28 de jan. de 2011

Essa noite se improvisa Tennessee Williams

Foto: divulgação

Desperdício bobo

Antes, preciso dizer que, como aconteceu no ano passado, não consegui ficar até o final de Essa noite se improvisa Tennessee Williams. Embora a divulgação constante no material do Porto Verão Alegre, informe que a duração era de aproximadamente 90 minutos, aos 120, eu já não agüentava mais e parti. Exatamente o mesmo aconteceu com Essa noite se improvisa, em 2010. Ontem, a produção foi até às 23h40min, tendo começado às 21h.

Júlio Conte, que há trinta anos (Vamos brincar de apagar a luz, 1980) escreve e dirige suas próprias peças e, há alguns anos, vem investindo em jogos dramáticos numa formatação comercial (motivada pelo boom das Stand Up Comedies, liderando uma outra forma de fruição teatral diferente da convencional), é quem assina os clássicos Bailei na Curva e Se meu ponto G falasse. Todos os que são fãs desses dois excelentes espetáculos, como eu, sempre daremos um voto de confiança para Conte e, com prazer, buscaremos espontaneamente valorizar o seu trabalho. Essa noite se improvisa Tennessee Williams tem em seu elenco um número aberto de atores-jogadores (cujos nomes não se encontram no material de divulgação), um cenário despojado como também os figurinos e champagne entregue em taças ao público à vontade. É uma festa em que dançamos, conversamos, participamos. E é preciso ser muito mal humorado para, diante desse início, não se abrir alegremente para os jovens atores e seu diretor jovial.

A primeira parte do espetáculo é composta por jogos dramáticos, todos eles já explorados em Tá, e aí?! , outra produção de Júlio Conte, anterior a essa. O resultado é frustrante infelizmente. Por quê? Porque, em Tá, e aí?!, todos sabíamos que isso era o corpo da programação que havíamos escolhido. No caso aqui em questão, ao final de 50min, eu disse cinqüenta minutos, ainda não ouvimos falar de Tennessee Williams e essa é a nossa frustração primeira. Ao olhar para o relógio, nos sentimos enganados, embora um tanto quanto animados pelos jogos e suas realizações das quais pessoas do público, gentilmente oferecidas, participam.

Eis, então, que começa a segunda e terceira parte de Essa noite se improvisa Tennessee Williams. E, durante todo o tempo em que permaneci assistindo, lembrei da crítica de Bárbara Heliodora ao espetáculo gaúcho Clownssicos. Ainda não concordando com o jeito como o texto foi publicado, acho que consegui entender o que ela sentiu ao ver aquele espetáculo. Seu texto foi uma reação de defesa os clássicos, pois, diferente de mim, ela entendeu a produção da Cia do Giro uma afronta às tragédias. (Um grupo de palhaços se cansa de sempre fazer comédias e resolve mostrar que também conseguem fazer tragédias e dramas.) Aqui, em que não há personagens bem definidos (os "palhaços" de Clownssicos foram todos criados a partir da técnica clown) e nem uma dramaturgia estruturada, só o que sinto é a vontade de fazer o mesmo.

O dramaturgo Júlio Conte desrespeita o dramaturgo Tennessee Williams quando pasteuriza a sua obra e, não menos pior, a sua vida. Em rápidas palavras, apresenta uma biografia do autor e algumas características da sua dramaturgia. A questão é: como falar seriamente de Tennessee Williams diante de pessoas que compraram o ingresso para estar ali, ocupando um espaço público (Centro Municipal de Cultura) e algumas noites na grade um festival como o Porto Verão Alegre  em poucas palavras? Impossível. O resultado é a superficialidade, a pobreza e a inverdade.

