8 de dez. de 2009

Play-Beckett

Foto: Rafael Avancini



Humanidade inalcançável


Para mim, só há um motivo que explique o fato de que, cada vez que eu leio ou assisto a “Esperando Godot”, é como se fosse a primeira vez que eu estivesse me relacionando com esse clássico de Samuel Becket (1906-1989). É de mim que a história fala e nunca sei o bastante sobre mim mesmo. A estrutura, a forma como o autor organizou a narrativa (a narrativa sobre mim, leitor, platéia) é propícia pra isso. Poderíamos inverter a obra. Começar pelo fim, trocar as falas de lugar, mudar os diálogos de personagens. Acredito que muito pouco se modificaria. Não é o tipo de história que você pode dizer que “começa assim”, “tal coisa acontece” e “termina assado”. Não há linha de tempo nem definição de espaços. Não há significado proposto, muito menos, garantido. Não há nada para ser entendido. Vale o encontro, a vivência da experiência, o silêncio do olhar. Vale o não movimento, a respiração, a ausência de desejo. Já ouvi dizer ,e concordo com isso, que está em Becket a tragédia contemporânea: a desolação humana, a descrença nas instituições, a solidão diante da multidão, o vazio, a fome na fartura. Gogo (Estragon) e Didi (Vladimir) não podem nem mesmo se enforcar porque não têm uma corda.

Vladimir:
Então, vamos embora.

Estragon:
Vamos lá.

Não se mexem.

Pois o Grupo Jogo utiliza esse texto de 1949 como fio condutor de seu novo espetáculo chamado “Play-Beckett”. Como utilizar “Esperando Godot” como fio de algo? – me perguntei enquanto lia o programa. Godot, na sua inexistência, nem mesmo tem um fio condutor para si. Quando perguntaram para o dramaturgo quem era Godot, ele respondeu: “Se eu soubesse, eu teria posto na peça.” Godot tem muitas origens prováveis: Pode ser God (Deus), pode ser Charlot (Carlitos do Chaplin, ou o chapéu côco), pode ser Godilot (cuturno, bota militar), pode ser Godeau (a quem o individado Mercedet clama em Le Faiseur, de Balzac), pode ser a morte (no espetáculo Cacilda!, de Zé Celso Martinez Corrêa). E, sobretudo, é aquilo que eu espero enquanto sentado na platéia do teatro ou diante do texto dramático. Então, como utilizar esse pântano caudaloso como base?

O resultado pode e deve ser conferido nesse trabalho cuja responsabilidade maior está sobre Alexandre Dill e Igor Pretto, que assinam a direção, o roteiro e a concepção. Não há nenhum movimento que seja simbólico, nenhum gesto que faça sentido com outros signos do palco. A própria idéia de signo, aliás, é colocada em xeque, uma vez que essa se constrói sobre a hipótese da união sistêmica. O Grupo Jogo apresenta a desunião becketiniana, a solidão das informações, a ausência de vontade de informar, certos de que não está na percepção humana a responsabilidade da existência. Mesmo que se separem todos os elementos postos em cena, paira sobre o todo uma união intocável, imperceptível, não apreensível pelos sensores humanos. E, não é incrível?, é aí que está, em Becket, o DNA humano. Nossa humanidade está em sermos incapazes. Essa é a nossa tragédia.

Outros textos de Becket servem para o Grupo nesse espetáculo. Fim de Jogo (1957) é um deles, em que a relação familiar (?) entre Nagg, Hamm e Clov nos faz pensar sobre laços, esses tão sensíveis e, ao mesmo tempo, tão fortes entre Didi e Gogo. Músicas também. Movimentos também. Cores também. Dill e Pretto partem de Becket, mas com olhos sobre e além do texto. Chegam, ironicamente, nele mesmo, engrandecendo-o. Não vemos a hora passar, não sentimos a pressão de entender o que não deve ser compreensível, nada é mais interessante do que acontece em cena, essa construída também por Gustavo Susin que, com Dill, leva o teatro para o limite com a dança, e a dança para o limite com o teatro. Becket é mesmo o limite da arte, ou a crítica a qualquer arte que cruze esse limiar.

Movimentos absolutamente precisos, luzes e figurinos em cena pontualmente adequados e perfeitos ao que se pretende. Tempo e dramaturgia postos, junto a seus pares, para a dilatação, para o infinito, o difícil, mesmo que vulgar, nada. Tudo organizado para me desorganizar. A humanidade que eu não alcanço sou eu mesmo.

Que aplaudo e agradeço.

*

Intérpretes:
Gustavo Susin e Alexandre Dill

Direção:
Alexandre Dill e Igor Pretto

Coreografia:
Igor Pretto

Maquiagem:
Alexandre Dill

7 de dez. de 2009

Ditos e Malditos

Foto: Cláudio Etges


O prazer de sentir

É preciso de uma vez por todas que se saiba que nem todo teatro é um sistema que usa da razão para comunicar. Considerando o fato de que não se pode excluir a razão de nenhum processo, há peças de teatro que usam mais o aspecto sensorial do que a razão. Faz sentir primeiro, depois pensar sobre a sensação, identificá-la, reconhecê-la, entendê-la. Talvez nunca dominá-la.

Não entendi nada sobre “Ditos e Malditos – Desejos da clausura”, nova produção da Companhia Terpsí Teatro de Dança.

Mas senti o arame farpado que separa o palco do público. Tudo que é dado a ver é filtrado pelo arame que afasta, que amedronta, que se impõe, que esfria. Fiquei com medo, respeitei, contemplei. E me senti protegido. Friamente protegido.

Sente-se o branco. A limpeza de um palco sem esconderijos, à mostra, inteiro. Um espaço amplo. Aberto. Vazio. Um vazio que pode ser preenchido com desejos, todos esses postos numa fonte.

Vê-se uma escadaria ao fundo. Um convite para subir, para fugir, para escapar. Do lado de cá do arame, invejei. Inveja-se.

Portas de Metal movimenta-se em cena. A dureza intencional dos bailarinos, dançarinos, atores, artistas, coreografados, exibidores. Faces sem feições. O que está dito está dito por baixo, atrás da porta, além da escada, escrito com tinta branca no branco do chão e das paredes. Os atores vestem preto. Sempre uso canetas pretas ao invés de azuis. Eles são canetas? Meus desejos serão atendidos ou vale apenas o desejar?

Várias fotografias de autores famosos: Caio Fernando Abreu, Augusto dos Anjos, Edgar Allan Poe, Van Gogh... Mas aí já é minha mente identificando eles. A razão agindo, se intrometendo. Volto para as fotos e sinto o seu preto e branco amassado no arame farpado e quase pega o figurino de quem passa próximo, no limite. Penso nas influências. Penso em estar livre do olhar do outro.

Tudo me fez pensar em livrar-se de velhos conceitos, barreiras e da alegria dessa liberdade. Claro que “Ditos e Malditos” me fez pensar nisso porque é esse o momento em que eu vivo agora. Outras pessoas vivenciaram outras coisas. Não estou aqui escrevendo a crítica para dizer o que se deve sentir. Mas quero dizer o que eu senti com o que está lá. O que está lá lá está independente de mim, do leitor, do futuro leitor, do não leitor, do nunca leitor. Mesmo que eu não tenha visto, mesmo que nunca seja visto está lá. Vamos trocar sensações? Terpsí quer apenas que o sintamos.

Não encontrei lógica no espetáculo dirigido por Carlota Alburquerque, cuja ficha técnica exibe a qualidade de profissionais que trabalham para o meu (de público) sentir. Para mim, essa ausência de controle intelectual é prova de que são os sentidos os primeiros que querem ser fisgados. Então, conseguiram. A ficha técnica conseguiu. Terpsí conseguiu. Uma hora e tanto de espetáculo sobre o qual só posso dizer o que senti e sou grato por isso.

Fazer sentir não é tão fácil como fazer pensar, embora ache mais natural que sentir seja mais natural do que pensar.

Não encontrei Malditos, não encontrei Clausuras em cena. Também quase nenhum dito. Encontrei-os em mim, após as sensações despertas, os desejos escritos, o peito aberto. Vá lá saber se quem viu no mesmo dia que eu encontrou isso tudo ou não. Ouso dizer apenas que todos sentiram (algo). Só espero que ninguém tenha sentido cansaço, como eu também não senti. Mas se foi isso que despertou, então, que seja bem-vinda também essa sensação!

