho.


*
ELENCO:
Cris Pereira
Lucas Krug

Direção: Eduardo Holmes
Branco Produções

18 de jul. de 2009

Corte

Foto: Carlos Sillero

Um corte que não interrompe

Sem querer dar uma de “cabeção”, achei que valia a pena falar de Júlio Plaza, distinto senhor que não saiu da minha “cabeça” na platéia de “Corte”. O artista espanhol falecido em 2003 desenvolveu uma pesquisa sobre multimeios que, em muito, dialoga com o trabalho do Grupo Jogo de Cena. Aqui fico pensando se é porque o espetáculo inclui em sua proposta uma conversa em que participam elementos audiovisuais, além da recuperação de personagens clássicos da dramaturgia num espetáculo, artificialmente falando, “de dança”. Mas proponho que não. É justamente nesse incluir que Décio Antunes se afasta de Plaza. A proximidade está no eixo.

Citando Walter Benjamin, Plaza propõe que imaginemos duas formas de encarar a história. Na primeira delas, cada momento histórico (e é partindo do momento histórico atual que Décio Antunes estabelece a sua narrativa) funciona como uma linha horizontal. Nesse caso, olhar para o passado é como se tivéssemos várias linhas horizontais umas em cima das outras, o que justifica o termo historiografia. Pensar o passado, com olhos firmes no presente, é como pegar uma faca bem afiada e cortar essas linhas ao meio num movimento vertical que possibilita a reflexão sobre os cortes.

O outro modo de ver a história é observá-la como constelar. Cada momento da história ocupa, nessa idéia, exatamente o lugar do momento anterior e, ao invés de linhas horizontais, temos sistemas palimpséticos. O passado, assim, se completa no presente e no futuro e está, portanto, vivo. O presente, que já é passado no ato da reflexão, possui o passado em segundo plano. O futuro ressignifica o passado, não como mero simulacro como faz a moda, que se utiliza do ontem como objeto de construção de um falso novo, mas como a arte e a filosofia que produzem novos olhares a partir dos novos desafios. Ver a história com olhos de historicidade me parece ser o eixo de “Corte”.

O ponto alto da peça, quando o sistema proposto por Antunes se torna uno, é quando os atores-bailarinos entram com pedaços de manequins, já no início. Pedaços, cortes, retalhos. O cenário é composto de trechos de carros, peças de imagens, rampas que não se concluem, buracos negros. A luz de Bathista Freire e Guto Greca proporciona ao encenador e ao seu público espaços ricos em significação. O figurino de Coca Serpa é indicial: aponta para o além, indica, mostra sem ser mostrado. As peças, nesse cenário de Felix Bressan de que fazem parte também os sete atores (e sete é o número da perfeição), acrescentam significados, com também os vídeos, esses compostos por trechos, retalhos de cenas.

O ponto baixo da peça é o que chamamos de espetáculo. Se tudo aquilo que é plástico é base significativa rica em informação e forma a lente através da qual estamos aptos a olhar o homem, não como produto de seu passado, nem como semente do seu futuro, mas como carregado tanto de si ontem, como de si amanhã, não é na encenação que se estabelece a reflexão. Décio Antunes pára na preparação e deixa de dar, com poucas exceções, o passo adiante.

Na tela vemos imagens de 11 de setembro. Uma atriz veste-se com bombas e joga-se num buraco. 1 + 1 = 1, no teatro.

A narração fala sobre estar frio. Uma geladeira entra em cena e dela sai uma mulher.

Uma atriz de vermelho entra limpando incessantemente as mãos de algo que não sai. Num inglês que nem de longe parece ser orgânico, ela cita Lady Macbeth.

E, assim, em vários momentos, os elementos concordam entre si além do esperado na narrativa dramática, se tornando monocórdio: um código sujeita-se a outro e pouco se avança além da cena inicial.

Fabiane Severo e Patrick Vargas destacam-se por dar importância à espontaneidade, tão contemporânea à dança. Em suas aparições, os movimentos não se mostram cristalizados, como ocorre várias vezes com seus colegas, mas produzem o sentido do existir, do aqui agora performático em cujo acontecimento está a razão para o vínculo palco e platéia. Como os elementos plásticos, o olhar desses dois intérpretes apontam, jogam a reflexão para o olhar do público, tarefa essa cerne para o pós-dramático de Lehmann.

