16 de fev. de 2010

Homens

Foto: divulgação

O Inusitado


A comédia tem como um dos seus elementos o inusitado. Não se trata, como aliás nenhum, de um elemento identitário: não é o inusitado que caracteriza a peça como cômica. O inusitado pode ser encontrado em vários gêneros dramáticos e teatrais como, num exemplo bem pouco cerebral, o arroz. O arroz está na comida brasileira e está, também, na comida japonesa. Mas o arroz com feijão é diferente do arroz no sushi. O inusitado é utilizado de forma fenomenologicamente diferente na comédia, em todos os tipos que existem, como também é num texto dramático, ou pós-dramático, ou não-dramático. O inusitado é um elemento utilizado na trama de Männers, roteiro levado às telas em 1985 pela diretora alemã Doris Dörrie, que, no Brasil, se chamou Homens. Bob Bahlis trouxe para um palco uma produção que utiliza o teatro para contar a mesma história.

Um marido descobre pela boca de sua mulher que está sendo traído. Ao descobrir o homem que está saindo com sua esposa, descobre também que ele está procurando alguém para dividir o aluguel do seu pequeno apartamento. O protagonista, então, candidata-se à vaga e fica algumas semanas fora de casa, longe da esposa e dos filhos, com a desculpa de que está em férias em algum lugar distante. Nesse tempo, descobre como age o rival, como ele encara a vida, o que ele pensa da mulher mais velha com quem anda saindo, esposa do inquilino. A situação é construída para diálogos cômicos em que o protagonista obviamente se vê ridicularizado inusitamente, tendo que encontrar-se com a própria esposa fantasiado de macaco para que ela não o reconheça e, além de tudo, servindo ao seu senhorio arrumando-lhe um novo emprego e dando conselhos sentimentais.

De uma forma bastante inteligente, Bob Bahlis exclui personagens, diminui o apartamento e apressa a trama. Toda a história acontece agora dentro do apartamento do Stefan, o pintor que namora Paula, esposa de Júlio, esse último seu inquilino. O cenário, na cena teatral, é muito bem distribuído e de extremo bom gosto: todos os espaços são preenchidos, há vários níveis bem explorados e todos eles só contribuem com a trama que privilegia o bom diálogo como marca importante. A comédia de Dörrie e de Bahlis está no texto e não no cenário, tampouco no figurino, luz ou trilha, todos esses elementos postos adequada e inteligentemente a favor do teatro e do teatro gaúcho.

Fábio Monteiro (Stefan) dá ao seu personagem uma delicadeza que não é vista na versão fílmica. Não há, na versão teatral, malícia mas profundidade. O ator explora o personagem de uma forma diferente do seu antecessor cinematográfico contribuindo com um colorido maior na discussão das relações. Rafaela Cassol (a ex namorada do pintor) aparece bem mais na trama de Bahlis do que sua antecessora na versão de Dörrie. Cassol, cujo carisma já foi reconhecido em outra crítica e pode ser comprovado no sucesso “Dez (quase) amores”, mais uma vez, acrescenta valor à obra de Bahlis e também à personagem de Dörrie. A atriz é expressiva e faz da cena em que sua personagem conversa com Júlio um ponto de mudança bastante relevante à narrativa, o que não acontece no filme alemão.

Marcelo Naz e Claudia Meneghetti provocam mudanças bastante significativas ao texto original, sem que isso seja negativo. Marcelo Naz é um ator maior que os personagens que interpreta: o ator leva muito de si para os personagens fazendo com que, ou eles se pareçam com ele, ou eles inexistam. Naz dialoga bastante com o público e emprega nesse gesto grande parte da força do seu trabalho como ator. Embora nem sempre isso seja positivo, em “Homens”, a situação cômica do texto fica engraçada na encenação produzindo uma reação do público de bastante riso. Claudia Meneghetti dá um escracho para Paula que, nem de longe, é próximo a interpretação da atriz alemã. Em duas das aparições da atriz, a personagem está bêbada e precisa ser um péssimo comediante para, interpretando alguém bêbado, não fazer alguém rir. Nesses dois casos interpretativos, Bahlis assina um deslocar da comédia do texto para a interpretação: o ator e sua capacidade de chamar a atenção acabam prevalecendo, embora nem sempre engrandeçam a obra.