*


Ficha Técnica



- Intérpretes Colaboradores:
Angela Spiazzi
Gabriela Peixoto
Raul Voges
Débora Wegner
Gelson Farias (estagiário)

- Participação Especial:
Simonne Rorato

- Direção e Concepção:
Carlota Albuquerque

- Orientação de Ensaios
e professora convidada:
Simonne Rorato

-Preparação Física:
Anjos do Corpo

- Iluminação:
Guto Grecca

- Trilha Incidental:
Alvaro Rosacosta

- Trilha Pesquisada:
Terpsí Teatro de Dança

- Figurinos:
Curso Técnico em Produção de Moda - SENAC/Canoas - Moda e Beleza
Coordenação e Criação: Anderson de Souza
Criação/aluna: Luciana Bernardes
Criação/colaboração: Carla Meyer

- Cenário:
Terpsí Teatro de Dança
Proposta de criação inicial - Curso de Design de Interiores/ULBRA
Alunos: Ismael Bertamoni e Gabriela Souza/Designer: Marco Chiela
Profª: Mônica Heydrich (Artista Plástica) Rosane Dariva Machado (Arquiteta)

- Cenotécnico:
Paulinho Pereira, Tio Paulinho

- Assistentes de Montagem e Palco:
S.O.S Daughters
Alana Haase

- Montagem e Edição de Áudio:
Murilo Assenato

- Operação de luz:
Gilmar Rosa

- Descrição do Processo de Criação (Caderno Registro):
Wagner Ferraz – Processo C3 Grupo de Pesquisa

- Fotógrafo:
Cláudio Etges

- Assessoria de Pesquisa:
Processo C3 Grupo de Pesquisa, Anderson de Souza, Francine Pressi, Wagner Ferraz


6 de dez. de 2009

Agora eu era

Foto: Romi Pocztaruk


Agora

Eu não sei como o casal (lindo) de idosos sentados atrás de mim interpretou os quatro atores vestindo saias compridas e girando sobre seu próprio eixo. Mas, para mim, eles eram ventiladores de teto numa manhã quente de verão, como na abertura de “Apocalypse Now”. A modorra de acordar depois de uma noite de sono cansativa... A preguiça de enfrentar o dia que grita lá fora.

Eu não sei o que a pessoa ao meu lado pensou quando viu os tigres brigando no palco na primeira cena de “Agora eu era”. Eu, on my boots, me vi discutindo com meu pai sobre a larga diferença entre as coisas que ele queria que eu fosse e fizesse e as coisas que eu era. O medo de decepcionar ele, de não o agradar. Ele, o meu pai, um homem admirável, meu primeiro herói, aquele por quem me apaixonei e quem eu queria ser já desde criança. E eu, tentando conciliar, tentando fugir, tentando unir. Me vieram muitas histórias na cabeça. E lágrimas também. A peça só tinha começado.

Não sei como é a família do rapaz que estava próximo a mim, mas a minha não tinha nada a ver com a da peça. Minha irmã estava longe de querer ser bailarina. Meu pai nunca praticou nenhum esporte. Minha mãe parou de fumar quando eu era bem pequeno... Mas éramos uma família e ver uma só me faz pensar, antes de tudo, na minha própria: Seu João, Dona Francisca, a Lu.

De repente, pra menina que estava sentada no fundo da platéia à direita, uma borboleta tatuada seja só um desenho. Mas, acredito que para o grupo da esquerda que assistiu à peça e pra mim, borboleta significa prazer em mudar, em descobrir o mundo e seus novos desafios. Tatuar uma borboleta é anunciar-se como alguém disposto em descobrir e descobrir-se. É para mim, que não sou nem a menina, nem o grupo. Ninguém além de mim. (E ainda há gente que acha que escrever uma crítica é ser impessoal...)

Não perdi meu tempo tentando imaginar no que quem mais viu “Agora eu era” no mesmo dia que eu pensou quando viu os pais de Camilo dialogando, um falando sobre a vida e o outro sobre os japoneses e as montadoras de automóveis. Mas eu lembrei que meus pais fizeram 32 anos de casados e, que eu saiba, tiveram apenas duas grandes brigas. E que eu, num casamento de 4 anos, pouco as tive também. De resto, muita coisa sempre ficou para ser dita enquanto eu falava de algo e a outra pessoa dissertava sobre algum assunto qualquer. Ou enquanto minha mãe reclama e meu pai pensa no mensalão. Bem conviver não é engolir sapos. É mantê-los o máximo possível na lagoa. Dentro dela, de preferência. Girinos.

Acho que muita gente achou linda a cena em que Marilyn Monroe é projetada em Vinícius Meneguzzi. Mais que linda, eu refleti sobre o como as pessoas nos vêem, nas imagens que construímos na cabeça delas. Também nas imagens nossas que vivem dentre nós. “Há um ser que vive dentro de mim como se eu fosse sua casa”, já dizia Clarice Lispector. Pior que, às vezes, esse ser aparece mais que gostaríamos, mais que percebemos, mais que deveria.

“A vida é cheia de surpresas!” E os quatro atores se reúnem numa roda única, não mais quatro pequenos círculos como no início. Um por um, os atores saem do grupo e eu chorei novamente. Pouco me importa o que isso significou para o restante da platéia. Lembrei que não sou mais criança, que meu pai já está bastante velho, minha mãe bastante gorda e que, mesmo assim, talvez seja eu quem parta dessa vida primeiro. Lembrei que minha irmã pode engravidar de novo, que eu possa ganhar na MegaSena, que meu pai pode voltar a trocar emails comigo. Só o que não pode é pessoas partirem sem que eu tenha dito a elas o quanto foram importantes pra mim. (Saudades do Zé Mário...)

Cada ator, envolto na narrativa dirigida por João Pedro Madureira e roteirizada pelo Grupo Vai!, conta uma história que, me pareceu, ser sua própria ao longo da peça. Sem dúvida, é uma das melhores partes dessa produção uma vez que eu também, como expus, contei as minhas baixinho, sentado em silêncio e imóvel na escuridão do público. Pensei nas pegadas que eu desenho para os outros pisarem, naquelas que desenham para que eu pise. Imagens que só um elenco tão interessante como esse, mais que talentoso, mais que preparados, poderia propor.

Talvez, se tivesse poder, talento e vontade, teria encerrado cada cena de um jeito mais sutil, deixando a narrativa mais fluída e menos nervosa. Em “Agora eu era”, é tudo tão poético que bateu mal em mim uma sequência de passagens tão rápida. Mas isso talvez seja porque eu estava pensando em tudo, lendo tudo, imaginando muito. Estava eu contando a minha história enquanto a de outrem me fazia convites. E, se não for isso o tal teatro pós-dramático de Lehmann, cuja hierarquia dramatúrgica é de responsabilidade do espectador, então eu não sei nada sobre o assunto. Mas me parece que sei. Mais que o meu pai queria. Mais que eu já soube um dia.

“Agora eu era” me lembra que, agora, eu sou eu. Ainda bem.

*

Elenco: Lucas Sampaio, Rafael Régoli e Sofia Ferreira e Vinícius Meneguzzi

Direção: João Pedro Madureira
Assistência de Direção: Vinícius Meneguzzi
Roteiro: o grupo
Dramaturgia: Maria Luiza Sá e Madureira
Produção: Laura Leão
Produção executiva: Patrícia Machado
Assistente de produção: Diego Bittencourt
Trilha sonora: Felipe Catto
Cenário: João Pedro Madureira
Figurino: Francisco de Los Santos
Operação de câmera: Ângela Alegria
Vídeos: Romy Pocztaruk
Iluminação: Mariana Terra

5 de dez. de 2009

Adolescer

Foto: Vanja Ca Michel

Perto dos 30

É bastante difícil pra mim falar sobre a adolescência uma vez que a minha foi muito diferente da maioria das pessoas que, hoje, são minhas amigas... Sim, eu tive amigos. Sim, eu fiz festas. Sim, eu vi meu corpo mudar e descobri minha sexualidade. Mas meus amigos e eu só sabíamos falar de assuntos relacionados à igreja. Minhas festas eram animadas por bandas católicas. E minha sexualidade foi ordenada por uma série interminável de normas sendo a principal delas a postergação do sexo para após o matrimônio. Parece mentira que eu fui adolescente nos anos 90,quando todos da minha idade ou mais jovens que eu viveram sua adolescência como é recomendado que ela seja vivida em “Adolescer”, espetáculo roteirizado e dirigido por Vanja Ca Michel. Talvez, ao falar do espetáculo, eu fale também de mim, uma fração de público apenas, autor dessa crítica que interessa pouco se não for sobre o espetáculo em questão. Vamos a ela, então.