Assim, Décio Antunes se distancia de Plaza por construir um espetáculo que, em seus bons momentos, se fecha em si, concordando consigo mesmo num excesso de coerência para o que se espera da dança hoje. Mas se aproxima do artista espanhol no momento em que traz à cena da capital gaúcha uma reflexão historicista (e não historiográfica) a partir um espetáculo cheio de belas imagens.

“com vida o corpo se ergue
faz rolar a pedra, sempre a mesma
para cima do monte
sempre o mesmo”

*
*

Concepção de Direção: Décio Antunes
Coreografias: Maria Waleska Van Helden
Música: Flávio Silveira e pesquisa de Décio Antunes, Fabiane Severo e Maria Waleska

ELENCO:
Cristina Camps
Fabiane Severo
Graziela Silveira
Maria Albers
Patrick Vargas
Robson Duarte
Stela Menezes

Narração: Nelson Diniz

Figurino: Coca Serpa
Cenário: Felix Bressan
Luz: Bathista Freire e Guto Greca
Fotografias: Carlos Sillero
Projeto Gráfico: Liege Grandi

Produção Audiovisual:
Camila Vieira e Cristiano Oliveira (conceito, pesquisa e edição)
Luini Nerva (produção)
Rodrigo Poyastro (técnica)

Assist. de Produção: Liege Porchetto
Produção: Jogo de Cena

12 de jul. de 2009

Eu me faço simples por você


Foto: Marcelo Pacheco

Rotação


O palco é o mundo e os atores são também pessoas. Só do palco ou das pessoas é que vêm os obstáculos. Só deles também é que vêm os estímulos. Uma zona escura aqui, outra ali. Cena aberta. Uma mais gordinha aqui, outra mais alta ali. Um único bailarino homem. Linhas horizontais na camiseta, vestido acolá. Malha com camisa de botão. Cabelo curto. Cabelo liso. Há os que fumam. E Airton Tomazzoni, diretor do Grupo Experimental de Dança da Cidade, nos apresenta o cruzar.

O teatro não está no ator, na zona clara, na trilha bem escolhida. O mundo está no movimento: rotação e translação.

E você caminha. Do sul para o norte. E outro alguém caminha do leste para o noroeste. E outro ainda do sudeste para o sul. E ela corre. Aquela outra engatinha. Uma se arrasta. Eu nem olho para os lados. Uma teia de gente cruzando, andando em volta do sol com a lua envolta da gente. E, de repente, numa festa ou na fila da banquinha de bergamotas, você olha para o lado e vê que alguém vai para o oeste como você, no mesmo ritmo ou quase, rubicundo talvez. “Eu vou pra lá também.” “Vamos juntos, então.” E dois cruzando juntos faz parecer que os dias correm mais rápido.

Mas o cruzar não é, não esqueçamos disso (por favor!), um privilégio do ator bailairino, único entre as mulheres em cena. Um belo dia, o oeste já não lhe cheira bem talvez pela proximidade, talvez porque talvez. O sudoeste parece mais colorido. “Mudei de idéia. Beijomeliga!”

Só.

E o cruzar continua. O oeste também. A bailarina mais lenta, por alguma carga d’água, agora anda mais rápido. E vamos juntos.

Juntos.

O palco escurece e a tartaruga some do nada, num acidente ou num ataque fulminante.
Alguém mais novo, ou mais velho, ou com peitos maiores, ou com orgasmos mais prolongados surge e, embora o oeste continue brilhante, é você quem não faz mais sentido.
Nada acontece, ou tudo continua acontecendo, mas a tartaruga cansou de correr e quer ir mais devagar. Então, ela pára e você segue.

Você segue.

E olha pra trás. Há quem faça solos no palco. Há quem faça duos. Há quem não faz quase nada. E há quem só faz sentido em grupo. O que é mais importante: o oeste ou a companhia?

E aí chegamos ao fim de “Eu me faço simples por você”. Começamos a entender que não há muito o que entender e que é bom fazer-nos simples para nós mesmos.

Os movimentos da Terra, quem sabe, explicam a constância da vida. E tudo isso sem dizer nada.

