Medéia
Foto: Flávio Wild
9 minutos
Em cento e cinquenta e três minutos de duração total, José Baldissera ocupa nove. Descalço, ele entra em cena como um escravo para dizer a sua senhora que fuja, que parta imediatamente porque todos no palácio já sabem que foi ela quem envenenou a filha do Rei, crime pelo qual também morreu o próprio imperador. O nome da senhora é Medéia. Não há ação dramática. Ator e atriz andam de um lado para o outro, mexem os braços e mudam feições. Falam.
Falam.
Falam um texto escrito há dois mil e quatrocentos anos atrás.
Contam sobre algo que já aconteceu num lugar que não vemos.
Anunciam atitudes que vão tomar numa situação futura a que não assistiremos.
Informam.
O destino é a estrutura da tragédia grega. Não há como fruir um espetáculo como esse sem estar sensível para ele. O espetáculo em si é a certeza de que quem se rebela, que quem se levanta, que quem foge à regra sofrerá as conseqüências da ausência de paz, de ordem, de aconchego. Os deuses, embora tenham seus prediletos (Medéia é filha do Sol), são implacáveis com quem não entende o significado da palavra admoestação.
José Baldissera espera sua vez para entrar no último um quarto de apresentação. Espera em silêncio na coxia. Já está vestido. Já está maquiado. E sabe que seu momento chegará. E, embora o cenário não mude no palco do Teatro São Pedro, a cena narrada pelo personagem de Baldissera se constrói na cabeça do público. Para mim, o vestido envenenado era num misto de azul turquesa, azul celeste, roxo e verde. O piso do quarto da princesa era de pedra, mas com cor de madeira. E lençóis brancos estavam na cama em que ela, a nova esposa de Jasão, não se deitou depois de usar vestido. Gostaria de saber como era o mesmo lugar para a pessoa que estava sentada ao meu lado, mas sei que isso não importa. A graça está na certeza de que, para ele, tudo era diferente. Talvez ele tenha sentido um cheiro. Eu não.
José Baldissera dá um grito em cena. O mesmo grito numa sala de aula na Unisinos seria a comprovação de que o grande professor já passou do tempo de se aposentar e que já não tem noção do ridículo. O grito de Baldissera é ridículo de tão feio. Mas lá vem a Übersfeld nos lembrar que são três os referentes do signo teatral. O grito de Baldissera é um grito no mundo, um som alto e forte e o reconhecemos como tal por isso. O grito de Baldissera é um grito de dor do escravo que acaba de ver o seu Rei e sua Princesa morrer terrivelmente. O grito de Baldissera é um grito de qualquer um que sente as conseqüências de erros dos outros, sem ter comedido um único só. A unidade mínima do teatro, a especificidade do que é cênico é justamente o caráter códico de cada acontecimento (ação, sensação ou objeto concreto) que só tem sentido porque esse é construído a partir da relação com outros do mesmo sistema partindo de um ator e chegando a um público. O grito se relaciona com a dor, com a expressão física, com o figurino, o cajado e os pés descalços do ator é lido pelo espectador. O personagem escravo, a narrativa trágica, a relação dos personagens com as divindades, as crenças e os costumes, a grandiosidade dessa história se tornar atual hoje milênios depois. Tudo é peça que se interrelaciona.
O personagem do escravo resume um micro-sistema dentro do sistema maior, Medéia, brilhantemente interpretado por Sandra Dani. Ela, centro dessa grande produção dirigida por Luciano Alabarse.
O que se disse sobre Baldissera também se diz sobre Sandra Dani, os demais atores, os signos todos. Cada um em seu lugar está preso no contexto de forma que não nos é permitido, ao analisar o todo da obra, retirar um único só. Uma ator, um figurino, o som de uma voz, um facho de luz não é um palavra que mantém um significado no além frase. O significado está engendrado no conceito, na concepção. Daí o resultado de uma análise de nove minutos gerar o mesmo resultado que uma visão sobre as quase duas horas do grato Medéia.
Apenas nove minutos.
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Para baixar o texto de Medéia, clique aqui.
ELENCO:
Sandra Dani
Marcos Contreras
Ida Celina
Lurdes Eloy
Mauro Soares
Alexandre Silva
Paulo Fernandes
José Baldissera
e
Luciana Éboli
Luiza Ollé
Vika Schabbach
Ekin
Elisa Viali
e
Thales de Oliveira
Fernando Zugno
Fabrízio Gorziza
Daniel Bachieri
Tito Ravaglia
e
Vitório Azevedo
Willian Ren Dienstmann
FICHA TÉCNICA:
Direção: Luciano Alabarse
Assitentes de Direção: Marcelo Adams e Rodrigo Lopes
Cenário: Sylvia Moreira
Iluminação: Cláudia De Bem
Figurinos: Rô Cortinhas
Trilha Sonora: Mateus Mapa, Moysés Lopes e Luciano Alabarse
Produção Executiva: Miguel Arcanjo
Assistência de Produção: Antônia Moro
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