“Adolescer” é uma peça fácil. Não há nela nenhum aprofundamento entre as duas mil questões que foram colocadas no roteiro. Tudo gira em torno de discursos prontos sobre a questão da adolescência, suas crises, suas belezas, seus desafios. Tem dez atores, nenhum cenário, uma trilha sonora que consiste na organização de músicas bem conhecidas do grande público, e figurinos tirados do guarda-roupa dos atores. “Adolescer” teve a maior platéia que eu já vi na Sala Álvaro Moreyra, com pessoas sentadas no chão, cadeiras extras esgotadas, gente indo embora porque realmente não havia mais espaço. Um espetáculo que está há seis anos em cartaz e que, dadas as devidas atualizações do texto, ficará anos ainda com platéias a lotar, por favor, salas maiores e com mais conforto.

Discorda totalmente de mim quem diz que “Adolescer” é uma peça ruim. A superficialidade assumida em todos os aspectos estéticos da produção dizem respeito ao conteúdo, à imensa quantidade de assuntos a discutir em pouco tempo e de um jeito tão cativante. A linguagem é rápida, extremamente acessível e disposta a atingir a identificação de todos a que ela assistem. Adolescentes e suas famílias são, sim, privilegiados. Mas idosos e crianças não deixam de receber um convite para a identificação, tanto com seu próprio passado como com alguém que conhece ou com um desejo que ainda querem realizar. O ponto de vista de quem tem por volta de quinze anos sobre seus pais, professores, amigos e interesses é exibido através de cenas bastante rápidas, livres e leves. As interpretações são rasas, coerentes com o todo, garantindo uma coesão espetacular digna dos aplausos que tem. Podemos perder nosso tempo procurando falhas que não encontraremos nada que não seja fora da proposta muito bem-vinda e otimamente bem recebida. Disposta a um prazer rápido, “Adolescer” faz pensar, promove discussão, promete mudanças. É um espetáculo assumidamente comercial,mas extremamente social. Cumpre o que promete, agrada e faz sucesso.

É certo que o ritmo cai no final quando os discursos começam a ficar mais diretos e com pouco envolvimento narrativo. Numa cena em que os amigos estão juntos sabe-se lá onde e porquê, acontece uma sequência de frases-chave sobre “não beber antes de dirigir”, “aborto”, “relação com os pais”, “não-discriminação/não-preconceito”, etc. Diferente do que acontece até a metade da peça, nesse momento as questões não são colocadas sob o pano de fundo de uma cena, mas enviadas de forma direta e sem rodeios. É quando “Adolescer” cansa, prepara o seu final, que acontece de forma muito rápida, e se despede. Diz adeus a um público que riu muito com as figuras engraçadíssimas construídas em cena (o casal de emos, o professor de inglês, o nerd, a gordinha que quer ser modelo,o professor gostosão, o pegador de aparelho, a ascensorista...), se emocionou com os momentos mais dramáticos (a mãe recolhendo o suéter, a gravidez em má hora...)e refletiu com as teses expostas, quase sempre, de forma muito viva e jovial.

Despede-se do público, também, a própria Vanja, a grande responsável por esse projeto tão bem quisto e tão cheio de valores. Chama a platéia de linda, concordando com a forma tão gentil com que recebeu seu imenso público na entrada, e ressalta o convite para que seja mais procurado o teatro gaúcho, do qual ela faz parte e luta por. Nos despedimos também de João Carlos Castanha, ator que engrandece o elenco jovial com a construção de personagens que deixam a história muito mais rica do que já é. E, sobretudo, de um elenco tão carismático quanto a história que conta, essa que todos, de um jeito ou de outro, temos ou teremos.

Inclusive, perto dos 30, eu.


*

Texto e Direção: Vanja Ca Michel

Elenco:
Bibi Rositto
Willian Molina
Rafael Pimenta
Lucas Ortiz
Luana Valada
Fernanda Marques
Wagner Padilha
Jeferson Cabral
Débora Spadotto
e
João Carlos Castanha

Orientação: José Outeiral
Coreografia: Malu Kroeff
Iluminação e Produção: Moa Júnior

4 de dez. de 2009

Elefantilt

Foto: Regina Protskof / La Photo

Às favas com a astrologia

Passei um tempão pesquisando sobre as peças de Berthold Brecht (1898 – 1956) para encontrar as referências na composição de “Elefantilt – Um exercício brechtiano”, cuja direção é assinada por Humberto Vieira, recém Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Descobri várias coisas sobre a peça, principalmente depois de ter lido “O filhote de elefante” e “Um homem é um homem”, textos do dramaturgo alemão datados nos anos 20 (o primeiro é um excerto do segundo). Ao olhar para folha virtualmente branca do meu computador com o desafio de preenchê-la com um registro da minha análise sobre o espetáculo, me pergunto para quê servirá, nesse caso, tanta pesquisa?

“Elefantilt” é um produção bastante simples, embora nada simplista. Dois músicos tocam guitarra e percussão. É um bar, uma taverna, um boteco... Chega a dona do boteco, feliz por encontrar o salão do seu estabelecimento cheio de soldados com as “burras cheias de dinheiro”. Participam da cena também o “Escritor de peças” e quatro soldados que, logo, se transformarão em atores de um pequeno espetáculo para divertir o público. A peça dentro da peça, cujo mote é a intenção de uma “Bananeira” e a “Lua” de descobrir se o pequeno elefantinho matou mesmo sua própria mãe ou não, logo acaba. A peça vai embora. A noite continua. Fim.

E isso me faz pensar numa mania que toma conta de mim e de quem se aproxima de mim quanto à astrologia. Você mal conhece uma pessoa, ou nem mesmo nunca a viu, mas dela já ouviu falar, e já sabe o signo solar, o ascendente, a posição da lua, da Vênus, quais planetas estão na casa seis... Pesquisas e mais pesquisas para racionalizar a emoção, como se isso fosse fazer com que ela durasse um pouco mais. É como se você morresse e, tão logo chegasse ao céu, pensasse: “se eu tivesse uma nova chance aproveitaria muito mais”. Então, sabendo que só terá uma, você racionaliza a vida tentando “aproveitá-la muito mais”. Fechei todas as abas da minha pesquisa e procurei só pensar no quanto eu ri assistindo às deliciosas cenas construídas pelo elenco de “Elefantilt”. Às favas com a aquarianisse de Brecht ou com a sagitarianisse desse espetáculo.

Com um figurino muito mais do que interessante - por ser bonito, útil, inteligente - os oito atores ocupam um lugar muito próprio na cena com bastante adequação. O diretor os fixou o tempo inteiro em cena nesse exercício em que Brecht é o ponto de partida, não só pelo que tinha desenvolvido nos anos 20, mas como o que tinha criado nos anos 40. No caso dessa encenação, o tom épico quase não aparece: há personagens (músicos e dona do bar) que representam o público, situando-se entre a narrativa e o público assistente. Mas, por seu figurino e marquiagem (bem forte!), pela sua mise-èn-scene, pela construção do seu personagem, está claro que são narrativos, que são cênicos e que não estão ali para nos dizer atores sociais ou para promover uma anti-catarse ocasionada pelo célebre distancialmento brechtiniano. Os dois músicos se esforçam em reclamar, mas, talvez por se esforçar demais, convencem como personagem e não como parte ou representantes do público. Nisso, para mim, consiste o ótimo trabalho de Eduardo Tartarotti (guitarra), Maiquel Klein (percussão), Richard Biglia (a ótima dona do bar) e Yheuriet Kalil (autor de peças): vencer o desafio da não ação. Com raríssimas exceções, os quatro personagens ficam sentados em cena o tempo inteiro. Não podem puxar o foco sobre si, mas devem ser críveis como assistentes tanto quanto nós, o público. E são. Pacientes, honestos, criativos, os quatro atores construíram seus personagens sob uma direção de pulso firme que os conscientizou da hierarquia dramatúrgica que, nesse momento brechtiniano, apenas apontava para o que viria depois com o “Círculo de Giz Caucasiano”, “A decisão” e “A alma boa de Setsuan”.