Dança.






*




FICHA TÉCNICA


Direção: Airton Tomazzoni
Figurino: Airton Tomazzoni e Marcelo Pacheco
Iluminação: Karrá
Seleção Musical: Airton Tomazzoni e Roberta Savian
Produção: Airton Tomazzoni, Marcelo Pacheco, Jane Carvalho, Maria Aparecida Simões e Ana Paula Silva dos Reis.

Intérpretes Criadores:
Aline Brustolin
Alessandro Rivellino
Bibiana Alterbernd
Fani Vasconcellos
Joana Vieira
Juliana Rutkowsky
Muriel Vieira
Raquel Purper




11 de jul. de 2009

O Sobrado

Foto: Myra Gonçalves


Água para Maria Valéria

Quando eu tinha 17 anos, fiz CLJ: Curso de Liderança Juvenil, movimento da Igreja Católica. Três dias de retiro no Seminário de Viamão com mais 80 jovens como eu, provenientes de cinco paróquias diferentes do que hoje se conhece como Vicariato de Gravataí. Não conto mais porque, antes de terminar, fizemos um pacto no sacrário, em frente ao Monsenhor (Pe. Ireneo Flach) de somente dividir o que aconteceu naqueles três dias com outras pessoas que, ao longo dos trinta anos, também vivenciaram exatamente a mesma programação. Na missa de chegada, cada cursista teve que dizer à assembléia o que mais chamou a atenção nos três dias recém terminados. Naquele 04 de maio de 1997, disse que descobri duas coisas que modificaram a minha vida. No 252º CLJ 1, vi a maravilha que é chegar para desconhecidos e abraçá-los como velhos amigos desejando coisas boas do Deus que habita em mim para o mesmo Deus que habita nele. E também (com o microfone em punho) disse que descobri que eu amava muito meu pai e minha mãe (os dois chorando, de pé, num banco da igreja) e que eles eram muito importantes para mim. Lá se foram 12 anos em que eu, com uma vida bastante diferente da que tinha nos tempos de normalista, segui dizendo que aqueles três dias dividiram a minha história em duas partes. Emocionado e com real interesse em preservar aquela lembrança, não vi qual era o diferencial daquela sensação. Só ontem percebi qual era esse diferencial.

A Igreja Católica chama de Espírito Santo o Deus Santificador. Aquele que motiva, que estimula a perseverar, que faz olhar para frente. O símbolo é a pomba que voa para o alto e o fogo que queima as coisas ruins e ilumina o caminho a seguir. É após Pentecostes (a vinda do Espírito Santo sobre os apóstolos reunidos no Cenáculo) que os discípulos, falando idiomas diversos, partem para o mundo anunciando a Boa Nova. Fiquei quatro anos no CLJ com a real motivação de evangelizar. E pensei que esse sentimento era fruto unicamente de uma experiência cristã até quando percebi que sensações muito parecidas com aquela vivenciei em outros momentos. E vou narrar apenas um: ontem, ao sair do Memorial do Rio Grande do Sul, caminhando do centro até a Cidade Baixa, gastei horas no telefone ligando para amigos e conhecidos dizendo: “Vão ver O Sobrado”. Minha vontade era ter um cartaz da peça em punho. Aos desconhecidos que eu via, a vontade que tinha era de dar informações sobre o espetáculo. Em casa, no MSN, anunciei: “Faça um favor para você mesmo, vá ver...!” O espetáculo dirigido por Inês Marocco era, ontem, a minha Boa Nova. E longe de ter a pretensão de considerar que o meu texto abaixo será um Evangelho, vou tentar um apócrifo meio desorganizado.

