24 de mai. de 2009

Negrinho do Pastoreio


Foto: Jorge Etecheber


Arroz com feijão*

Foi na saída do espetáculo Medéia, direção de Luciano Alabarse, no Teatro São Pedro, que ouvi uma das avaliações mais interessantes sobre uma peça feita aqui em Porto Alegre. Uma neta (?) conversava com sua avó (?) sobre a tragédia a que todos tínhamos acabado de assistir quando a senhora disse: “É um espetáculo importante.” Não é apenas bom. Não é apenas adequado. Não apenas “querido” e, muito menos, interessante. “É um espetáculo importante!” O Negrinho do Pastoreio, na mesma intensidade, é um espetáculo importante.

Código Teatral: trocando em miúdos.

É sabido: arroz com feijão é o prato típico brasileiro.

Olhos abertos: o arroz é também o prato típico da culinária oriental (japonesa?). Feito de uma forma determinada é o que essencialmente comemos quando vamos a um restaurante onde servem também peixe cru. Da mesma forma, o feijão um pouco mais apimentado é servido dentro de um pão num restaurante mexicano da Cidade Baixa como prato típico daquele país. Assim, quando dizemos que “arroz com feijão” é o prato típico da culinária brasileira, não nos vem à cabeça qualquer feijão, nem um arroz que não seja branco e soltinho. O prato é redondo e a comida está quente. O feijão é preto e pedaços de carne não estão inclusos na imagem-base. Arroz com feijão é arroz com feijão e pronto.

Não é qualquer Negrinho do Pastoreio que é importante. O que me vem à cabeça é o espetáculo produzido pela Oigalê Cooperativa de Artistas Teatrais.

A hospitalidade, marca da cultura gaúcha, que serve chimarrão a desconhecidos e divide normalmente cangas protetoras contra o pó do Parque da Redenção, anuncia o espetáculo que vai começar. A voz forte, seja ela grave ou aguda, de quem não tem vergonha de si e reconhece-se como dominante no ambiente. “Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho” – já dizia o célebre Capitão Rodrigo Cambará em “O Tempo e o Vento” de Erico Verissimo, sem nunca ter tido acento.

Botas de couro, bombachas, saias longas e palas. A lenda do Negrinho do Pastoreio, cristalizada pelo contista Simões Lopes Neto, não é uma lenda urbana dos magrinhos do Bonfa. Estamos na estância, no pampa, num tempo e num espaço do imaginário coletivo rio-grandense, onde está fundamentada toda a base da figura mítica que chamamos de gaúcho.

Concurso de trova (na cena do desafio entre o estancieiro e seu vizinho), a carreira (entre o cavalo baio e o cavalo mouro), a oposição entre o senhor da estância (que não tem nada a ver com um senhor de escravos de cartola a la “Escrava Isaura”) e aqueles a quem o primeiro nem mesmo olha nos olhos (escravos, pedintes, vizinhos, inimigos e, na mesma gamela , a própria esposa) são elementos dessa dramaturgia tão rica e gratamente exposta de forma tão coesa, sensível e nobre.
As atuações, que nos fazem pensar não apenas em teatro, mas em teatro de rua, nos convocam a pensar sobre o que se conhece por “presença cênica”. O Oigalê impõe a sua presença (André Carrera chama o teatro de rua de “teatro de invasão”) e não nos deixa outra alternativa que não corresponder a sua simpatia. O espaço cênico está separado por uma linha de erva mate e não nos é permitida a entrada. Mas os atores desfilam pelo espaço do público, autores de soluções para eventos que surgem ao acaso, como um homem que insiste em querer participar fisicamente das cenas, uma criança que informa o paradeiro misterioso de tal personagem ou uma marcação que não aconteceu como estava previsto em um momento em que eu, público, estava absorto com algum outro acontecimento. O ritmo nunca é quebrado, o universo nunca é desfeito e o épico brechtiniano sobrevive em Porto Alegre, quando nos emocionamos com as músicas e com a figura de Nossa Senhora Aparecida, sem conseguir perder de vista a ordem de quem é a vez na roda de chimarrão que eu acabo de servir.