O domínio da cena é mesmo da peça dentro da peça: o julgamento do filhote de elefante. Quatro soldados interpretam cada um um personagem. A Bananeira e a Lua narram o assassinato da mãe do elefante pelo próprio filho, o elefantinho. Tomados pelo surrealismo da história, as quatro atrizes reforçam o absurdo da ação por uma construção que, hoje, nos lembra Ionesco. Tatiana Vinhais ( A Bananeira) sustenta uma fortíssima presença cênica. Com habilidade, a atriz domina a ação, essa narrada de forma clara e interessante. A mesma dominância se vê em Daniela Guerrieri, forte não pela presença, mas pela comicidade clownesca. Com um timing perfeito, Guerriere é, sem dúvida, o ponto alto do elenco, não apenas por ficar sobre uma escada o tempo inteiro, mas porque não conseguimos tirar o olho dela, certos de que seus comentários faciais serão causa de grandes risadas e um ótimo divertimento. Vivian Salva, como o elefantinho, é aproveitada pela direção em todo o seu potencial. Com um olhar terno e doce, mas com movimentos ágeis, a atriz contribui para o espetáculo principalmente pela forma como olha e pelo jeito como muda a voz quando, na dualidade que há em seu personagem, chave da meta-narrativa de que tratamos, precisa se colocar como assassina de sua mãe (Juliana Dal Bem) ou como inocente desse crime.

Outros elementos ricos enriquecem a produção pelos seus usos bastante conceituais. A utilização do espaço que nos coloca muito próximos da cena, a simplicidade dos elementos (claramente por opção estética) que nos convida a nos aproximar da história, a trilha sonora (dirigida como também os cantos por ninguém menos que Cida Moreira) que não define tempo único, mas define a produção como atemporal, incluindo do nosso tempo, dessa temporada, de forma muito significativa. Essa proximidade é o que posso identificar como uma citação da produção ao tema épico de Brecht, que foi mais desenvolvido ainda no Teatro Ambientalista de Richard Schechner no fim dos anos sessenta.

Então, me vejo dentro de “Elefantilt” novamente ou, pelo menos, das minhas impressões sobre ele. Fui conhecendo aos poucos, convidado, agradecido, conversando com a história e a ouvindo. Sem juízos prévios sobre onde estavam os planetas e as constelações na data de seu nascimento, não é que aproveitei a peça e adorei escrever sobre ela? Esse despojamento não é lá muito capricorniano, mas às favas com a astrologia.


*

Elenco: Daniela Guerrieri, Eduardo Tartarotti, Juliana Dal Ben, Maiquel Klein, Richard Biglia, Tatiana Vinhais, Vivian Salva e Yheuriet Kalil.

Direção e Roteiro: Humberto Vieira
Direção Musical: Cida Moreira

Assistência de direção: Shirley Rosário
Iluminação: Cláudia De Bem
Figurinos: Fabrízio Rodrigues

Produção: Palco La Photo e Companhia Babel de Teatro

1 de dez. de 2009

Vermelhos - história e paixão

Foto: Alexandre Lops


Bolas na rede. Mas em qual rede?


“Vermelhos – história e paixão” tem três momentos que não se pode perder:


1) “Sport Club Internacional”: quando, reunidos, pertencentes ao Bloco Venezianos dão nome ao time de futebol que se inaugura. A força da expressão, que conhecemos como aquela que nomeia um time esportivo com uma história, hoje centenária, tão bonita e cheia de glórias, faz com que qualquer um se arrepie. Principalmente por ser pronunciada num teatro cheio de colorados fervorosos.

2) “Glória do desporto nacional, oh internacional que eu vivo a exaltar”: quando cantam o hino, trazem ao palco a expressão mais pura do que havia sido dialogado minutos antes. Havia sido dito, de uma forma tão bela quanto real, que o que move uma torcida tão grande e digna como a do Internacional é uma paixão inexplicável por algo cuja forma é fluida, mas que congrega, une desconhecidos, aproxima o tempo, o espaço , multidões. A platéia cantando em uníssono me fez lembrar, com muita emoção, da primeira vez que entrei no Theatro São Pedro e ouvi a audiência emocionada cantando "Horizontes" no final de "Bailei na Curva". Ou os ingleses cantando “Do you hear the people sing” no final do primeiro ato de “Les Miserables”. São músicas que nos lembram das raízes, da humanidade que temos apesar de senhas e códigos que decoramos, apesar de profiles e tweets que damos, com todos os instintos que colocamos pra fora indevidamente.

3) “Diante do fim da vida, eu não abro mão. Levo a bandeira do Inter no meu caixão.” Essa é uma frase dita pelos torcedores em meios à gritos e ordens característicos do ritual esportivo. Simone Rasslan transformou o refrão numa linda melodia, cujo fim é o vibrante “Vamo, vamo, Inter” que, diferente da peça, não remete ao passado do time, mas ao futuro. Aponta para o que vem após a saída do teatro. É a apoteose final.

Neste texto de Arthur José Pinto, não sobra mais nada. O que é entristecedor, considerando que qualquer time com dez anos de história tem muito para contar, que dirá um que foi fundado em 1909. Vários pares de minutos gastos em falas inúteis: pastel com ovo é melhor, camisetas bem passadas, vou ou não vou ao Japão, pirralho pra cá e acolá, moça direita não é moça torta, cerveja no bar e na redação de um jornal, e por aí vai... Assuntos e mais assuntos que dominam (e demandam) minutos mas que não levam a história adiante e só arrastam o ritmo, tornando-o lento, sonolento, cansativo. Será o Inter lento, sonolento, cansativo? Não seria o momento de construir algo vibrante, engrandecedor, majestoso até?

É possível entender que houve a intenção de falar sobre a paixão pelo esporte futebol, seja ele jogado por que time for. Mas vamos ver como Pinto resolveu isso sob a direção de Nestor Monastério: Henrique Poppe nega-se a cobrir a instalação da rede elétrica em seu bairro porque quer ir acompanhar um jogo de futebol que contará com a presença de Charles Miller. Pede demissão de “O Estado de São Paulo”. Sem dinheiro, vem com sua família para Porto Alegre. Aqui, após conseguir emprego por conta de sua filiação ao Partido Republicano e seu vínculo aos positivistas, conhece Maria com flerta em baile de carnaval e lhe faz serenata. Prestes a casar, descobre que seu irmão sofreu preconceito no time Grêmio e, então, propõe que haja uma reação: funda-se o Internacional, que irá ganhar do Grêmio por 4 x 1, alguns anos depois, pouco antes da morte de Poppe. Em paralelo, um engraxate pede ajuda a um senhor para fazer um teste no Inter. Não consegue porque sofre de “sopro”. Esse senhor, que é conselheiro no Inter, o leva para trabalhar num jornal de um amigo seu. O mesmo senhor aparece narrando a final de um jogo histórico para o menino. Em paralelo ainda, um jornalista quer cobrir o Mundial de 2006. Sua chefe não permite que ele vá porque ela irá e não confia em ninguém para deixar no seu lugar. Por algum motivo estranho, a chefe aparecendo ouvindo o jogo final com o funcionário que queria ir, outro colega e Seu Vito, o vendedor de pastéis que, quando garoto, quis jogar no Inter, mas não pode porque sofria de sopro. Os três jogos: contra o Grêmio, narrado pelo Conselheiro e a final ouvida pelo radinho de pilha, se encontrem e unem a história. E a peça produzida para celebrar os 100 anos do Sport Clube Internacional acaba.

Com um figurino de época produzido a altura de grandes espetáculos, “Vermelhos – história e paixão” conta ainda com um cenário grandioso, mas usado de forma muito modesta. A parte do fundo, emoldurada, não é delimitada diegeticamente e a parte frontal é pobremente preenchida: cadeiras e uma mesa, entradas e saídas em marcas nada pontuais, o símbolo do Inter visível, mas não como o esperado. As interpretações não se destacam, apesar de Gustavo Razzera merecer elogios pela caracterização. Quanto às músicas, Simone Rasslan nunca decepciona, embora o contexto em que elas aparecem, sim: “Abre Alas”, “Lua Branca” e “Papai é o maior” são canções que marcam uma época. Na peça, há três em paralelo, ou seja, as outras duas são esquecidas (“Hino do Inter” faz parte da primeira época e “Diante do fim da vida” é o encerramento do espetáculo).

Dessa forma, concentrados os três pontos positivos no final (gols a favor), da platéia (e não do campo), ouço o apito de encerramento do jogo. Prefiro não olhar pro placar e guardo na lembrança as três vezes em que vibrei.