RODRIGO FIATT

Uma vez disse aqui que um dos prazeres de ver uma peça de João Ricardo (Cia. Espaço Branco) era a sensação de ver o trabalho do diretor que melhor representa a sua geração através do teatro. Ontem, e lembrando também de outros trabalhos a que já assisti, tive a certeza: Rodrigo Fiatt é o melhor ator de sua geração. Por mais diferentes que lhe sejam os desafios, o resultado mostrado ao público é sempre de primeiríssimo nível. A voz, o corpo, o gesto, o movimento, as pausas e todas as categorias semióticas que qualquer Pavis poderia levantar nos levam para a mesma percepção: houve pesquisa, houve trabalho, houve empenho e, antes de tudo, grande talento. Rodrigo Fiatt sabe que Licurgo Terra Cambará, não por ser Licurgo, mas por ser Terra, por ser Cambará e por morar no Sobrado é a chave que Erico Verissimo criou para virar a história que compreende sete romances, quase três mil páginas. Nisso, nesse aspecto códico do personagem protagonista em relação a toda obra, encontram-se a relação do ator com os demais. É absolutamente imperdível as cenas de Rodrigo Fiatt com Isandria Fermiano, que faz Maria Valéria. Para que eu não me alongue, coisa que tenho vontade de fazer, vou levantar apenas um detalhe dessa atriz cujo trabalho eu só agora conheci: não há um fonema destoante na voz dada à personagem. Só pela voz, a atriz expressa o traço angular da mulher gaúcha segundo Veríssimo: firme, convergente, atemporal. Quando Maria Valéria fala, é Dona Henriqueta Terra, mãe de Ana, cento e cinqüenta anos atrás, quem clama. E a dona da velha tesoura que faz o parto da Aurora morta quem conversa com o índio Pedro Missioneiro dono do punhal agora nas mãos de Rodrigo, filho de Licurgo.

RITMO DESCE

Em dois momentos, o ritmo cai. Duas cenas ilustrativas: a infância e a trova. Em uma, há a quebra da situação de guerra, Rodrigo e Toríbio são os filhos de Licurgo, presos em casa em função do sítio. Na literatura, são o reinício. Erico Verissimo começa ali a destruir em cinco romances o Rio Grande que construiu em dois. É o Dr. Rodrigo Terra Cambará que concentrará o protagonismo de O Retrato e O Arquipélago, conservando em si a visão do gaúcho no período histórico que hoje sabemos ser entre ditaduras. O gaúcho afetado e metido a besta (sugiro um passeio na Pe. Chagas ou na Dineylandia Gramado), sempre envolvido com política (tirando os mineiros Carlos Luz, que ficou três dias, e Tancredo Neves, que nem assumiu, é daqui que saíram o maior número (seis!) de presidentes do Brasil.) e com mania de ditar a moda (Gisele?), mas, no fundo, um machão barranqueador, sem escrúpulos (líder na inandimplência nacional), nem paciência. Essa não é a visão estabelecida nO Sobrado. Licurgo não se permite abrir o casarão mesmo na iminência da morte de sua esposa, tamanha é a importância dada a honra, característica de um personagem mítico, tal qual os demais da primeira parte (O Continente). E quando se sensibiliza, Verissimo lhe traz a redenção terminando a guerra. A cena dos meninos, assim, descontextualizada no recorte capitular no primeiro terço da obra, bóia. Estranha é ainda a força que Philipe Philippsen e Filipe Rossato fazem para parecer crianças. A mesma força foi felizmente evitada por Rita Maurício, também intérprete de uma personagem cuja idade é bastante distante da dela. No segundo caso, o resultado foi extremamente positivo, como também vários outros casos que só não vou detalhar aqui para que o texto não fique muito mais extenso do que já está. Quanto à cena da trova, recupera-se o Angico, a fazenda dos Cambará. Licurgo é muito mais um homem do campo do que da cidade. E o Dr. Rodrigo, saberemos, irá se abastecer várias vezes na solidão do campo, numa clara alusão à Fazenda Itu, de Getúlio Vargas. Também descontextualizada, a cena possibilita a perda do ritmo. O retomar é mérito da direção.