Entender um elemento cênico como um código teatral é vê-lo, ao mesmo tempo, de duas formas: como parte de um sistema com outros códigos e como, o próprio elemento, um sistema micro cujas significações só se dão pelas relações resultantes entre o arroz e tudo o que se relaciona a ele e também os distanciamentos daquilo que não é a ele relacionável e o mesmo com o feijão. A importância dessa assistência consciente, prazer em ver esse espetáculo do Oigalê, está não por isso ou por aquilo, mas por tudo: pela história, pela cultura, e, principalmente, pela sensação de unidade que uma fruição como essa possibilita ao seu público.

Quem mora longe do Brasil saliva muito mais por um prato de arroz com feijão do que por qualquer outra comida.

* Crítica também publicada na Revista Informe C3 #4.

*
Ficha Técnica

Texto Simões Lopes Neto
Adaptação Hamilton Leite e Paulo Gaiger
Direção Sergio Eitchichury
Atuação Giancarlo Carlomagno, Hamilton Leite, Juliana Kersting, Paulo Brasil e Vera Parenza
Músicas Gustavo Finkler
Preparação vocal Cristiano Hanssen
Figurino Vera Parenza
Adereços Oigalê C.A.T
Arte gráfica Vera Parenza
Iluminações Paulo Fontes
Máscaras Ricardo Vivian

17 de mai. de 2009

Agora Eu Era, corte 1


Foto: Daniela Agostini

Vi

Conheci meu último namorado no Porão do Beco e com ele convivi durante um ano. Tomei o maior porre foreva and eva da minha vida lá quando terminamos. Prometi nunca mais pisar naquele preto e branco. O lugar me traz memórias enough.

E eu sou público de mim mesmo, do espetáculo contado a mim pelos degraus e paredes, luzes e grades.

João Pedro Madureira usou tudo isso, isso que eu nem ousei re-narrar aqui, sem o meu consentimento, para construir: “Agora Eu Era, corte 1”.

Vi seus atores na pista dançando com os peitos nus e lembrei das muitas festas, dos muitos povos, das multidões allstarianas a bailar em volta de si mesmas como redemoinhos. Tufões só existem por um motivo: concentrar. O vento se mobiliza para organizar aquilo que é centro e aquilo que não é. O que é centro? Ao dançar como redemoinho, você se encontra. E eu vi eu mesmo me organizando tantas e tantas vezes ao som do Schutz.

Vi os sonhos e as idealizações se unirem. De um lado o impossível ou invisível, de outro o palpável: os quatro atores se tornaram uma família, pai, mãe, casal de filhos. No palco, uma dança de cadeiras sem a regra do retirar a cadeira e o cair pela ausência dela. Os quatro atores: Lucas Sampaio, Rafael Régoli, Sofia Ferreira e Vinícius Meneguzzi, na situação de cada personagem-familiar. Stop. Lucas é o pai, Rafael a mãe, Sofia a filha e Vinícius o filho. TV ligada, o filho entra nela e qualquer semelhança com “A rosa púrpura do Cairo” não é mera coincidência. Do estereótipo, fomos ao que pode vir a ser. E a história sai do palco e volta pra pista. Me vi casado como já fui, mais por amor aos meus sonhos do que por amor ao cônjuge com todas as bolachas Maria que a palavra cônjuge traz. Também vi meus pais, juntos há 32 anos, fiéis até que a morte os separe, mesmo sem véu, grinalda e aliança.

O filho traz lápis coloridos a sua irmã e diz: “tatuagem dói”. “Maria Luiza Sá e Madureira” (um nome assim só pode ser uma citação!), autora do texto, poderia ter acrescentado que tatuagem dói porque fica pra sempre. Para sempre é muito tempo, mas é bonito e forte de se dizer. Então, dizemos pela autora, pelos atores, por nós mesmos, sem nos responsabilizarmos de todo. O filho quer ser a filha. O filho é gay, numa frase cujo sujeito sabe-se como sujeito, mas desconhece a regra de que um sujeito só é um sujeito porque há também um predicado a ele referido. Então, “o filho”. E o “é” é coisa nossa que o pomos como tal. Coisa minha. Assumo. Também eu sou, ora essa.

“Agora Eu Era, corte 1” me conta sobre viver os sonhos dos outros. O filho volta ao palco e canta uma música que não é dele. O rádio colorido falha e ele bate nele. Para mim, o rádio lembra não ser aquilo que se pensa ser. O rádio não diz o que é, mas diz algo que muita gente pensa ser. Ele, o aparelho, merece mesmo apanhar. Lembro do meu pai batendo na televisão para ela funcionar como ele queria. Para funcionar como havia sido prescrito para que ela funcionasse. Não, nunca apanhei do meu pai. Não se preocupem!

