A Serpente
Foto: Marcos Castelan
Imagem e semelhança
Quando escrevi a crítica de “Apareceu a Margarida”, ainda não sabia que tantos outros textos viriam pela frente. Para cada texto, tinha a intenção de fazer uma experiência com o formato: um era uma carta, um era uma receita médica, outro uma lista de compras, um sem início nem fim, outro sem lógica. No caso desse espetáculo anterior do Teatrofídico, escrevi em rubricas as reais intenções e em caixa normal as falsas. Aquela montagem me pareceu muito interessante pela força que foram dadas às intenções, aos significados submersos. Enfim, a repercussão do texto me mostrou que minha tentativa foi um fracasso. E quem põe um texto na roda (ou uma peça no palco) está sujeito a não ser compreendido e receber puxões de orelha como os que levei. Merecidíssimos diga-se!
O mesmo vou tentar não repetir agora, indo direto ao ponto: a análise do espetáculo “A serpente” (1978), última peça de Nelson Rodrigues (1912 – 1980) e mais nova produção do Teatrofídico, direção de Eduardo Kraemer, comemorando os seis anos do grupo.
Não acho que exista receita pronta para teatro, nem para arte alguma. Pelo contrário, me aventuro a dizer que marca a contemporaneidade a hibridização, a relação entre sistemas diversos, os filtros estéticos que iluminam pontos de vistas antes não descobertos em posições tradicionais. Mas, pelo que estudo, estou convencido de que todos os signos se estabelecem através de sistemas. Sistemas amplos, mas não infinitos. Ou seja, existem limites, esses estabelecidos por quem propõe o signo, que é quem o percebe. E repito o já várias vezes dito (e copiado de Luiz Arthur Nunes): Nelson Rodrigues escreve realismo psicológico em narrativa melodramática.
Foi ótimo, dando um jeito de começar, ver que Kraemer não esqueceu do realismo psicológico ficando só no melodrama como faz a maioria que tenho visto por aqui. Colocou a platéia em diagonal, no centro do espaço, cadeiras viradas para os janelões do Guaíba. Sem caras e bocas, nem desenhos muito marcados, “A Serpente” é apresentada através de diálogos antes consigo mesmos e, depois, entre dois personagens. Há a intenção do minimalismo realista, embora a imensa quantidade de simulacros atrapalhe a nossa percepção sobre essa marca rodrigueana. Ágata Baú, que interpreta Lígia, é a que melhor consegue driblar a enxurrada de informações (mal) dispostas por Kraemer e nos lembrar que sua personagem, o similar de Eva na trama, é feita para ser a nossa imagem e semelhança, também a imagem e semelhança de Deus. Nisso consiste o realismo: o paralelo entre o fora da narrativa e o dentro dela é muito estreito.
Qual é a narrativa? Adão e Eva só brincam no paraíso e ela está entediada disso. Reclama para a Serpente que lhe apresenta a árvore do fruto proibido, o pecado, aquele que é capaz de fazê-la compreender sobre a vida e a morte. Eva come a maçã e já não é mais a mesma que era quando Adão a deixou para conhecer melhor o Éden. Adão volta, mas, coadjuvante que é nessa história, não muda o destino traçado: a expulsão do paraíso. A Serpente é jogada terra abaixo, o inferno. E, como Moisés, na abertura do Pentateuco, Nelson Rodrigues faz crer que essa história é a nossa história. Eu, bem admoestado que sou, é que não vou dizer que não.
Kraemer, com alguns momentos de exceção, diz que não. O realismo se afasta do olho da platéia toda vez que: a) as músicas (num volume absurdamente alto) gritam muito mais que a história: Madonna, Mozart, Elza Soares... ; b) a paleta de cores se define: usar tudo da mesma cor é, quase sempre, um recurso muito pobre de unidade estética. Rico só quando bem justificado, o que não é o caso; c) não há variações de intensidade: a peça começa “lá em cima” e passa-se todo o tempo se esforçando para o ritmo sustentar essa coragem. Exausto, o ritmo cai. Nós também.
Renato Del Campão, que interpreta Paulo, nem de longe alcança a excelência obtida em "Apareceu a Margarida", do mesmo diretor, no mesmo grupo. Sua voz está extremamente alta e quase não conseguimos ouvir os outros atores, sobretudo Maiquel Klein (Décio), cuja dicção nos impede de compreender o pouco que dele conseguimos ouvir. Campão ainda põe em cena uma energia que seria vibrante num monólogo, mas que é irritante numa contracenação: puxa o foco o tempo inteiro, protagoniza até mesmo nas cenas em que seu personagem não aparece. Vestido com um figurino vários tamanhos maiores que o necessário, sua construção é muito efeminada em algumas cenas e pouco efeminada em outras. Paulo, cuja masculinidade é fundamental, não convence como aquele cunhado que é oferecido à irmã da esposa.
De um modo geral, destacam-se positivamente as cenas entre Ágata Baú (Lígia) e Rejane Meneghetti (Guida). São os momentos em que melhor conseguimos respirar e fruir o que a narrativa tem pra dizer. Tanto uma como a outra segue, admoestadas (e boas!) que são, as indicações da concepção, mas, conscientes de que são as protagonistas, permitem que a história aja nelas. E aí que se vê a psicologia que define o realismo deste dramaturgo muito mais essencial, a meu ver, que Moisés.
Não poderia encerrar, quem sabe, o texto mais direto que já escrevi nesse espaço sem elogiar a sequência de revisão, em que os quatro atores recuperam mais que uma vez toda a cronologia do espetáculo, marcando o caráter orgânico que Rodrigues destacou na estréia deste único texto-ato pouco antes de falecer. Se depois de provar do pecado, Lígia pode entender de vida como também entendia de morte, passou a ser inteira, plena, ironicamente imagem e semelhança de Deus. Finalmente.
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