Júlio Conte lê as rubricas iniciais de algumas cenas. Seus atores-jogadores, que decoraram o texto dos diálogos, se vestem rápida e pobremente com algumas roupas e alguns objetos postos sobre a roupa do próprio corpo e, em cenários improvisados após a sessão de jogos que abriu a noite, estabelecem a encenação de Um bonde chamado desejo. A seguir, pessoas do público ocupam o lugar dos atores e a cena se repete, já sem os diálogos decorados, mas em mente o que acabaram de ouvir e de ver. (Na terceira parte, o mesmo acontece com a exibição de cenas do filme dirigido por Elia Kazan (1951)). Assim, Blanche se torna uma bêbada desequilibrada, Kowalski se torna um ogro brutamontes e Stella uma ingênua esposa. Isso sem falar nos personagens menores ainda mais superficializados e empobrecidos sob a direção de Conte. Se estivéssemos falando de Melodrama, talvez o resultado não seria tão ruim. Mas Tennessee Williams (EUA, 1911-1983), um pós-realista que, entre dezenas (32 peças curtas, 7 peças médias e 24 peças longas) de textos, escreveu À margem da vida (1944), Gata em teto de zinco quente (1955) e Doce pássaro da juventude (1959), não construiu seus textos sobre personagens tão rasos, não desenhou suas ações sem cuidado e não deixou espaço para nenhuma versão cênica de seus textos em que se utilize apenas cadeiras, parcas peças de figurino e iluminação. De repente, o espectador vê o público rindo de Um bonde chamado desejo (1947), não pelas situações criadas pelo dramaturgo, mas pela ingenuidade dos atores-jogadores e das pessoas do público que foram “brincar” de fazer teatro.

A defesa aqui exposta não parte do pressuposto do culto ao clássicos como se um texto clássico fosse um texto intocável. Teatro é para ser tocado e Júlio Conte está certo quando, no início, lembra que essa arte nasceu em clima de festa dionisíaca. Mas por que utilizar o nosso depósito de confiança em uma brincadeira boba como essa? Por que não se utilizar dos atores, do espaço, do nome na mídia, do conhecimento acumulado e do talento nato e desenvolvido para, de fato, produzir a encenação de Um bonde chamado desejo?

Teatro acontece também em salas de ensaios. Então, o que vemos é um ensaio aberto?

Por que improvisações em cima de Tennessee Williams não estão baseadas em Tennessee Williams, mas numa versão wikipediana de um único de seus textos?

Nas seguidas levas de pessoas que saiam antes, comigo e após mim da Sala Álvaro Moreyra, o clima de desperdício pairava: tempo, dinheiro e conhecimento foram jogados fora.



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Ficha Técnica:
Concepção e realização: Júlio Conte.
Facilitadores: Milimétricos e Larissianos.
Som & Luz: Gabriel Lagoas.
Produção: Luz de Vela.

26 de jan. de 2011

Abajur lilás


Foto: divulgação

Quando a falta de ousadia é bem vinda

Antes, a velha cantilena tantas vezes repetidas nesse blog: Plínio Marcos escreve realismo naturalismo. Os personagens são animais, guiados pelo próprio extinto, sem moral, sem ética, sem bonzinhos e malzinhos na dramaturgia. A situação é um ecossistema opressor, angustiante, sufocante. É possível adaptar a versão teatral de muitas formas, mas me parece sempre meio burrice não se utilizar das propostas do texto quando elas só o ajudam a se organizar enquanto sistema de signos. Leandro Ribeiro, diretor da Cia Gato & Sapato, não ousou e, por isso, acertou em cheio, isto é, recebe do crítico aqui uma ótima avaliação.

A assistência consegue identificar em todos os personagens algo de muito ruim e algo de muito bom. Não há um protagonista bem definido e toda a peça pode ser vista a partir de todas as construções. Três prostitutas são trazidas a um quarto: cada uma delas têm um quê de humanidade que as aproxima e um quê de animal que as distancia. O quarto, por sua vez, é personificado pelo seu dono, Giro, o proprietário do Mocó. Também ele tem em si a maldade e a bondade na sua construção.

Dilma é má para Giro, não contando pra ele o que sabe sobre o que acontece no quarto, mas é mãe e faz tudo por seu filho. Célia é má para Giro, agindo contra ele em vários momentos, mas é mulher e não suporta a própria vida sem estar bêbada. Leninha é egoísta, mas colabora com as companheiras, não contando que quebrou, afinal, o abajur lilás que dá nome ao espetáculo. As três atrizes (Júlia Marsiaj, Kelly Gil, Laura Becker) investem nas suas personagens atingindo, cada uma, de bons a ótimos resultados. Vemos a raiva de Célia, a maternidade de Dilma, o veneno de Leninha.

Giro, interpretado por Anildo Michelotto, entre todas as construções, é a figura menos bem acabada. O ator gagueja em vários momentos e usa pouco das nuances de que disporia se observasse as propostas de Plínio Marcos com mais cuidado. O personagem, no entanto, sendo o mais forte por representar não apenas a si mesmo, mas a própria situação, não deixa a desejar, embora permita que se espere dele um pouco mais. Oswaldo, interpretado pelo carioca (com fortíssimo e inquebrantável sotaque seja em que peça for) Gabriel Aquino, é, em contrapartida, a figura que melhor se encontra nesse grupo. O peso do personagem contrasta diretamente com a figura do ator, não promovido de grande porte e de músculos avantajados. O resultado dessa construção confere à peça a sensibilidade necessária para mostrar ao público uma história que é real pela naturalidade humana das suas estruturas.