INÊS MAROCCO

Juntar um elenco de atores experientes num texto clássico com uma montagem recheada de recursos visuais e atingir um bom resultado, graças a Deus, não é coisa bastante rara em Porto Alegre. Tirando Rodrigo Fiatt, recentemente em cartaz numa badalada produção do circuito comercial, não lembro de ter visto os demais atores em outras produções comerciais (não Mostra DAD, não Novas Caras) em anos anteriores nem nas 58 peças a que assisti desde primeiro de janeiro desse ano até ontem. O espetáculo O Sobrado também não tem helicóptero entrando em cena como em Miss Saigon (Hairspray estreou ontem no Rio de Janeiro!), nem trilha em 5.1, nem mesmo cortina “de abre e fecha”. E duas horas se passam sem que você perca a vontade de continuar assistindo, mesmo após duas pequenas perdas de ritmo. De elásticos, Marocco constrói um labirinto. Com três lençóis (?) brancos, Marocco nos dá um belíssimo flashback. Com uma única porta, vários ambientes são construídos. É nessa simplicidade que não nos resta medo de dizer “O Sobrado é mais teatro do que produções cheias de recursos”. Não falo em qualidade, porque os musicais de WestEnd, um dia, serão minha tese de doutorado. Falo em uso do que o teatro lhe oferece. “O Tempo e o Vento” é literatura e a dramaturgia, embora tenha havido a versão cinematográfica, não pré-existe ao Grupo Cerco. Assim, a direção de Inês Marocco, excelente enquanto teatro, continua a excelência empregada na atualização de um sistema, antes bidimensional e não-etéreo, para o teatro não dimensional porque não só lingüístico. Não há resumo, não há cortes, não há supressão de informação na atualização de um gênero para o outro. O Sobrado de Marocco caminha em paralelo aO Sobrado de Verissimo, respeitadas as condições que cada gênero possibilita e o grande valor de cada um.

IDENTIDADE

Quando na página 08 do primeiro livro, Liroca diz “Água para Maria Valéria” entendemos o valor dos vínculos. Não era água para qualquer um. Maria Valéria e o Sobrado tornavam o simples soldado maragato alguém diferente em relação aos demais do seu grupo. Também não era qualquer coisa para Maria Valéria. A necessidade de água nos faz humanos e humanos ainda com vida. O Sobrado de Santa Fé não é, também, qualquer história em sete livros. J. K. Rowling tem a sua, mas Hogwarts está longe de fazer os britânicos repensar sua identidade. Montar O Sobrado é mexer com o sotaque, com o costume, com o vento, com o passado, com as laranjas e as guerras, com os amores sedimentados, com os ruídos de rocas e as cadeiras de balanço que, para o Rio Grande, tem outro valor.

E é esse valor que enche o coração, queima mas não destrói as cinzas, ilumina mas não esclarece, afaga mas não aperta.

Shalom!
*
*
ELENCO
Anildo Michelotto – Florêncio, Inocêncio, Capitão Rodrigo, Peão
Celso Zanini – Liroca, Antero, Coronel Alvino Amaral
Elisa Heidrich – Santo, Tinoco, Menina, Peão, Coro de Mulheres
Filipe Rossato – Rodrigo, Peão
Isandria Fermiano – Maria Valéria
Kalisy Cabeda – Santo, Sombra de Pedro Malasarte, Menina, Peão, Coro de Mulheres
Luís Franke – Fandango, Pedro Terra
Manoela Wunderlich – Luzia, Peão, Coro de Mulheres
Marina Kerber – Santo, Sombra do Homem à Cavalo, Peão, Corpo de Mulheres
Martina Fröhlich – Alice, Santo, Coro de Mulheres
Mirah Laline – Laurinda, Santo, Menina, Coro de Mulheres
Philipe Philippsen – Toríbio, Bolívar, Peão
Rita Maurício – Bibiana, Santo
Rodrigo Fiatt – Licurgo
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Promoção: Departamento de Arte Dramática do Instituto de Artes da UFRGS
Direção: Inês Alcaraz Marocco
Adaptação e criação: O grupo
Cenografia: Élcio Rossini
Figurinos: Rô Cortinhas
Assistentes de Figurino: Amanda Rocha, André Dullius, Carolina C. Puccini e Geluza Tagliaro
Desenho de luz e operação: Cláudia de Bem
Assistência de Direção: Isandria Fermiano, Kalisy Cabeda e Rodrigo Fiatt
Dramaturgia: Celso Zanini, Elisa Heidrich, Isandria Fermiano, Marina Kerber, Mirah Laline e Rodrigo Fiatt
Trilha Sonora: Celso Zanini, Luís Franke, Martina Fröhlich e Philipe Philippsen
Pesquisa Histórica: Filipe Rossato e Philipe Philippsen
Produção: Inês Alcaraz Marocco, Manoela Wunderlich, Martina Fröhlich e Patrícia Gatteli
Contra Regragem: Beliza Gonzales e Adriana Sommacal
Bilheteria: Patrícia Gatteli

8 de jul. de 2009

A arca de Noé


Foto: Gustavo Razzera


Por baixo da toga ou dentro da arca*


Outro dia olhei a foto de um amigo em sua formatura da pré-escola. Diferente da minha que era vermelha, a bata dele era azul.