Saio do teatro pensando que, se eu torcesse para algum time de verdade, escolheria o Internacional por ter valorizado a produção teatral. Coisa que o Grêmio não fez em 2003, nem nunca.


*

Ficha Técnica

Elenco:
Alvaro RosaCosta,
Gustavo Razzera,
Oscar Simch,
Rogério Beretta,
Simone Rasslan,
Sofia Schul,
Suzete Castro Martinez,
Williams Martins
Zé Victor Castiel.

Direção: Néstor Monastério
Autor: Artur José Pinto
Figurinos: Daniel Lion
Preparação musical e arranjos: Simone Rasslan

29 de nov. de 2009

Cabarecht

Foto: divulgação

Lost in the stars

Desde que baixei da internet, não consigo parar de ouvir Florence + The Machines que vim a conhecer pelo anúncio no msn da música que um contato meu estava ouvindo. Florence Welch é uma cantora que se uniu a uma banda e juntos formam uma nova sensação no indie rock britânico. Gravaram apenas um cd, em junho último, que se chama Lungs. “You Got The Love” é a música que eu mais gosto. Mas, assistindo ao “Cabarecht", eu agradeci a Deus porque, antes de aprender a baixar músicas da internet, a ter amigos de MSN e pegar as indicações musicais deles, de conhecer e gostar de indie rock e ouvir Florence + The Machines, eu tive o privilégio de sentir que música já existia há mais tempo que o teatro, bem antes do Windows Vista e do Iphone.

“Cabarecht” é um show musical apesar de existir como homenagem ao teatro. E tem muitos méritos no todo e nas muitas partes, mas senti que o maior de todos é atualizar canções de peças teatrais de Berthold Brecht (1898 – 1956) e Kurt Weill (1900 – 1950). Diferente do teatro, música é reprodutível. Para Jorge Dubatti e muitos autores, faz parte do DNA do acontecimento teatral o acontecimento convivial: o encontro num tempo e num espaço entre seres humanos cuja duração pode ou não ser delimitada, mas que não ocorre virtualmente. Ouço no meu computador uma música que não comprei, a partir de um cd em que eu nunca encostei, cantada por uma cantora que gravou seu primeiro disco há menos de seis meses. Humberto Vieira traz à Porto Alegre músicas de um dramaturgo conhecido como um dos mais importantes do século nas vozes de atores gaúchos tidos como o “cream of the top” do estado, sem falar no piano e na voz de Cida Moreira, uma das artistas mais importantes do país. E isso a alguns centímetros do nosso joelho, com a fumaça do charuto de Cida entrando pelas narinas e sob o olhar vivo de Sandra Dani. Se é num show que a música encontra o teatro, é em “Cabarecht” que é possível que um trintinha como eu, “duro do dreamulle”, de allstar, jeans e camiseta, pode encontrar-se com um teatro e um clima que só é despertado em momentos raros e quase nada comerciais. E eu em meio a pessoas de idades diversas, como também, quero crer, são os que lêem esse texto.

Se é que há algum, o único apelo comercial de “Cabarecht” é Brecht: só aparece (parcialmente) no título do evento e na composição das letras. A estrela da noite é mesmo Kurt Weill: compositor que fez dupla com o dramaturgo em vários espetáculos a partir de 1927, sendo o mais conhecido deles a “Ópera dos três vinténs”, adaptação de “The beggar’s ópera” (John Gay, 1728), espetáculo tido como o avô do atual musical norte-americano (o pai é “The Black Crook”, 1866, Charles Barras). Nessa produção da Cia Babel de Teatro, não há nada que exerça algum discurso dentro do teatro épico. As canções também não são cantadas no espírito brechtiniano e nem poderiam. Pelo menos no caso da “Ópera dos Três Vinténs”, a idéia era justamente debochar do drama clássico, da ópera tradicional de então, do gosto culto, atualizando assim o que já tinha feito Gay e Barras nos séculos anteriores. Uma vez que o “Cabarecht” é uma colagem de músicas descontextualizadas, perdeu-se a crítica, o deboche e todas as marcas do artista alemão que fez no teatro o que James Joyce fez na literatura, Sergei Einsenstein fez no cinema e Pablo Picasso fez na pintura. Por tudo, no entanto, fica claro a discordância daquilo que eu esperava, que era ver Brecht: Humberto Vieira e Cida Moreira apostam todas as forças no que, para eles, é mais importante – a música. Ao contrário de sugerir que a dupla de diretores não valoriza o teatro e importantiza outra arte, chego a conclusão de que ambos sabem que a obra brechtiniana é muito rica para ser toda refletida num só espetáculo. Essa concepção merece os aplausos que tem ganho por fazer bem aquilo que se propõe a fazer: cantar as letras de Brecht (nas músicas de Weill).

A seleção é nobre tanto quanto o elenco, formado por Zé Adão Barbosa, Antônio Carlos Burnet, Sandra Dani e a própria Cida Moreira.

Moriat (o elenco)
Surabaya Johnhy (Sandra Dani Moreira)
Duelo do Ciúmes (Sandra Dani e Cida Moreira)
September's Song (Zé Adão Barbosa, quem me fez lembrar com prazer de Mr. Higgins)
A canção da dependência sexual (Antônio Carlos Brunet)
Je ne t'aime pás (Sandra Dani, no seu melhor momento!)
Youcali (o elenco)

Entre outras, essas canções, cantadas em alemão, português, francês e inglês, são preciosidades que quem gosta de teatro não pode deixar de conhecer. Apesar de algumas esquecidas (inaceitáveis) da letra, os três atores e a cantora interpretam com paixão as letras e as melodias de forma que não conseguimos desgrudar o olhar, indo pro espaço o distanciamento brechtiniano (por uma ótima causa!). Vários signos teatrais são utilizados na expressão dos tons engrandecendo a homenagem já expressa pelo figurino e pela organização livre do cenário. De resto, o gênero teatral escolhido é mesmo o bom musical americano, em que as falhas são condenáveis, a curva dramática é bem marcada (início apoteótico, pausas intercaladas com levantes, ápice no encerramento) e o bis é agradecido.

E tudo isso para mim, numa única noite, sem a frieza de um mp3 distante, com o calor que só o teatro e a música ao vivo podem dar.

"And we're lost out here in the stars
Little stars big stars blowing through the night
And we're lost out here in the stars
Little stars big stars blowing through the night
And we're lost out here in the stars"

28 de nov. de 2009

Projeto Picasso: um sonho

Dizer e não dizer não é uma questão.


“Projeto Picasso: Um Sonho” é uma peça infantil.

1) Seus personagens não são nada abobados, metidos a adultos coloridos com entonações agudas, movimentos frágeis e feições artificialmente brilhantes. Os cinco atores gastam o seu tempo preenchendo o nosso com vivacidade, alegria e muito vigor. Em cada presença e em cada ausência mostram estar, ou não estar quando se promove a plenitude, inteiros. Ninguém é parte cujo todo é uma história, mas cada um é uma história em si. Em se tratando de um texto que remete a Pablo Picasso, para mim e para meus olhos, isso é o cubismo aplicado de forma inteligente na construção de uma figura dramatúrgica.

2) O ritmo é continuo, sem crescentes ou buracos. O espetáculo inteiro é um lugar de indeterminação: os movimentos de cena do coletivo de elementos (trilha, iluminação e elenco) que se apresentam sem anunciar nada além de si mesmos. O sentido é sempre dado por quem vê num esforço em enganar quem pensa que sabe o que o grupo quer dizer. O Grupo Barraquatro quer dizer algo, mas, dizendo, não diz que algo é esse. Ouvindo, quem tem que dizer somos nós. Os acontecimentos que juntos são um só pairam diante de nós como, desculpem a clichezisse do exemplo, o mar: as ondas nunca são as mesmas, você já viu o mar mil vezes, mas não é possível fazer de conta que ele não está ali ou não dar-lhe crédito. Ao menos dois segundos, você tem que dar inteiramente a ele, ao seu som, à sua energia. “Projeto Picasso” está ali. Ponto.