O filho volta à pista dando continuidade ao vai e vem, tornando palco e pista uma coisa só. E a cena mais linda acontece: com um giz, o filho desenha o caminho que deve ser seguido pela irmã no chão. Desenha pegadas em devir.

Pegadas são índices de que alguém pisou ali. As pegadas que o filho desenha para a filha, são ordens a que ela deve seguir e segue. São pegadas em potência, passos em potência. E a gente em suspensão enquanto a bailarina apóia-se num pé só caminhando pelo que lhe é determinado. E eu chorei porque planejo a minha vida, porque desenho minhas pegadas, embora nem sempre pise nelas.

A mãe fuma porque o filho usa batom. O pai joga tennis porque jogar tennis é o predicado de seu sujeito nascido assim sem refletir sobre o que é. E o casal discute a originalidade da raça japonesa e a importância de dizer para ajudar. Uma fala não combina com a outra, mas a conversa se estabelece para a gente. Teatro é para o público. E os atores são sempre público de suas contra-cenas. E nem sempre eu faço aquilo que eu digo, mas tudo o que acontece na minha vida já foi dito por mim.

A história termina num vôo final dos quatro personagens, e eu vi o amanhecer na porta do Beco antes do tempo em que via o diário amanhecer da janela corajosa da minha sacada, nunca mais fechada desde que decidi namorar comigo mesmo por um tempo.

Assim, eu vi “Agora Eu Era, corte 1” e, numa leitura (bem) parcial de Lehmann, vi que o termo “Teatro Pós-dramático”, também outra bolacha Maria, expressa mesmo esse gênero de teatro em que o cenário (Porão do Beco – pista e palco) não conversa com a luz (focos transversais nem sempre fixos, mas sempre uniformes) que também não dá papo para o figurino (calças, peitos nus, branco sujo e preto sem ser limpo) que também não quer saber de beijinho com o diálogo que, aliás, não se entende nem consigo mesmo. Mas que há, em cada elemento (tempo, ação, espaço) conversas paralelas, produtoras de sentido que se engendram em história(s) dizendo que teatro pós-dramático não é o mesmo que teatro não-dramático. No novo espaço teatral da capital gaúcha, esse produção da Ambrosia Cultural e do Beco 203, “Agora Eu Era, corte 1”, excelente experiência de estréia do Grupo “Vai!”, apresenta, não uma, mas várias histórias, sem dúvida, por tudo isso, muito bem contadas!

Eu vi a minha.

Narrem nos seus blogs as suas.

(Ou nesse aqui.)


*

Direção: João Pedro Madureira
Assistência de direção: Vinícius Meneguzzi
Textos: Maria Luiza Sá e Madureira e Grupo
Elenco: Lucas Sampaio, Rafael Régoli, Sofia Ferreira e Vinícius Meneguzzi
Iluminação: Mariana Terra
Vídeos: Romy Pocztaruk
Pesquisa de trilha sonora: João Pedro Madureira
Direção de Produção: Laura Leão

12 de mai. de 2009

O que seria do vermelho se não fosse o azul



Foto: Roberto Oliveira


Há o que há


Há pessoas e pessoas.

Há quem sinta o cheiro de gordura entrar pela janela, vindo de dois andares abaixo. Há quem ouça a entrada da novela com a televisão desligada por causa do vizinho do prédio ao lado. Tem gente que prefere Miami a Machu Picchu, e lazanha a pizza. Tem gente que sempre acha o Wally. Que esquece do cantor, mas nunca da melodia. Que odeia chimarrão. Que fica horas sem ir ao banheiro. Tem gente que nunca esquece do meu nome e pessoas que gravam o meu rosto, mas me chamam de Ricardo. E aqueles que são fascinados por uma boa história, como eu.

“O que seria do vermelho se não fosse o azul”, nova produção do Depósito de Teatro, dura quase uma hora, mas só nos últimos vinte minutos sentimos que há uma história sendo contada. Até aí seis atores lamentam a ausência de um sétimo que faria o protagonista numa peça teatral que será ou não apresentada sem ele. Os seis se dividem em dois grupos e quarenta minutos são preenchidos com idas e vindas, piruetas e paradas, diálogos, imagens, músicas e silêncios sem que haja uma diegese que leve isso tudo para algum lugar.