Menininha, que graça é você
Teu bicho papão

A hora em que Álvaro Vilaverde retira uma criança da platéia e faz com que, sentada no meio do palco, todas as boas energias se convertam para ela é quando nosso coração infla e nos lembramos de que somos humanos. Ao nosso lado, desconhecidos ou não, mas humanos como nós, vivenciamos o teatro, sentindo que é, em instantes como esse, que a arte se torna ritual. Crianças um dia, crianças ainda, crianças. Juntos, olhos nela como se pudéssemos olhar todas, adultos dizemos “cuide-se”, ou “aproveite” ou, quem sabe, “prepare-se”! Juntos na infância vivida, na infância perdida, na infância mantida. Juntos no medo do bicho papão. Juntos na lembrança ou na percepção ou vivência do “começando a viver”. Criança é potência. Dela vem o que virá.

A Arca de Noé”, produção da Laura Leão, da Lívia Perrone e da Patrícia Machado, fez com que, pela primeira vez em dez, onze anos, eu lembrasse de “Uma professorinha muito maluquinha” da Cia. Stravanganza ( infelizmente não há nenhuma foto desse espetáculo no Google Imagens), que me fazia lembrar de mim mesmo, na minha pré-escola, antes de vestir a toga vermelhinha. Volto ao meu passado infantil e, agora, reflito, por que, ao invés de envelhecer as crianças, são os adultos que se infantilizam em momentos como esse? Não é doce, nem colorido ser adulto? Não é leve? Não é mágico e especial ter trinta, vinte e dois, sessenta anos? Sim, acredito que, embora não sempre, às vezes é. Mas é na infância que reside a ingenuidade, que não tem nada a ver com burrice, mas que nos faz pensar sobre a mania de relacionarmos o que já vimos com o que estamos vendo, empregos antigos com o atual, velhas amizades como as que tenho agora. A criança não tem passado, ainda não consegue ver dimensões e não entende sobre o tempo.

“A Arca de Noé” não tem história. Os atores relatam o mito do dilúvio como motivo para as músicas. Daí o principal diferencial desta produção, de Zé Adão Barbosa, dá já citada direção de Adriane Mottola. Lá a dramaturgia era fechada. Aqui é potente. Lá havia potência. Aqui há dramaturgia, mas entendendo o espetáculo enquanto atualização de um sistema, reconhecemos que cada processo consiste em (re)hierarquizar sub-sistemas de acordo com o gênero que se escolhe. Aqui é uma coletânea de músicas infantis compostas e/ou organizadas por Toquinho e por Vinícius de Moraes. Lá era a atualização para o teatro dos desenhos e textos de Ziraldo. Assim, não é pela narrativa da história bíblica que o aqui nos prende. É pela capacidade de produzir (de plantar) em nós nossas próprias histórias. (Seria “A Arca de Noé” um espetáculo infantil pós-dramático?)

Os atores Álvaro Vilaverde, Beto Chedid, Lívia Perrone, Regina Rossi e Simone Rasslan se chamam pelo nome e usam um figurino (Titi Lopes) nada além de muito bonito. O cenário, bastante colorido, é de uma simplicidade imensa: não produz ambientes, mas serve unicamente para colorir o espaço e dar abrigo para elementos que não devem ser vistos em determinados momentos. Da luz (Carlos Azevedo) se diz o mesmo. Ou seja, não é através de elementos técnicos que essa produção nos prende e nos encanta. É, com certeza, pela capacidade do figurino de nos fazer lembrar nos personagens que nos fizeram sonhar; pela força do cenário que nos faz recordar as previsões que tínhamos sobre os lugares que, no futuro, visitaríamos; pela presença da luz que nos (e)leva ao nosso antigo eu. E, sobretudo, traz de volta um tempo em que não nos chamávamos por professor, escritor, mestrando, mas apenas pelo próprio nome.