3) Há colorido. Há emoção. Há aventuras e brincadeiras. Leveza e Pesadeza estão juntas no mesmo objeto, como sempre. É de adulto considerar que algo é leve ou é pesado. No fundo,tudo é leve e tudo é pesado. O Grupo Barraquatro pega esse conceito de jeito: ri com coisas sérias, sem transformá-las em bobas. As coisas são como são. Estão ali. Crianças preferem rir. Choram só quando estão cansadas de rir. 4) A dramaturgia é. Com olhos atentos podemos até reconhecer que há um pulo no passado: fala-se da menina que morreu e ficou dias com o corpo no armário e entender que essa é a história. Mas pode-se achar que tudo isso é brincadeira sem nexo, com sentido, por prazer. As cenas se sucedem pelo ventura de acontecer-se. A brincadeira de esconde-esconde, os tecidos brancos a correr e esconder grandes malas e meninas atrás delas, “Você sabe que horas são?”, o casamento, o namoro, o banho.

Pausa pro suco:

Thiago Pirajira está excelente em cena. Seus olhos expressam uma imensa sinceridade, uma energia tão cativante que nos deixa muito a vontade em rir, em brincar, em participar com ele. Com a agilidade e a técnica de um trabalho que vem da academia, com todo o valor que isso proporciona, sua interpretação nos motiva a permanecer olhando.

A direção de Júlia Rodrigues prende sabendo que, nesse caso, é necessário em soltar. Solta-se com muito cuidado: as atrizes estão muito afinadas em suas melodias individuais, tudo segue a mesma ordem: "desordem, mas com bom gosto, por favor!". Fiquei muito tempo pensando que o espetáculo era lírico demais. E, sim, é. Por isso, tão cheios de valores, alguns deles apontados aqui.

5) Por isso, infantil. No dia em que eu fui, havia crianças na platéia. Riram, se divertiram entre adultos sérios tentando reconhecer os sentidos. Minha tese de que “Projeto Picasso: um sonho” é infantil nada mais é do que uma adultice descarada e inútil. Mas é porque gostei muito de ter visto. É minha forma de dizer que quero ser criança ou, ao menos, gostar sem ter que dizer porquê.

Se digo é porque quero gostar mais. Voltem.

*

Inspirado no texto “As quatro meninas”, de Pablo Picasso.

Elenco:
Carolina Pommer
Daniela Dutra
Juliana Morosini
Kaya Rodrigues
Thiago Pirajira

Direção: Júlia Rodrigues
Orientação: Irion Nolasco e Gisela Habeyche
Iluminação: Bathista Freire
Trilha Sonora: Júlia Rodrigues

25 de nov. de 2009

O vendedor de palavras (por Guilherme Nervo)

Foto: Tiemy Saito


Dez centavos a letra, um real a palavra*

O céu nublado e a ameaça de chuva no último sábado (21 de novembro) não foram páreos aos encantos do Grupo Mototóti, que encenava seu primeiro espetáculo de rua: "O Vendedor de Palavras", escrito por Rodrigo Monteiro.

Carlos Alexandre e Fernanda Beppler, ao lerem a crônica de Fábio Reynol, idealizaram uma peça. Não de palco, mas de rua. A crônica, devidamente adaptada, foi entregue ao grupo no final de 2008.

O tema (incentivo à leitura) se mostrava importante ao mesmo tempo que arriscado. Risco esse contemplado com uma peça de boníssimo humor e leveza. A proposta teve retorno artístico principalmente pelo nível de profissionalismo dos atores, sabendo aproveitar o que quer que fosse, com agilidade e dinâmica. O figurino e o cenário, aparentemente caseiros, baseavam-se em tecidos coloridos, colagens, máscaras, placas e instalações.

Bom seria se eu pudesse dizer que Carlos e Fernanda foram maravilhosamente guiados por Arlete Cunha, sem que um deles sobressaísse. Acontece que minha opinião difere: por vezes Fernanda rouba o foco. Destaco a notável presença de palco e a comicidade física.

Interessante que o incentivo à leitura já começa no próprio figurino dos personagens, repleto de colagens com as mais diversas palavras. Felizmente essa aura de letras não limita-se apenas à estética.

João só é João com Maria; Romeu com Julieta; e Milho com Espiga. Milho é um apaixonado pelas letras. E, assim como sua amada, Espiga, trata-se de um sonhador.
Todo sonhador possui um sonho, também chamado de ideia, qual pode tornar-se em uma ideologia. Nesse caso, a ideia era ir para a Capital. A ideologia, difundir novos pensamentos com a venda de palavras. Afinal, como o próprio Milho diz: "- As pessoas possuem tão poucas palavras que limitam-se a repetirem as mesmas."

Enquanto os jovens sonhadores empolgam-se com a empreitada, as máscaras colocadas indicam que novos personagens acabam de surgir: Adam, o inglês sofisticado, e Odete, a alemã rústica. Inicia-se então uma discussão permeada de controvérsias e ciúmes entre os avós. Era a batalha entre Shakespeare e Goethe.

Recordo de algumas cenas-chave em que o nível de humor era bem adequado: o não-beijo na estação de trem, a apresentação do "Gãgou" (Google) e o contato de Odete com o mundo virtual e suas nomenclaturas esquisitas. A trilha sonora é de bom gosto, constituída de gaita e violão. A projeção vocal é bem trabalhada, não lembro de ter perdido alguma fala.

Já na terra prometida, onde se lê Mercado Público, deparamo-nos com um confronto entre o vendedor de palavras e o "vende-tudo", ou camelô, personagem engraçadíssimo, muito bem interpretado por Carlos Alexandre. Ele censura: "- Mas as palavras pertencem à todos, não pode vendê-las." A resposta logo vem: "- Quem não sabe o que uma palavra significa, não a possui." Sentença coerente, mas com um quê de engraçada. Ou deveria dizer histriônica? Talvez comicamente vil ou charlatã.

"O Vendedor de Palavras" não decepciona, dá gosto de lhe ser assistido!

Pois bem, agora minhas palavras merecem um descanso, uma folga, um repouso, um sossego. Por hoje, compras feitas.

* Crítica publicada no blog Percepção Teatral.

23 de nov. de 2009

Dentrofora

Foto: Gilberto Chaves

Como o azul

Encontrar é um verbo de ação. Quando você encontra algo, você está num lugar. O objeto ou a pessoa encontrada estabelece ou mantém uma relação com você. Isso tudo acontece num ritmo, num tempo. Encontrar não é necessariamente um ponto fixo. O encontro dura um segundo, uma hora, uma vida... E uma vida nem sempre é uma ação. Encontrar não só representa uma ação.

“– Você acha que vamos encontrar?"

Hide and Seek, ou “Dentrofora”, começa com essa frase. Um casal de personagens presos em caixas envidraçadas. Modelos, manequins, estereótipos? Que personagens são esses que nunca se vêem porque estão em caixas separadas, sem comunicação visual entre elas? Que espécie de encontro é esse que um deles almeja perguntar isso no início, e outro no fim? "Dentrofora", novo espetáculo do Grupo In.co.mo.de-te, não é, talvez até nenhum seja, um espetáculo de respostas. Mais que tudo, estão claras as perguntas. Perguntas feitas à nós, cujas respostas fazem com que Jimmy veja Marie. Sem elas, o casal não é um casal. Há tempos que não se via uma história que depende tanto dos ouvintes, mais do que dos contadores, mais do que dos fatos. “Dentrofora” não tem ação dramática. E não é chato. Nada chato.

O mérito de Carlos Ramiro Fensterseifer, o diretor, não está em cuidar de todos os detalhes e levá-los ao potencialmente máximo sem burramente almejar o inalcançável todo. Isso é dever cumprido. O seu melhor é permitir que nós, a platéia, aproximemos o todo de quem a ele se refere. Cada signo (cor, forma, movimento, intenção manifesta) está arregimentado: azul que é tão azul que está em todas as cores, como diz, mais ou menos assim, Paul Auster, nesse texto de 1976. Nesse sentido, a peça, de um modo geral, fala de tudo, de todos, de mim e de vários eus. Você se indentifica e vê outras pessoas também, novas situações, pensa e sente. E atualiza, por indicação do autor, “Dias Felizes”, de Becket. A história que se conta sobre o prazer/desprazer de outras histórias.

Liane Venturella e Nelson Diniz são dois dos melhores atores da capital gaúcha. Praticamente parados em cena, atraem nossa atenção pela forma dinâmica com que usam a voz bem pontual e cheia de movimentos. As intenções faciais, mínimas, ganham vida nos corpos tão experientes, talentosos e estudados desses dois grandes artistas. Adequada e lindamente vestidos, sob focos de luz extremamente interessantes e bem usados, Venturella e Diniz são os fatos da história sem ação quem contam. Interpretações inesquecíveis, num texto célebre, numa montagem tão bem dirigida, produzida e oferecida ao público daqui.