Fiz comigo mesmo um desafio: quanto tempo isso vai durar na minha mente?

9 dias depois...

Lucas Sampaio era chamado de Lucas, Juliano Canal de Juliano, Elisa Heidrich de Elisa e, assim, Francine Kliemann, Luiza Pezzi e Fabiano Silveira. Os figurinos eram composições geométricas com variações das cores branco, preto, vermelho e azul. O cenário era limpo, mas com o uso, através de painel, das mesmas cores. Ficou na minha cabeça também várias canções e marcações limpas, direções bem claras, gestos precisos. Uma das pequenas incursões no campo da narrativa está um “teatro de bonecos” em que uma Bota, uma Vassoura e um Balde conversam num diálogo extremamente rico e interessante, apesar de eu não me lembrar exatamente que diálogo era esse.

Também há uma cena com um vendedor de fitas e outras com personagens bastantes diferentes uns dos outros numa tentativa dos seis atores-personagens construirem juntos uma peça que substitua a que haveria caso o sétimo ator-personagem não tivesse faltado. A mensagem primeira diz respeito ao valor do trabalho em equipe, à importância de abdicar de certas preferências pessoais para o bem comum, sem que haja prejuízo à individualidade.

Nos últimos minutos, os seis atores sem direção conseguem se unir e viabilizar para o seu público, nós, um espetáculo (dentro do espetáculo dirigido por Roberto Oliveira) em que há a busca da tão falada “cor de colorido”, um misto de várias cores que expressa a diversidade, tema já tão muitas vezes batido em dezenas de fábulas infantis.

Mas não posso dizer que ficou só isso após esses nove dias. Várias vezes, durante a peça, e não me esqueço disso, me peguei olhando um outro, um terceiro espetáculo: a assistência do público infantil presente no Teatro Renascença. Crianças de várias idades completamente dentro do que os atores propunham, vibrando com o que viam, batendo palmas, participando, fruindo. Com eles, a partir das exteriozações deles, nós adultos sabichões que achamos que entendemos as crianças e podemos dizer pra elas o que é legal e o que não é, éramos convidados a rir também, a curtir a ausência de uma motivação narrativa forte acompanhada do excesso de imagens e movimentos tão cativantes. Roberto Oliveira e seu elenco e equipe técnica, afinados, unânimes, não deixam uma única intenção fora do lugar, mesmo que esse lugar não seja um drama. Tudo é organizado, eficiente e, acho que as crianças daquele dia concordariam comigo, divertido.

O lugar do vermelho e do azul é, quem sabe, o próprio colorido e não o arco-íris. Esse sim precisa de início e de fim, de sol e de chuva e também de pote de ouro para oferecer quem o trilhou sempre. O colorido só precisa existir no olhar de quem vive, por exemplo, o teatro, seja de que idade você for.

Há cores e cores... Ainda bem!
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Elenco:

Elisa Heidrich
Fabiano Silveira
Francine Kliemann
Juliano Canal
Lucas Sampaio
Luiza Sperb
Ficha Técnica:
Cenário: Modesto Fortuna e Rudinei Morales
Figurinos: Ana Fuchs e Ig Borghese
Direção Musical: Roberto Chedid
Bonecos: Guilherme Luchsinger
Adereços: Francisco de los Santos
Músicas: Roberto Chedid
Letras: Roberto Oliveira
Projeto Gráfico Lucas Sampaio e Yheuriet Kalil
Divulgação: Luísa Barros
Produção: Depósito de Teatro
Texto e Direção: Roberto Oliveira

3 de mai. de 2009

A decisão



Foto: Débora Birck


A liberdade de Ana Campo

A liberdade é nada mais que a liberdade de fazer o que você sabe que tem que ser feito.

O Grupo Trilho é corajoso em dizer através do teatro. É corajoso em re-dizer Brecht, em enfrentar as oito décadas que nos separam desse texto, em aproximar o público de Porto Alegre de um lugar onde a revolução comunista é uma realidade que passa pelas portas e enche os travesseiros. O que temos a ver com isso?