A experiência “A Arca de Noé” é incomparável. Podemos dizer que ela se aproxima de outras experiências inesquecíveis e nenhum pouco menores, mas é difícil falar sobre a forma como as crianças e os adultos reagem ao que acontece no palco. E aí me lembro do que se vem estudando sobre a performance, o inusitado, o aqui e agora do palco, da cena, do cotidiano. Consigo, pelo menos, observar que a incomparabilidade da experiência coletiva acontece porque é formada de pequenas experiências individuais. A direção musical de Marcelo Delacroix faz-nos contemplar Simone Rasslan, ela só um espetáculo a parte. O exato se vê na docilidade forte da voz de Vilaverde e na graciosidade dos outros três atores já citados. De um modo geral, mas não menos individual, de Noé a São Francisco cada humano chega, nessa assistência, a ficar próximo de Deus, mas não distante do humano. E o que vem a ser isso se não a crença em Jesus Cristo, um Deus que se faz homem?

Eis que olhamos para esse espaço dentro de nós, esse lugar sagrado que reservamos para momentos em que queremos nos abrigar para não sermos vistos porque é hora de não assim sermos. É lá que encontramos os elementos em potência, o que virá a ser o que for, a volta, o retorno, o recomeço, a nova chance.

Afinal, seja azul ou vermelhinha, preta , longa e solene, é o que está dentro que nos faz sermos individualmente plural, protegidos de qualquer dilúvio.

Fique assim, fique assim, sempre assim
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
E também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim
De tudo o que eu amei.

* Texto também publicado na Revista Informe C3 #6




*
FICHA TÉCNICA
Direção: Zé Adão Barbosa
Direção Musical: Marcelo Delacroix
Elenco:
Álvaro Vilaverde
Beto Chedid
Lívia Perrone
Regina Rossi
Simone Rasslan
Preparação Vocal: Simone Rasslan
Preparação Corporal: Regina Rossi
Figurino: Titi Lopes
Bonecos: Tânia Farias
Luz: Carlos Azevedo
Produção: Laura Leão, Lívia Perrone e Patrícia Machado
Assessoria de Imprensa: Lauro Ramalho

4 de jul. de 2009

América Café




Foto: Artur José Pinto

Eu me despeço e vou pra capital

Por motivos óbvios, não escrevi sobre o espetáculo “O Vendedor de Palavras” do Grupo Mototóti. Mas uma música da peça, composta por Fernanda Beppler (que também compôs as músicas de “A Canção de Assis”, dir. Gilberto Fonseca; e “O Homem da Cabeça de Papelão”, dir. Hermes Bernardi), voltou à minha cabeça ontem à noite.

“Adeus! Adeus, pedacinho de chão onde eu sou tão feliz,
Mas sei que é chegada hora de partir.

Eu dou adeus aos meus avós e tudo que eu deixo aqui,
Para a lagoa, o píer e o milharal.
Eu me despeço, pois entendi o que eu tinha para cumprir aqui já fiz
E agora eu vou prá capital!”

Junto com essa música, recordei uma cena bastante clássica da história do musical: a abertura de O Fantasma da Ópera. Um lustre imenso está no chão fazendo companhia a muitos outros objetos de tamanhos e valores diferenciados, mas igualmente cheios de pó, velhos, esquecidos. A peça de Andrew Lloyd Weber começa com um leilão. Christine, já velha, volta à Ópera de Paris para rever e, talvez, comprar uma peça que conserva em suas formas a chave para reencontrar seu passado. Compra. E, numa apoteose musical bem clássica, o lustre sobe, o palco se ilumina, a velharia dá lugar ao esplendor do Grande Teatro. Christine está de volta ao seu passado.

E, se alguém lembrou de Titanic, está certo. Quando Rose DeWitt Bukater vê o casco do transatlântico e se vê nele, o mesmo efeito acontece. James Cameron faz nascer da ferrugem, o brilho; do lodo, a brancura das paredes; das rugas, a tenacidade da protagonista em sua juventude.