Leandro Ribeiro orquestra os sentidos para, em ascendência, nos sufocar nessa situação limite para quem a história conta e para quem a assiste. Com um elenco sem a experiência que conferiria mais organicidade à produção, seus méritos são ainda maiores. Em todos os sentidos, Abajur lilás é uma produção que acrescenta valores ao teatro gaúcho e, em especial, ao Departamento de Arte Dramática da UFRGS, lugar de origem dessa equipe.

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Ficha Técnica:
Direção: Leandro Ribeiro
Elenco: Anildo Michelotto, Júlia Marsiaj, Kelly Gil, Laura Becker e Gabriel Aquino.
Participação: Jordan Maia
Criação de Luz: Lucca Simas
Figurinos, Cenários, Produção e Realização: Cia de Teatro Gato&Sapato
Duração: 60 minutos
Faixa Etária Mínima: 16 anos

24 de jan. de 2011

Pode ser que seja só o leiteiro lá fora

Foto: divulgação

Vivo!


Escrito em 1983, o texto teve sua primeira versão cênica no ano seguinte dirigido por Luciano Alabarse e apresentado no Clube de Cultura. No elenco, constavam os seguintes atores: Gilberto Gawronski (Baby), Mauro Soares (Alice Cooper), Ivan Mattos (Leo), Eliane "Gorda" Steinmetz (Rosinha), Clélia Admar (Mona e Carlinha Baixo Astral), Haroldo Aro (João) e Java Bonamigo (Angel). No cenário, havia uma carcaça imensa de um velho caminhão e a trilha sonora era toda de músicas de Meredith Monk. Em tempos pós hippies (Hair já estava fazendo 15 anos) e pré-AIDS (Só em 85, com a morte de Rock Hudson, o mundo tomou conhecimento da doença), Pode ser que seja só o leiteiro lá fora causava impacto sem ofender, promovia o debate sem ser de todo politicamente incorreto. Hoje, o mesmo texto não nem é tão mofado como Hair, nem tão denso como Bernard-Marie Koltèz.

O primeiro e grande mérito da produção atual do Grupo Teatro Ofídico é mesmo a coragem de trabalhar nesse texto. Como já foi dito, seu caráter datado é forte e assustador. Além disso, todos sabem que não está, na dramaturgia, o Melhor de Caio Fernando Abreu, mas, sim, nos seus contos, tamanha é a força de suas palavras a ponto de, em vários textos, desconsiderar a ação dramática. Eduardo Kraemer, o corajoso que já dirigiu a ótima produção Apareceu a Margarida, investe no texto e, em vários momentos, dribla a dificuldade de interpretá-lo na condução de seu grupo de atores, quase todos pouco experientes, e consegue bons resultados estéticos.

Ainda nos aspectos positivos, o ritmo do espetáculo é constante, ágil, vivo. Todos os elementos visuais se encaixam e os movimentos cênicos fazem parte desse todo muito bem cuidado. A produção se utiliza do espaço de forma bastante rica, explorando as possibilidades no sentido de ressignificar os lugares do jeito que estão. Uma fita preta e amarela separa o público do espaço cênico, esse composto por sucata, lixo, uma enorme quantidade de objetos dispensados pela sociedade consumista. Os personagens, por sua vez, que passam a habitar esse espaço, também assim se sentem: preteridos, desfavorizados, esquecidos... Em comum, criam um mundo à parte e, nele, podem ser aquilo que lhes apetece. Por mais racionais que algumas figuras sejam, Leo, por exemplo, sabemos que no seu íntimo ele está desfrutando a falsa segurança que ali vive. Esse contexto, que termina com fortes batidas na porta, talvez da polícia, talvez do leiteiro, talvez de Deus ou do Diabo, talvez de outros querendo entrar e participar, relaciona-se diretamente com o terrível (e real) fim de O diário de Anne Frank. A SS vem tirar as duas famílias do seu esconderijo e levar todos para campos de concentração. O anexo, o esconderijo, a proteção, a segurança terminou. Não sobra muito de vida na sequência. Os personagens da peça de Caio F. também morrerão quando a palavra FIM chegar no texto ou, segundo diz o próprio autor, quem sabe quando o último espectador sair do teatro? Os personagens de Kraemer morrerão quando as luzes se apagarem e o público aplaudir.