Entre todas as utilizações do inusitado já dispostas (as voltas do texto em seus diálogos, a boa opção de cenário, a adequada e sóbria utilização do figurino, iluminação e trilha sonora, e os percursos interpretativos dos quatro atores), há apenas um evento (três situações) bastante negativo nesse espetáculo que, sem ter a pretensão de ser a comédia do ano, não chega a desagradar. Trato aqui da relação do espetáculo como um todo em relação às outras produções da capital gaúcha e do valor que seus artistas dão aos seus trabalhos como forma, entre outras, de fazer com que o público acorra ao que é feito e apresentado aqui.

Narro:
1) A Stefan (Fábio Monteiro) é solicitado que faça um chapéu com um pedaço de papel que lhe é concedido. O ator, em cena aberta, desabafa: “Vamos ver se eu ainda sei fazer isso. Não faço desde a última temporada.”

Perguntas:
a) O ator não se exercitou desde a última temporada naquilo que seu personagem precisa?
b) O público presente não merecia um ensaio?

2)Júlio (Marcelo Naz) está em cena bebendo uma cerveja. Ao passar pela bambolina entrega a garrafa para alguém que se encontra escondido do público. Não satisfeito, olha para a platéia e explica: “A atriz pediu para beber um pouquinho.”

Perguntas:
a) Uma comédia realista como “Homens” não comporta desaparecimentos não explicáveis na trama. Num gênero como esse, o desenrolar dos eventos é mais importante que tudo e o espectador não pode perder tempo tentando criar um significado para o sumisso de uma garrafa de cerveja. O ator não poderia ter colocado a garrafa numa mesa?
b) O fato de uma atriz estar na coxia pedindo para beber não deveria ser um fato escondido do público?

3) Paula (Cláudia Meneghetti), na cena final, diz uma fala em hora errada. E desabafa: “Errei, né?!”. Stefan e Júlio (Monteiro e Naz) continuam a cena e Paula erra novamente. A atriz desabafa de novo: “Errei de novo, né?! Eu disse que a gente deveria ter ensaiado essa cena!”

Perguntas:
a) Em qualquer curso de iniciação teatral, não ensinam aos atores que, errando, eles devem esconder isso do público que, afinal, não conhece o texto e as decisões finais de seus realizadores?
b) O público presente não merecia um ensaio?

Explorar os erros de cena como fatos pra comédia é um respeitável modo de produzir entretenimento. No momento em que as três situações narradas acontecem em isolado e sem nenhum motivo que possa acrescentar relação e, por isso, significado, exibem, de forma vergonhosa, que a apresentação do espetáculo que faz parte do Porto Verão Alegre não foi minimamente ensaiado.Ou seja, ao público foi destinado um ensaio geral.

Diante de um momento em que grupos de teatro de Porto Alegre se esforçam em mostrar ao público que o que se faz é um teatro de qualidade, um caso como esse é, negativamente, inusitado.

*

Ficha Técnica:

Texto: livre adaptação feita por Bob Bahlis do filme alemão Manner, de Doris Dörrie
Elenco: Claudia Meneghetti, Fabio Monteiro, Marcelo Naz e Rafaela Cassol
Direção Geral: Bob Bahlis

13 de fev. de 2010

Goela Abaixo ou Por que tu não bebes?

Foto: Elisa Viali

Olhar e não olhar

A primeira coisa que precisa ser dita sobre a apresentação de “Goela abaixo ou por que tu não bebes?”, da Cia de Teatro ao Quadrado, é obrigado. Obrigado por manifestar em um gesto simples o carinho pela arte, o respeito pela classe, e o prazer da vinda do público. Após cinco anos desde sua estréia, o espetáculo mantém sua produção impecável: cenário bem arrumado, figurinos em ordem, iluminação bem posta, interpretação digna de parabéns. Lembrei agora de Dante, o diretor de Som & Fúria, fazendo de tudo para manter o espetáculo bom até o último dia, quando apresentam Hamlet para alunos de escolas de classes populares. Para mim, que tenho assistido com muito prazer aos espetáculos dessa Cia, cito o caso de “Goela abaixo” como um ótimo exemplo de como o teatro gaúcho, de um modo geral, não é fato a ser desvalorizado.