Lula é o nosso presidente e é fundador do partido dos trabalhadores. A América do Sul é quase toda governada por partidos que outrora se disseram de esquerda. Barack Obama, presidente dos States, gosta de Lula e da América Latina. O presidente do Irã, que não gosta de judeus, nem de homossexuais e enforcou uma pintora em praça pública na manhã de ontem sem provas está no Brasil. Americanos já podem viajar para Cuba. Hugo Chavez será o novo presidente ditador “queridão” da Venezuela. E ouve-se dizer que Bin Laden já morreu.

Esse ano não trocaram o terno de Lenin...

E um grupo de teatro me vem falar de comunismo, de camaradas, de panfletos e de perseguição política... Se o fosse o “Bailei na Curva”, nos fazendo chorar com Roberto Carlos, pantalonas e cubas libre pelos desaparecidos na ditadura direitíssima do Brasil até vá lá... Mas Brecht !?

Ts ts ts...

Grupo Trilho de Teatro Popular: embora um trilho só tenha dois lados, pois um trem só pode ir ou só pode vir, mas nunca andar na transversal, o grupo do Bairro Humaitá, abre um espaço na platéia que tem quatro lados e nenhuma parede. Como com aqueles que geralmente vêem o trem passar, os atores sem diretor assinante, passam por todos os lados do trilho aberto, incluindo embaixo e em cima, dentro e fora. Dentro e fora de todos os signos que eles mesmos, puxando do texto, os fazem nascer na Cidade Baixa, no teatro da Rua da República, depois do Pingüim, depois do Jóia, quase em frente ao Namastê, antes do Pão dos Pobres. Ao lado de uma escola.

“Aquele que diz sim, aquele que diz não: a decisão” é uma peça tipologicamente enquadrada como didática. O grupo formado por oito atores e (in)(ex)formante de vários signos concentrados é mais uma grata surpresa desse projeto “Novas Caras” que, pela segunda vez esse ano, é muito bem-vindo. Não há um figurino fora de centro, um adereço que não seja interessante, um foco de luz que não cumpra seu papel. A trilha está composta para dar leveza na hora certa e enfatizar a atenção naquilo a que devemos prestá-la.

Mas, uma atriz erra o texto. Ana Campo errou o texto mais que um par de vezes.

Não. Eu não lia o texto durante a encenação. Não. Eu não sou daqueles que acham que o texto é um deus intocável. Não. Eu só não gosto quando erram o texto. E Ana Campo errou ele...

Ts ts ts

Atingem o alvo todos os esforços do grupo. Menos aqueles que dizem respeito à corporificação da palavra, o transformar em teatro o que é literatura. Para isso, Brecht aproxima o público do seu texto: porque não quer o texto. Por isso também que essa é uma fábula didática porque quem aprende não é o público, mas todos.

A peça didática ensina quando se atua e não quando se é espectador (KOUDELA, 1991: 13)”, sob essa afirmação Steinweg parte do princípio de que a peça didática é constituída de uma “regra básica” e de uma “regra de realização”. A primeira se norteia pela idéia de uma atuação sem espectadores, onde os próprios encenadores seriam atuantes e observadores de uma seqüência de ações realizando assim uma análise crítica das atitudes e comportamento. A segunda regra se norteia por padrões estéticos que são válidos para a construção de personagens nas peças épicas de espetáculo.*

Assim, é uma pena que só em algumas cenas cada ator se destaca como dominadores da palavra que pronunciam: Daniel Gustavo na cena do charuto, Fábio Castilho quando se revolta, Giovana Zottis na cena do diretor e Drica Lopes (ótima exceção) em quase todas as suas cenas. De resto, é monótono ver sete pessoas dizendo palavras que não combinam com um corpo enquanto uma pessoa brilha.

E quando palavras combinam com o corpo, fica-se nítido que tudo o que é dito é um erro que poderá virar um acerto depois que sair da boca. Acertar ainda na língua é coisa de quem lê ou de quem faz tragédia grega ou texto clássico.

Ana Campo é minha ídola! Salve, Ana Campo! Livre do dramaturgo alemão dos anos trinta, mas com ele mais que todos!

Viva a Revolução!


Ficha Técnica:

Direção: Grupo Trilho
Texto: Bertolt Brecht


Elenco: Ana Campo, Caroline Falero, Daniel Gustavo, Drica Lopes, Fábio Castilhos, Gildo Carvalho dos Santos, Giovanna Zottis e José Carlos Junior.