A trilha, apesar de tudo ter sido tão bom, merece um destaque pela força que dá não na história que sai do palco, mas na história que chega a platéia. Coordenada (composta?) por Álvaro RosaCosta, os acordes sublinham o que virá e o que veio, sem ocupar o espaço do que está. Entradas certas, volume adequado, tons que grudam ao ouvido e que arrastam as palavras de Auster e de Fensterseifer. Se algo lidera todos os elementos, para mim, é a música, quem embala o tempo que dura esse encontro nesse espetáculo que não fala sobre como ele ocorreu, nem como ele deixou de ocorrer. Mas dele.

- A vida segue conosco ou sem nós.

*

Direção: Carlos Ramiro Fensterseifer

Elenco:
Liane Venturella
Nelson Diniz

Iluminação: Cláudia De Bem
Trilha Sonora: Álvaro RosaCosa
Figurinos e Maquiagem: Rodrigo Nahas
Produção e Assistência de Direção: Denis Gosch
Divulgação: Léo Sant’Anna
Design Gráfico: Rodrigo Nahas

O vendedor de palavras (por Helena Mello)

Foto: Vilmar Carvalho


Teatro de rua, a princípio, não é confortável. Pode ser ótimo, pode ser divertido, mas confortável não é. Porém, de nada adianta estar na melhor poltrona do teatro perfeito se o espetáculo não presta. Vamos acabar dando a qüinquagésima olhada no lustre para nos distrairmos. Aliás, era este o número de apresentações de O Vendedor de palavras, espetáculo de rua a que fui assistir no Parque Farroupilha.

Para mim, estar ao ar livre é sinônimo de liberdade. É verdade que, em Porto Alegre, não é difícil o clima não atrapalhar. Se não é a chuva, é um calor úmido bem desagradável. Pior ainda para os atores que, até o último minuto, não sabem se vai ser possível apresentar o espetáculo. Mas eles estavam lá. E, diferente do que eu imaginara, com cenário a ser montado. Poucas coisas, mas com uma característica que eu aprecio muito: objetos que se transformam em outros. Então, em poucos minutos, estávamos olhando para uma estante cheia de livros que iria se transformar em um píer. Outros pequenos detalhes e as cenas estavam completas.

O nome do espetáculo, para mim que sou jornalista, já me atraia muito. Atiçava minha curiosidade. Haveria um jeito de pagar minhas dívidas só com palavras? Não precisaria ser contratada por uma grande empresa? Ser escritora? Bem, teria que pagar para ver, quer dizer, neste caso, só ficar para ver já que não cobravam nada. A peça é baseada na crônica de Fábio Reynol, jornalista também. Provavelmente por isso eu tenha gostado da idéia.


Levei o afilhado de minha irmã comigo. Ele não tem ainda o hábito de ver teatro, então, me perguntou quando começaria o show. Eu expliquei que não era um show. Que era um espetáculo. Uma palavra que também serve para show. Mas que nós íamos ver uma peça. É... Usar as palavras não é assim tão fácil. Ainda mais quando, logo no início, um dos atores fala justamente que vai fazer um “show de teatro”. Fui desmentida.

O Vendedor de palavras começa com certa improvisação, chamando o público com música. Uma melodia agradável e comunicativa. Aos poucos, vai sendo contada a história. Uma? Não, várias. A dos avós, a dos pais e a do menino protagonista e sua amada. Dois atores fazem todos os personagens: Carlos Alexandre e Fernanda Beppler. E é um prazer ver que nenhum se destaca. Ambos são ótimos em cena. Confesso que me divirto muito com o sotaque alemão da Fernanda. Com certeza, não é fácil manter esta fala diferenciada de um jeito tão bem feito, ainda mais quando se faz mais de um personagem. Já conhecia Carlos Alexandre da Comédia dos Erros, então, quando o vi, sabia o que podia esperar. Seus personagens são carismáticos e convincentes. Desculpem. Não sei falar de atuação sem usar adjetivos. Talvez, se eu pudesse comprar algumas palavras... Pronto! Nem achei clientela para vender as minhas e já estou pensando em comprar! Era só no que eu pensava quando começaram a oferecer o significado de “histriônico” a cinqüenta centavos. Claro que eu queria. Ainda bem que, lá pelas tantas do espetáculo, a palavra foi revelada. Por isso, passo adiante também de graça. Histriônico é engraçadinho!

As mudanças de figurino acontecem diante de nós. Nem por isso, eles deixam de nos convencer. Ao contrário, todos os personagens estão definidos. São divertidos e inteligentes. Preciso dizer que adoro esta combinação. Algo que faça rir e pensar ao mesmo tempo. Não é perfeito? E é justamente o que fazem algumas falas como: “Por que eu sozinho vou ler para o mundo se o mundo inteiro pode ler sozinho?”

A coordenadora do Instituto Estadual de Artes cênicas, Rosa Campus Velho, estava lá e agüentou firme os 40 minutos de espetáculo. Espero que ela tenha achado que valia a pena. Eu saí com uma palavra a mais e com certeza muito mais pensamentos. Bom, acho que devo dizer que histriônico pode ser também bobo, ridículo, comediante, charlatão...Desta vez, vou doar as minhas palavras, mas na próxima...

O vendedor de palavras é o primeiro espetáculo do Grupo Mototóti e foi contemplado com o Prêmio FUNARTE de Teatro Myriam Muniz 2008 – Ministério da Cultura.

* Crítica publicada no blog Palcos da Vida.

*

Concepção e Atuação: Carlos Alexandre e Fernanda Beppler
Direção: Arlete Cunha
Dramaturgia: Rodrigo Monteiro
Trilha Sonora Original: Fernanda Beppler
Cenografia: O Grupo com a colaboração de Zoé Degani
Máscaras e Boneco - criação e confecção: Paulo Martins Fontes e Eduardo Custódio - Cia Gente Falante Teatro de Bonecos
Figurinos: Coca Serpa
Desing Gráfico: Carlos Alexandre
Produção e Realização: Grupo Mototóti

19 de nov. de 2009

Lady Day


Foto: La Photo

Sapatos na porta

Eu gosto de teatro por causa de sensações como a que vivencio ao assistir espetáculos como “Lady Day”.

****

Outro dia estava lendo sobre o costume oriental de tirar os sapatos antes de se entrar na casa alheia. Lembro que, quando me mudei para o Rio Grande do Sul, achava muito interessante os sapatos do lado de fora da porta, deixados por quem não queria manchar os pisos encerados das casas de madeira. Várias famílias de colegas meus mantinham pares de feltros a disposição dos visitantes para que andassem de meias sem sujá-las. Eu e minha mãe, paulistas, resistíamos a esse hábito: nossa casa é toda com piso de cerâmica. Mas dizia o texto que o costume de entrar descalço é um sinal de aceite da hospitalidade. É dizer “É com muito respeito que eu piso descalço nesse chão que foi limpo para me receber”. O anfitrião oferece. Com humildade, o visitante usufrui.

Melissa Arievo não só entra descalça no piso vermelho do cenário, mas joga-se nele. Serve-se dele. Com muito respeito, usufrui. Vestimos uma roupa legal, nos dirigimos ao teatro, sentamos e esperamos a luz apagar. Limpamos a casa, enceramos o chão. Ela é bem-vinda.

Interessante, e difícil, reconhecer como se dá a construção dessa relação com a atriz. Geralmente, são os atores que preparam o teatro para o público. De alguma forma, os espectadores é que se sentem bem vindos. Em “Lady Day”, fico pensando naquilo que faz com que a tradição se inverta. Talvez porque Melissa Arievo seja uma atriz jovem com uma força que me faz lembrar (e muito) de Evelyn Ligocki em “Borboletas de Sol de Asas Magoadas”. Talvez porque seja negra, como Billie Holiday. Talvez porque seja linda e provida de uma voz também naturalmente linda e tecnicamente bela. Talvez porque “Lady Day” seja um monólogo e todos sabemos da dificuldade que é fazer (bem) um. Na mesma busca, fico me perguntando se não será pelo vermelho do palco, pela música, pelo espaço que já é aconchegantemente livre, libertador e libertário. O bom de escrever uma crítica é o desafio de, na busca aos porquês, chegar perto do prazer vivido como forma de pedir que fique mais um pouco.