Entre os atores, Andryos Montanari se destaca em absoluto. É verdade, sim, que o personagem Alice Cooper, por ser homessexual, é rica em relação aos demais, o que ofuscaria a conclusão sobre a excelência do trabalho desse jovem ator. No entanto, qualquer um que leia o texto reconhece as imensas possibilidades de trabalho que o texto oferece também aos outros personagens e que não foram desenvolvidas pelos demais atores no mesmo nível que Montanari. Seus colegas de elenco, embora num padrão suficiente e plenamente aceitável, estão presos ao texto, amendrontados com as imagens e cuidadosos com o bem dizer. Em conclusão, as interpretações estão boas, mas o ponto alto da encenação é Andryos Montanari.Sua construção é plena de movimentos, de criatividade, de pulsação. As reações são honestas, instantâneas, críveis. Sem dúvida, uma possível grande revelação.

O único ponto baixo que me parece precisar ser levantado é a concepção de figurinos. A produção das roupas “fantasia” os atores e, não fosse o material utilizado, os afastaria do lugar que foi concebido para estarem. Vestir-se com lixo, com que é jogado fora é bom e vem a calhar no todo do trabalho, mas enfeitar-se com ele nubla o sentido. O saco preto, por exemplo, funciona em todos os lugares em que ele não está propositalmente colocado, como no caso dos figurinos de Leo e de Carlinha Baixo-astral. Os talheres de plástico na cartola de Babe é outra expressão de equívoco: em um momento da peça, os personagens se fantasiam para uma festa idealizada por Mona. Com um figurino concebido dessa forma, qual o sentido das fantasias se eles as roupas já estão produzidas tão ricamente?

A rapidez das cenas, também mais ágeis pela retirada do personagem João, garante o ganho de quem vai assistir a esse espetáculo, tão rico em poética e em possibilidades múltiplas de relações. O Projeto Usina das Artes, responsável pela produção tem aqui um bom exemplo de seu sucesso. Quem, como eu, não viu a produção histórica dos anos 80, não deve perder essa oportunidade.

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Ficha técnica:

TEXTO: Caio Fernando Abreu
DIREÇÃO: Eduardo Kramer
ELENCO: Andryos Montanari (Alice Cooper), Diego Dornelles (Leo), Maiquel Klein (Babe), Moni Lannes (Rosinha), Pingo Alabarce (Alejandro/Angel) e Rejane Meneghetti (Mona).
FIGURINOS: Ana Hoffmann
MAQUIAGEM: Luana Zinn
CENOGRAFIA: O Grupo e Alexandre Moreira
REALIZAÇÃO: Usina das Artes e Teatrofídico

23 de jan. de 2011

Inimigas íntimas

Foto: Néstor Monastério


Bem cuidado e bem vindo!

Inimigas íntimas é um dos melhores e mais interessantes textos escritos por Artur José Pinto, sem dúvida, o dramaturgo gaúcho mais encenado, mais assistido e, ingratamente, nem sempre reconhecido. Em cena, estão Ingra Liberato e Fernanda Carvalho Leite, dirigidas por Néstor Monastério. Ilustram o palco, dois grandes painéis com as fotos das atrizes quando crianças e duas cadeiras. André Oliveira auxilia na troca de figurino, fazendo a contra-regragem de um jeito discreto, mas sem esquecer que está sendo visto. Nada além. O espetáculo é bastante simples e despretensioso. Assim, não se propõe a muito e, por isso, não muito pode ser esperado, nem cobrado. O feliz resultado de uma avaliação é lucro total para quem assiste.

Já entrando no seu quarto ano de temporadas (de sucesso), os dois valores da produção são as atrizes e, através delas, a direção, e o texto. Começando pelo segundo, é preciso destacar a leveza com que a sucessão das cenas se dá. Rapidamente reconhecemos as personagens e, embora haja o comercial (e não ruim) trato com temas como universo feminino e a relação entre homens e mulheres, é possível identificar questões um pouco mais profundas, como o relacionamento das mulheres consigo mesmas e seus sonhos e a manutenção de uma amizade, a criação e a sustentabilidade de laços.