Cenografia e Figurino: Grupo Trilho
Iluminação: Bruna Immich
Trilha Sonora: José Carlos Junior


Produção: Fábio Castilhos e Marcela Marco

2 de mai. de 2009

Medéia


Foto: Flávio Wild

9 minutos


Em cento e cinquenta e três minutos de duração total, José Baldissera ocupa nove. Descalço, ele entra em cena como um escravo para dizer a sua senhora que fuja, que parta imediatamente porque todos no palácio já sabem que foi ela quem envenenou a filha do Rei, crime pelo qual também morreu o próprio imperador. O nome da senhora é Medéia. Não há ação dramática. Ator e atriz andam de um lado para o outro, mexem os braços e mudam feições. Falam.

Falam.

Falam um texto escrito há dois mil e quatrocentos anos atrás.
Contam sobre algo que já aconteceu num lugar que não vemos.
Anunciam atitudes que vão tomar numa situação futura a que não assistiremos.
Informam.

O destino é a estrutura da tragédia grega. Não há como fruir um espetáculo como esse sem estar sensível para ele. O espetáculo em si é a certeza de que quem se rebela, que quem se levanta, que quem foge à regra sofrerá as conseqüências da ausência de paz, de ordem, de aconchego. Os deuses, embora tenham seus prediletos (Medéia é filha do Sol), são implacáveis com quem não entende o significado da palavra admoestação.

José Baldissera espera sua vez para entrar no último um quarto de apresentação. Espera em silêncio na coxia. Já está vestido. Já está maquiado. E sabe que seu momento chegará. E, embora o cenário não mude no palco do Teatro São Pedro, a cena narrada pelo personagem de Baldissera se constrói na cabeça do público. Para mim, o vestido envenenado era num misto de azul turquesa, azul celeste, roxo e verde. O piso do quarto da princesa era de pedra, mas com cor de madeira. E lençóis brancos estavam na cama em que ela, a nova esposa de Jasão, não se deitou depois de usar vestido. Gostaria de saber como era o mesmo lugar para a pessoa que estava sentada ao meu lado, mas sei que isso não importa. A graça está na certeza de que, para ele, tudo era diferente. Talvez ele tenha sentido um cheiro. Eu não.

José Baldissera dá um grito em cena. O mesmo grito numa sala de aula na Unisinos seria a comprovação de que o grande professor já passou do tempo de se aposentar e que já não tem noção do ridículo. O grito de Baldissera é ridículo de tão feio. Mas lá vem a Übersfeld nos lembrar que são três os referentes do signo teatral. O grito de Baldissera é um grito no mundo, um som alto e forte e o reconhecemos como tal por isso. O grito de Baldissera é um grito de dor do escravo que acaba de ver o seu Rei e sua Princesa morrer terrivelmente. O grito de Baldissera é um grito de qualquer um que sente as conseqüências de erros dos outros, sem ter comedido um único só. A unidade mínima do teatro, a especificidade do que é cênico é justamente o caráter códico de cada acontecimento (ação, sensação ou objeto concreto) que só tem sentido porque esse é construído a partir da relação com outros do mesmo sistema partindo de um ator e chegando a um público. O grito se relaciona com a dor, com a expressão física, com o figurino, o cajado e os pés descalços do ator é lido pelo espectador. O personagem escravo, a narrativa trágica, a relação dos personagens com as divindades, as crenças e os costumes, a grandiosidade dessa história se tornar atual hoje milênios depois. Tudo é peça que se interrelaciona.

O personagem do escravo resume um micro-sistema dentro do sistema maior, Medéia, brilhantemente interpretado por Sandra Dani. Ela, centro dessa grande produção dirigida por Luciano Alabarse.

O que se disse sobre Baldissera também se diz sobre Sandra Dani, os demais atores, os signos todos. Cada um em seu lugar está preso no contexto de forma que não nos é permitido, ao analisar o todo da obra, retirar um único só. Uma ator, um figurino, o som de uma voz, um facho de luz não é um palavra que mantém um significado no além frase. O significado está engendrado no conceito, na concepção. Daí o resultado de uma análise de nove minutos gerar o mesmo resultado que uma visão sobre as quase duas horas do grato Medéia.