Uma crítica formal e dura não teria começado dessa forma. Falaríamos da peça, do caso em específico da apresentação no Porto Verão Alegre, partindo para Vaclav Havel, o dramaturgo tcheco que escreveu o texto na metade dos anos 70 e que há pouquíssimo tempo deixou de ser presidente da República Tcheca. Imagino que em tempos a. G. (antes Google) esse tipo de informação era essencial. Hoje, para mim, prefiro ir mais adiante. O principal ponto a destacar nesse espetáculo que, ao meu ver, vale cada minuto empregado na sua assistência, é a cumplicidade de olhares trocados entre Margarida Leoni Peixoto (o mestre cervejeiro) e Marcelo Adams ( o funcionário). A história é inteiramente contada na relação desses olhares: O mestre nem sempre olha para o funcionário. O funcionário nem sempre olha para o mestre. O ritmo marcado pelo olhar/não-olhar é quem fala aquilo que deve ser ouvido.

Ao escrever “A audiência”, Ravel criou uma história curta. Ao produzir o texto, as adaptações realizadas empurraram o texto para o formato sessenta minutos. Talvez pelos nomes ditos em cena, ou pela música que abre o espetáculo, ou ainda pelas cores dos figurinos, me lembrei do alargamento do tempo narrativo em “Encouraçado Potenkim”, fruto das pesquisas em montagem de Eisenstein e Kuleshov, grandes fãs e alunos do encenador Meyerhold. A cena vista de vários pontos de vista diferentes, a repetição de diálogos, o transporte do cenário permite que o olhar do espectador reveja o recém-visto, ouça novamente o que foi há pouco dito e reflita sobretudo na distância (mínima, mas significativa) entre os dois pontos. Se o texto já tinha influência do teatro do absurdo de Ionesco, a encenação pode ter ganho novas cores com a montagem soviética.Cores essas que só são vistas se não nos dedicarmos muito à compreensão do texto (que será repetido e repetido) ou a distribuição das cervejas, dos papéis, das lâmpadas, mas nos preocuparmos com o olhar de Peixoto e de Adams.

Quando o corpo não se mexe e a voz não chama a atenção, o público se volta para que há de mais importante num ator que pretende levar à cena um texto como esse. O que é possível de ser encontrado? Uma cumplicidade ímpar: Margarida conhece os tempos de Marcelo e é por ele conhecida. O estudo e a técnica bem empregada, mais que o hábito, faz com que o corpo inteiro do personagem enxergue seu antagonista, perscrute seus movimentos,escanerize suas inteções. Daí a balança andar de um lado para o outro numa rítmica harmônica e coerente consigo mesma.

Não coerente, no entanto, com a fruição. O “toma lá, dá cá” da contracenação acaba cansando o espectador que se apóia na cadeira nas últimas cenas movido pelo cansaço. O ritmo, que sofreu um aumento na velocidade, ganha agora freios e mais freios. Cai. E essa, talvez, seja a caída da ressaca.

Ao oferecer cerveja aos espectadores, a Cia de Teatro Teatro ao Quadrado divide a ressaca com o público, assim como dividiu o prazer da bebedeira. O fim lento é, por isso, coerente e bom. Bom de assistir, bom de ter assistido, bom de ir embora, bom te ter vindo, bom de olhar o olhar. E de o fechar também.
Que mais cinco anos venha a esse espetáculo e muitos mais ao grupo. Mais ainda ao teatro porto-alegrense que encontra aqui um dos seus melhores.