Mariana e Lúcia foram melhores amigas quando adolescentes. A primeira queria ser atriz e a segunda queria ser bióloga e ter filhos. Mariana dera seu primeiro beijo em um garoto chamado Osmar, por quem, tempos depois, Lúcia se apaixonou. O momento crucial da amizade (e da peça) se dá num teste para um espetáculo de teatro. Lúcia acompanha a amiga, torcendo por ela. Convocada pelo diretor a participar, Lúcia ganha o personagem no lugar da amiga. Talvez como vingança, Lúcia ganha o coração de Osmar, com quem se casa e tem três filhos. Lúcia se torna uma atriz de sucesso não só no teatro, mas também no cinema e na televisão. Os anos passam e, ao longo do tempo, é raro haver um encontro entre as duas. Ao fim de cada um, sempre fica a promessa de que se reencontrem um dia.

Eis que o dia do ajuste de contas chega e é quando nós, o público, começamos a participar disso, ouvindo essas histórias em suas intensidades e cores. Mariana tem como interlocutor a sua empregada Ivette. Lucia, por sua vez, conversa com Jussara, uma jornalista que a procura para uma entrevista. Entre nós e as protagonistas, as personagens coadjuvantes, felizmente, enriquecem a cena trazendo cada uma um roll de características que deixa as situações mais engraçadas.

Ainda sobre o texto, Artur José Pinto acostuma o seu leitor a acompanhar as histórias com calma. As cenas são longas e as historias são contadas com detalhes. Não há, como perigosamente poderia haver, uma avalanche de piadas ou situações escatológicas que as comédias rasteiras frequentemente trazem. O humor é de extremo bom gosto. No entanto, o final parece ser brusco e isso só tem um motivo: todas as passagens são calmas. Então, quando as luzes se apagam ao fim do espetáculo, elas nos pegam de surpresa. Em Inimigas íntimas, o ritmo nunca é acelerado e, o que é bom, também não diminui. Sua constância, assim, nos faz esperar por um final expresso de forma mais leve.

Liberato e Carvalho estão excelentes em cena, atingindo todos os objetivos esperados. O texto é dito de forma viva e honesta. Há franqueza e uma certa ingenuidade na exposição do corpo, nas brincadeiras cênicas, na movimentação. Oliveira participa na construção desse clima que cativa o espectador disposto a se divertir em uma peça de quase puro entretenimento sadio. Mais uma vez, Néstor Monastério aposta no simples, sem descuidá-lo em nenhum detalhe. Ele ganha porque é responsável e cuidadoso com aquilo que burramente poderia ser feito “de qualquer jeito” como, infelizmente, não é incomum se ver na capital gaúcha. Nós ganhamos porque somos respeitados, o teatro ganha porque, enfim, é valorizado.

Com uma programação quase que inteiramente dominada por comédias, o Porto Verão Alegre só tem a crescer por incluir essa em sua grade.

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FICHA TÉCNICA:

Autor: Artur José Pinto
Direção: Néstor Monasterio
Elenco: Fernanda Carvalho Leite e Ingra Liberato
Contra-regra e mordomo: André Oliveira
Figurino: Sérgio Lopes
Cenografia: Rodrigo Lopes
Música: Duca Leindecker, Néstor Monasterio
Coreografia: Jussara Miranda
Iluminação: Néstor Monasterio
Programação Visual: Nicolas Monastério
Fotos: Nestor Monastério
Website:Anderson Dorneles
www.inimigasintimas.com.br

21 de jan. de 2011

Namorado? Eu tinha um...


Foto: divulgação

Novo resultado negativo

Uma parte discordante torna o todo disforme. Em peça que se apresenta como dramática, ou seja, um único foco, uma história contada do início ao fim com peripécias, reconhecimentos e catarse, a parte é só uma amostra do todo. (Crítica de Há um incêndio sob a chuva rala, publicada nesse blog em 18/01/2010)

Namorado? Eu tinha um... É o título comercial de um espetáculo que parte da produção de Há um incêndio sob a chuva rala, trazida ao Porto Verão Alegre no ano passado. Não é a mesma produção, mas um novo trabalho. Entender as distâncias e as proximidades entre aquele e esse é um desafio que um pesquisador compra com prazer. Como aqui não há espaço para a publicação de ensaios, mas de críticas especificas de espetáculos específicos, me proponho a olhar para esse novo espetáculo, embora admita ser difícil me distanciar do que o originou.