Apenas nove minutos.
___
Para baixar o texto de Medéia, clique aqui.
ELENCO:
Sandra Dani
Marcos Contreras
Ida Celina
Lurdes Eloy
Mauro Soares
Alexandre Silva
Paulo Fernandes
José Baldissera
e
Luciana Éboli
Luiza Ollé
Vika Schabbach
Ekin
Elisa Viali
e
Thales de Oliveira
Fernando Zugno
Fabrízio Gorziza
Daniel Bachieri
Tito Ravaglia
e
Vitório Azevedo
Willian Ren Dienstmann
FICHA TÉCNICA:
Direção: Luciano Alabarse
Assitentes de Direção: Marcelo Adams e Rodrigo Lopes
Cenário: Sylvia Moreira
Iluminação: Cláudia De Bem
Figurinos: Rô Cortinhas
Trilha Sonora: Mateus Mapa, Moysés Lopes e Luciano Alabarse
Produção Executiva: Miguel Arcanjo
Assistência de Produção: Antônia Moro

1 de mai. de 2009

IntenCIDADE 1ª: Voar


foto: Patricia Dyonisio

Intensão - Intenção: para além de uma reflexão etimológica

É dito mais ou menos assim:

“Quando as pessoas acendem as luzes de suas casas é porque estão querendo se comunicar.”

E me mexi na cadeira. Nunca acendi a luz da minha casa para me comunicar. Já telefonei. Usei internet. Fui ao pé do ouvido e já falei em megafone. Tal Fernando Pessoa, escrevi minhas cartas de amor ridículas...

Mas nunca acendi uma fucking luz da minha casa para isso.

Fiz, sem saber que estava fazendo.

... Sem intenção. E sem intensão.

Existe uma diferença na origem etimológica da dupla intensão/intenção. As duas vêm do latim, mas a primeira vem de intensio e a segunda de intentio.

Com S, traz força, aumenta a tensão, é com veemência. Há uma organização. É-se intenso quando se coloca todas as energias e forças e vontades na realização de um ato. Quando há concentração, harmonia, arregimentação. O Grupo Sarcáustico, por exemplo, transmite essa idéia através de seu blog, pela sua presença nas reuniões, encontros e eventos culturais na cidade. Tem cinco espetáculos na manga, abriu uma escola de formação e foi o grupo que mais troféus levou para a casa na noite da premiação Açorianos-Tibicuera. Podemos dizer que é um coletivo de atores com uma intensa participação em Porto Alegre.

O mesmo falta ao espetáculo “IntenCidade 1ª: Voar”, em cartaz no Terraço da Usina do Gasômetro.

Com Ç (t), lembra-se o objetivo, o fim, o propósito, o intento, o intuito, seja ele com ou sem hiato. O processo anterior gera um produto, mesmo que tenhamos horror ao mercado. O produto é sempre a realidade presente, o aqui e o agora que existem como posteriores a um antes e um sei lá aonde e anteriores a um depois e um sabe deus aonde for. O Grupo Sarcáustico apresenta-se como disposto a ser mais um grupo atuante, com suas especificidades, independente de outros grupos. Livres, mas não deslocados. O que fizeram até aqui é anterior ao que são hoje, podendo ou não haver relações. Eu acho que há.

Acho também que sempre deveria haver total relação entre a intensão e a intenção. Ou pelo menos, que, quando não houvesse, o resultado sempre fosse positivo. Infelizmente nem sempre isso acontece.

“IntenCidade 1ª: Voar”, no aqui e agora do palco improvisado a céu aberto nesse outono porto-alegrense, como toda peça, não deixa claro qual foi o processo utilizado. Nem deveria. Mas está dado que a intensão não se concretiza na intenção porque não conseguimos ver a segunda, confiantes de que houve uma primeira. Há um quantitativo distribuir de situações incoerentes entre si e que não configuram uma lógica intencional. E ausência de lógica, se for o caso, é uma lógica antes de tudo.