A dramaturgia começa por uma não-dramaturgia, se é que isso é possível sob um refletor. Melissa se apresenta e nos toca pela relação dela com a personagem. Então, abaixa-se e, ao subir, estamos com Billie Holiday (1915-1959), ou Lady Day, a maior cantora de jazz da história. Com isso, entendemos que não importa se Melissa não tenha a idade de Billie, se conserve suas próprias reações (sorriso largo, olhos ágeis, corpo ereto) não se mascarando com supostos movimentos colhidos em vídeos tardios da cantora personagem, ou se nunca tenha sido mãe, não seja cantora profissional e nunca tenha sentido preconceito. O que vale é que, em retribuição à acolhida, Arievo nos faz conhecer sua relação de amizade com essa senhora, cujo nome verdadeiro nem se conhece. Amizade sua, mas também da equipe, essa brilhantemente dirigida por Marco Mafra: mão forte em acariciar cada cena desse monólogo tão repleto de boas qualidades. Como quem não se sente dado à falta de hospitalidade, recebemos o que a visitante nos traz com um sorriso e outras provas de efeto. Gratos pela visita e, depois, pelo que isso nos trouxe.

Figurino e luz solicitam nossa abertura de olhos a fim de registrar o momento, mas é na ação que se encontra o teatro. Vestir-se, cantar, sentar e fumar são gestos cuja mediocridade foi muito bem escondida pelo grupo. É com dor que Melissa se desveste, é com prazer que ela se senta e seu fumar num contra-luz laranja surpreende, ratifica, e concorda como se não houvesse aí uma contradição. Todos os usos são ricos e potentes.

Em se tratando de um monólogo sobre uma cantora da primeira metade do século XX, era de se supor que o microfone antigo exposto desde o início fosse cansativamente usado. Não é. O detalhe é que cada signo teatral é resgatado apenas num único momento, naquele que é seu. É nesse sentido que se encontra a carícia do diretor, o valor da dramaturgia, a inteligência dessa equipe. Se por aí dizem que são fracos os sensíveis, há que se forte para manipular os sentimentos próprios e, quem sabe, os alheios.

Mas por mais que eu tenha me empenhado em pedir que Melissa e Billie fiquem um pouco mais, a luz se apaga. Seus sapatos estão na porta. E ela se vai.

*

Direção: Marco Mafra
Atuação: Melissa Arievo
Iluminação: Mariana Terra

Concepção Sonora: André Paz
Maquiagem: Sibele Garroni
Fotos: Studio La Photo - Produção Ângela Martins
Produção: Marco Mafra e Melissa Arievo

15 de nov. de 2009

A Serpente

Foto: Marcos Castelan

Imagem e semelhança



Quando escrevi a crítica de “Apareceu a Margarida”, ainda não sabia que tantos outros textos viriam pela frente. Para cada texto, tinha a intenção de fazer uma experiência com o formato: um era uma carta, um era uma receita médica, outro uma lista de compras, um sem início nem fim, outro sem lógica. No caso desse espetáculo anterior do Teatrofídico, escrevi em rubricas as reais intenções e em caixa normal as falsas. Aquela montagem me pareceu muito interessante pela força que foram dadas às intenções, aos significados submersos. Enfim, a repercussão do texto me mostrou que minha tentativa foi um fracasso. E quem põe um texto na roda (ou uma peça no palco) está sujeito a não ser compreendido e receber puxões de orelha como os que levei. Merecidíssimos diga-se!

O mesmo vou tentar não repetir agora, indo direto ao ponto: a análise do espetáculo “A serpente” (1978), última peça de Nelson Rodrigues (1912 – 1980) e mais nova produção do Teatrofídico, direção de Eduardo Kraemer, comemorando os seis anos do grupo.

Não acho que exista receita pronta para teatro, nem para arte alguma. Pelo contrário, me aventuro a dizer que marca a contemporaneidade a hibridização, a relação entre sistemas diversos, os filtros estéticos que iluminam pontos de vistas antes não descobertos em posições tradicionais. Mas, pelo que estudo, estou convencido de que todos os signos se estabelecem através de sistemas. Sistemas amplos, mas não infinitos. Ou seja, existem limites, esses estabelecidos por quem propõe o signo, que é quem o percebe. E repito o já várias vezes dito (e copiado de Luiz Arthur Nunes): Nelson Rodrigues escreve realismo psicológico em narrativa melodramática.

Foi ótimo, dando um jeito de começar, ver que Kraemer não esqueceu do realismo psicológico ficando só no melodrama como faz a maioria que tenho visto por aqui. Colocou a platéia em diagonal, no centro do espaço, cadeiras viradas para os janelões do Guaíba. Sem caras e bocas, nem desenhos muito marcados, “A Serpente” é apresentada através de diálogos antes consigo mesmos e, depois, entre dois personagens. Há a intenção do minimalismo realista, embora a imensa quantidade de simulacros atrapalhe a nossa percepção sobre essa marca rodrigueana. Ágata Baú, que interpreta Lígia, é a que melhor consegue driblar a enxurrada de informações (mal) dispostas por Kraemer e nos lembrar que sua personagem, o similar de Eva na trama, é feita para ser a nossa imagem e semelhança, também a imagem e semelhança de Deus. Nisso consiste o realismo: o paralelo entre o fora da narrativa e o dentro dela é muito estreito.

Qual é a narrativa? Adão e Eva só brincam no paraíso e ela está entediada disso. Reclama para a Serpente que lhe apresenta a árvore do fruto proibido, o pecado, aquele que é capaz de fazê-la compreender sobre a vida e a morte. Eva come a maçã e já não é mais a mesma que era quando Adão a deixou para conhecer melhor o Éden. Adão volta, mas, coadjuvante que é nessa história, não muda o destino traçado: a expulsão do paraíso. A Serpente é jogada terra abaixo, o inferno. E, como Moisés, na abertura do Pentateuco, Nelson Rodrigues faz crer que essa história é a nossa história. Eu, bem admoestado que sou, é que não vou dizer que não.

Kraemer, com alguns momentos de exceção, diz que não. O realismo se afasta do olho da platéia toda vez que: a) as músicas (num volume absurdamente alto) gritam muito mais que a história: Madonna, Mozart, Elza Soares... ; b) a paleta de cores se define: usar tudo da mesma cor é, quase sempre, um recurso muito pobre de unidade estética. Rico só quando bem justificado, o que não é o caso; c) não há variações de intensidade: a peça começa “lá em cima” e passa-se todo o tempo se esforçando para o ritmo sustentar essa coragem. Exausto, o ritmo cai. Nós também.

Renato Del Campão, que interpreta Paulo, nem de longe alcança a excelência obtida em "Apareceu a Margarida", do mesmo diretor, no mesmo grupo. Sua voz está extremamente alta e quase não conseguimos ouvir os outros atores, sobretudo Maiquel Klein (Décio), cuja dicção nos impede de compreender o pouco que dele conseguimos ouvir. Campão ainda põe em cena uma energia que seria vibrante num monólogo, mas que é irritante numa contracenação: puxa o foco o tempo inteiro, protagoniza até mesmo nas cenas em que seu personagem não aparece. Vestido com um figurino vários tamanhos maiores que o necessário, sua construção é muito efeminada em algumas cenas e pouco efeminada em outras. Paulo, cuja masculinidade é fundamental, não convence como aquele cunhado que é oferecido à irmã da esposa.

De um modo geral, destacam-se positivamente as cenas entre Ágata Baú (Lígia) e Rejane Meneghetti (Guida). São os momentos em que melhor conseguimos respirar e fruir o que a narrativa tem pra dizer. Tanto uma como a outra segue, admoestadas (e boas!) que são, as indicações da concepção, mas, conscientes de que são as protagonistas, permitem que a história aja nelas. E aí que se vê a psicologia que define o realismo deste dramaturgo muito mais essencial, a meu ver, que Moisés.

Não poderia encerrar, quem sabe, o texto mais direto que já escrevi nesse espaço sem elogiar a sequência de revisão, em que os quatro atores recuperam mais que uma vez toda a cronologia do espetáculo, marcando o caráter orgânico que Rodrigues destacou na estréia deste único texto-ato pouco antes de falecer. Se depois de provar do pecado, Lígia pode entender de vida como também entendia de morte, passou a ser inteira, plena, ironicamente imagem e semelhança de Deus. Finalmente.

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