Acho que é Barthes quem diz que o teatro é um mar de redundâncias. Se observarmos o teatro dramático, vamos ter que concordar com isso. E avançar nesse semioticista: visto como um sistema, o teatro é um todo cujas unidades menores são heterogêneas. A relação que as une, a liga que torna todo o todo, faz com que cada unidade se mostre parcialmente, de jeito que a parte mostrada pareça homóloga ao seu par, redundante. Para ser mais acessível, alguns exemplos: o modo como um personagem anda não é próprio do teatro. A cor de um figurino não é própria do teatro. O texto dito não é próprio do teatro. Essas três unidades são de outros sistemas, mas são recolhidas pelo teatro, reunidas por ele de forma que, encadeadas juntamente com várias outras, parecem inseparáveis. No caso de Namorado? Eu tinha um... deveria parecer.

A distância entre os dois espetáculos está na concepção. A direção de Daniela Lima é diferente da de Juliana Thomaz. No entanto, novamente, alguns princípios básicos foram desconsiderados. O mesmo princípio, em resumo: a verossimilhança. A não compreensão de que o espetáculo é um sistema e que cada parte se relaciona de forma análoga ou não-análoga com seus pares se repete um ano depois. Vejamos:

A Vizinha bate à porta do Vizinho de cima para verificar a área de serviço para... (reticências de Vera Karan) Esse Vizinho é um senhor, mora sozinho e, ao acordar, liga o rádio num volume bastante alto, o que não concorda com sua cara de sono e sua resistência em levantar da cama. A Vizinha, construção interpretada pela própria diretora Daniela Lima, é extremamente caricata e bastante longe do realismo (tão interessante à Vera Karan, na construção de seus textos tragicômicos). Ri de um jeito exagerado, mantém os olhos arregalados, muda de intensidade, tem os joelhos flexionados e os pés voltados para dentro. O Vizinho resmunga várias palavras, mas nunca as verbaliza em volume audível, com exceções de dois momentos (quando pergunta se ela tem namorado, quando então, ficamos sabendo o nome da peça; e num outro momento nada significativo.). Não se encontra a justificativa desse resultado da concepção: por que ele não fala? Por que ele não a manda embora? Por que ele resmunga e não fica, então, em silêncio?

As incongruências continuam: datilografa-se no escuro e continua-se datilografando quando a energia elétrica se reestabelece; o programa de rádio toca duas vezes a mesma música, sem a presença de um locutor; lava-se as mãos após usar a privada, mas não se puxa a descarga... Há uma espécie de carrinho na porta de entrada com rodinhas para o lado de dentro e para o lado de fora do apartamento. Quando a Vizinha toca um rock no rádio, o Vizinho se irrita. Depois, parece gostar... A Vizinha é tão íntima que faz cocô no banheiro do desconhecido Vizinho de porta aberta, mas, momentos depois, fica com vergonha de entrar no banheiro novamente quando ele está tomando banho no seu boxe. Rock com figurino de Great Gratsby, depois Carmen Miranda... O Vizinho a odeia e não entende porque ela está ali. Cogita sair de casa e deixá-la lá levando apenas um casaco vários números menor do que eu seu em uma sacola. Depois, está a ponto de deixá-la amarrar-se na própria cama com meias de nylon. E por aí vai...

Em suma, o que falta em Namorado? Eu tinha um... ? Reflexão. Não basta ter boas intenções para fazer teatro profissional. Para as pessoas que apenas as tem existe o teatro amador, sempre analisado do ponto de vista de quem entende que, em cena, estão pessoas de boa vontade mostrando o seu melhor. No teatro profissional, há que se cobrar preparo, estudo, competência, afinação.

O resultado, mais uma vez, disforme do projeto de versão cênica para o conto de Vera Karan leva a produção para um lugar sem boas avaliações. O público não sabe se ri, se chora, se vivencia a peça ou se permanece em seus próprios pensamentos. Aos leitores foi dado muito trabalho: tentar unir uma grande quantidade de signos dispostos sem responsabilidade. Ao fim, volta-se à mesma conclusão, agora, aniversariante:

Aristóteles precisa ser lido mais vezes.

*
FICHA TÉCNICA:
Texto: Vera Karan
Atuação: Daniela Lima
Partição Especial: Antonio Carlos Preussler
Trilha Sonora: Rafael Siqueira e Thiago Soares
Cenário e Figurino: Cláudio Benevenga
Iluminação: Taylor Araújo
Fotografia: Claudia Ryff Moreira
Direção: Daniela Lima

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