O céu aberto em lugar do urdimento deixa livre um campo aberto onde acontecem três prisões. A dramaturgia de Felipe Vieira de Galiesteu, tradução de seu próprio conto (Mara!) para o teatro, está dividida em três situações fechadas e uma aberta. Rodrigo Marquez de um lado, Rossendo Rodrigues, Ricardo Zigomático e Guadalupe Casal no centro, e Aline Grisa e Tatiana Mielczarcski do outro lado, embora considerem o público, vivem abrigados pelas quatro paredes cênicas, envoltos em suas narrativas. São três momentos que, ora se aproximam, ora se distanciam, privilegiando o público no seu esforço (tensão) em contar sua história. De todo o elenco, é em Guadalupe Casal e em sua aplaudível depédível interpretação que se concentra nossa tensão (esforço) em fruir o ambicioso espetáculo dirigido por Daniel Colin. Afora, um quarto lugar é criado na dramaturgia: um espaço fronteiriço entre o que se propõe como palco e o que vem a ser quebra com a platéia. Há uma narradora-psicóloga (Paola Oppitz), que recebe o público dizendo querer falar algo, e que passeia pelos momentos se colocando entre nós e as três situações (precisamos disso?). Com ela, três assistentes preenchem (não vi nenhuma outra função para elas) o espaço e esvaziam o sentido auxiliadas (assistentes precisam de auxílio?) pelo próprio diretor que, em microfone aberto, anuncia momentos da peça. A intensidade vai por água abaixo. E IntenCidade também.

A tensão (organização física e mental) em sorver as belas imagens e as fortes relações se quebra com interposições de cenas baseadas em video-game e em novela mexicana. Longe do bem sucedido exemplo do musical Chicago, a dupla Colin e Galisteo pasteurizam a dureza das situações propostas já literariamente na base-conto com músicas, coreografias e frescurites como uma TV. Você, platéia, está completamente dentro da história, mas alguém, quem antes te pediu pra entrar, agora manda você sair: é uma marcação do ator Rossendo Rodrigues que caminha perigosamente sem proteção alguma na mureta do quarto andar da Usina do Gasômetro (isso nem deveria ser permitido!), é outra marcação do tipo “faço teatro aventura” do ator Rodrigo Marquez que pula também num elevado no mesmo quarto andar sem proteção, é um texto que saiu da literatura, mas que cujas palavras ficaram nela, é uma trilha sonora que conversa com os figurinos mas não com a narrativa, é a escolha por um espaço que não combina com a intimidade e a fluidez do conto... A sensação é a mesma de você estar absorto numa sala de meditação e um celular toca quebrando toda a sua concentração. A produção de “IntenCidade 1ª: Voar” se boiocota, não fica intensa e não atinge intento narrativo nenhum. A gente sai achando “a galera animada”, mas sem entender o que viemos viver ali.

Ficam a plástica de ótimos figurinos e belas imagens. Fica alegria sarcaustiana de gritar que é jovem e que jovem tem talento. Fica a infelizmente não aproveitada atuação da dupla Aline e Tatiana e as gratas força de Rossendo Rodrigues em seu mostrar a que veio com aquele personagem como também a sensibilidade de Ricardo Zigomático com o seu. Fica a cidade ao fundo do palco (e o pôr-do-sol do Guaíba ao fundo de nós) com suas luzes acendendo e comunicando mesmo que inconsciente, coisa que a personagem psicóloga-narradora, de fato, não consegue fazer. (Embora, o conto sim!).

Tudo isso fica, mas a platéia apaga a luz e sai.

*

*

FICHA TÉCNICA:


DIREÇÃO: Daniel Colin


DRAMATURGIA: Baseado no texto “Quando Amanhecer Teu Sorriso Será Mais Bonito”, de Felipe Vieira de Galisteo


ELENCO: Aline Grisa, Ariane Guerra, Fernanda Petit, Guadalupe Casal, Paola Oppitz, Ricardo Zigomático, Rodrigo Marquez, Rossendo Rodrigues, Tatiana Mielczarski e Vânia Tavares.


CRIAÇÃO DE LUZ: Carol Zimmer
SONOPLASTIA: Daniel Colin e Fernanda Petit
FIGURINOS: Francisco de los Santos, Daniel Colin, Felipe Gonçales e Fernanda Petit
CENÁRIO: Daniel Colin
ACESSÓRIOS: Felipe Gonçales
CRIAÇÃO e EDIÇÃO DE VÍDEO: Daniel Colin


PRODUÇÃO EXECUTIVA: Palco Aberto Produtora


REALIZAÇÃO: TEATRO SARCÁUSTICO

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