É exatamente essa a situação inicial de América Café, espetáculo escrito e dirigido por Artur José Pinto. Dona Leda volta ao lugar onde trabalhou nos anos 40 e o encontra em pedaços, velho, sujo, esquecido. Numa chave subjetiva, a personagem vê-se de volta aqueles anos, suas músicas, seu linguajar, seus conflitos. Situar o espectador na situação de encontro com o passado é um meio bastante baixo de sensibilizar a visão, embaçar a história, esconder falhas na produção cênica. Quem olha para o passado, esquece do presente: quem assiste fica, o tempo inteiro e de uma forma muito forte, com as próprias lembranças na cabeça, vendo-se em situação similar. Eu, por exemplo, me vi aos 16 anos visitando as casas onde morei na minha infância em São Paulo, incluindo a que nasci (visitei todas!), ou, no ano passado, entrando na minha sala de aula do Colégio Dom Feliciano, e sentando na minha mesa de 1996. Experimentar a sensação de encontrar-se consigo mesmo e avaliar se os objetivos outrora traçados agora foram conquistados é um jeito de ocupar a mente do espectador, produzindo uma catarse paralela à ficção. É nesse imediatismo que os teóricos esnobes do mundo se baseiam para dizer que o melodrama, que a comercialização da arte, que a banalização das emoções, essas desprovidas de reflexão, são pobres, quando não também vulgares. Mesmo ocupado com a peça e com minhas próprias lembranças de lembranças passadas, consegui ter uma folguinha para olhar a platéia: a Álvaro Moreyra, que não é muito grande, estava cheia. Cheia como nas platéias de Pedro Delgado, de Homens de Perto, de Cama de Casal, de Titanic, dO fantasma da Ópera, e Caminho das Índias. Porque esse negócio de achar que, para valorizar o teatro difícil é preciso falar mal do teatro fácil, é discurso fajuto de quem não precisa tirar do bordereau seu aluguel e seu queijo Quaker. É preciso fazer bem o que está para ser feito.

Defendido o teatro lotado (aqui sinônimo de teatro sem muitas experimentações, baseado na mais do que comprovada estrutura dramática circular, em expressões bastantes próximas daquilo que se tem como cotidiano dentro da esfera ficcional, etc, etc) voltemos à produção dA Caixa de Pandora APCEF/RS. O espetáculo tem vários pontos a enaltecer além da situação dramática inicial (e, pela lógica, final). Os atores cantam muito bem, a pesquisa de figurino é muito rica (embora o seu uso seja formal demais) e a distribuição do cenário adequada. A protagonista Leda (Vilma Loner) chega perto de uma construção mais televisiva, destoando dos demais, mas promovendo um alívio no público diante dos exagerados estereótipos do resto do grande elenco. Rudimar, o herói da trama, interpretado por Gabriel Bolzan, usa e abusa do seu carisma, fazendo como Loner: levando a interpretação mais para o lado da telinha, para o nosso bem.

As situações propostas pelo texto são sofríveis. Não fossem as músicas, pelas quais ansiamos ouvir, o espetáculo, todo narrativo, seria um fracasso. Os diálogos são pobres, sem evolução e nem riqueza. Repetem o que os figurinos já dizem, o que as caras e bocas informam, o que o contexto já define. Inexperientes, os atores em sua maioria baseiam-se naquilo que imagina-se serem as rubricas e em nada além. Casca de figuras que, individualmente, agradam, mas que, no conjunto, chateiam. É recorrente o pensar que nada está acontecendo e, em se tratando de uma peça que, desde o primeiro minuto, se apresenta como querendo contar uma história, nada acontecer é uma discrepância.

Sem recursos, preciso dizer, levar um elenco de dezesseis pessoas à cena não é coisa fácil. Ainda bem que, tampouco, não é impossível. Importante é fazer bem para que o público volte.

Fazer bem uma coisa, seja ela qual for, é terminar com ela. É encerrar um ciclo. Quando volto para Gravataí ou para São Paulo ou mesmo para o ontem, volto para saber que estou aqui. Assim, Leda resolve-se com suas lembranças do América Café, Christine faz as pazes com o seu fantasma, Rose encontra-se com o seu Jack.

Podemos, pois, ir pra capital.

FICHA TÉCNICA COM FOTOS

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