*

Ficha Técnica:

Autor: Vaclav Havel
Elenco: Marcelo Adams e Margarida Leoni Peixoto
Direção: Marcelo Adams
Cenografia e trilha sonora pesquisada: Marcelo Adams
Figurinos: RÔ Cortinhas
Iluminação: Fernando Ochôa
Produção e realização: Cia. de Teatro ao Quadrado

9 de fev. de 2010

Kronnus, o ilusionista

Foto: divulgação


 Mágica


Eu nunca tinha assistido a um show de mágica ao vivo. Acho que fui ao circo quando era pequeno, mas realmente não lembro muito bem disso. Em Paris, assisti a dois números em dois lugares diferentes (Moulin Rouge e Lido), mas eu estava tão abobado com o champgne e com a cidade que também não contam muito. E, pela televisão, tudo sempre me pareceu meio falso. Então, fui ver “Kronnus, o ilusionista” na finaleira de mais um Porto Verão Alegre.

Mas o que um “show de mágica” tem de teatral?

Anne Übersfeld, minha deusa, chama de “Denegação” o fenômeno teatral de transformação de um objeto fora da narrativa (ela chama de “objeto do mundo real”, mas aí eu não concordo com ela) num objeto narrativo. Não é como escrever um livro porque a palavra pertence sempre à literatura. As letras são signos gráficos, arbitrários, a palavra cartola nem de longe se parece realmente com uma cartola. Mas uma cartola de mágico se parece com uma cartola existente além do mágico, além do seu lugar cênico, além do Porto Verão Alegre. Não acho nada válido um exercício teórico comum na semiótica teatral dos anos sessenta que trata da sintaxe cênica ou teatral. Uma cartola não é uma palavra na frase cênica. Mas, estando em cena, a cartola ressignifica a cena. Diferente do que diz a própria Übersfeld, eu entendo que todo elemento cênico, e não apenas o ator, modifica outros elementos cênicos. Explico: o cenário é a sala do Rei Arthur e da Rainha Guenevere. Mas o iluminador da peça esqueceu um refletor no chão do palco e ninguém se deu conta disso. Ao abrir o pano, muita gente pensará que esqueceram o refletor perdido. Mas outros poderão pensar que o cenário é, na verdade, um meta-cenário. Atores estão fazendo o papel de atores que estão ensaiando uma cena do Rei Arthur. O refletor, um objeto, modifica ou pode modificar todo um sentido, interfere ou pode interferir em toda a significação. A mágica do teatro, assim, consiste na transformação de um palco em um outro lugar, de um homem em um outro homem, de um sentimento em outro sentimento.

Kronnus, com seu carisma e apurada técnica, com uma mão distrai o público para que não seja visto o truque realizado com a outra. E consegue. Ganha muitos aplausos e a admiração do público. Eu, quem não vi os truques, fiquei pensando no teatro dramático, na hierarquia dos sentidos. Se alguém já esteve no Projac pode testemunhar que a beleza do que vemos na tela nem de longe é o que vemos no estúdio. De perto, é nítido o quanto é fake tudo aquilo. E dificilmente poderia ser diferente uma vez que todos os cenários são desmontados e remontados durante a madrugada todos os dias (cada novela tem um estúdio que não comporta erguidos a média de 40 ambientes internos que cada trama tem). Num limite mínimo, no teatro dramático, o cenário não é um espetáculo a parte: ele conduz o sentido para a cena dizendo: eu sei que eu sou bonito, mas olhe para a atriz, por favor!. Tudo ser organiza para um fim: focar a atenção do público.

E, assim, as histórias contadas pelo mago começam e terminam, começando nas palmas da anterior e terminando com as palmas da próxima. Thiago Neves, o mágico, conquista o público pelo diálogo aberto que tem com ele e sempre traz uma nova surpresa para o nosso familiar deleite. A trilha sonora muito bem posta e escolhida, o figurino nada contraditório, mas, sobretudo, o perfeito desenho de luz têm o poder de nos transferir para aqueles números de mágica que vemos em filmes e lemos em histórias que remetem a passados distantes.

É realmente uma arte muito bonita que não deve morrer.

*

Ficha técnica

Roteiro e Direção - Eduardo Tolledo
Bailarina: Daiane Frigo

Mago: Thiago Neves
Voz em off: Danny Gris
Iluminador –Leonardo Bizarro
Trilha Sonora: Maninho Melo
Operador de Som - Maninho Melo
Assistente Técnico – Aílton Gigante e Marcleo Campos

 


7 de fev. de 2010

Monstras S.A.

Foto: Vanja Cá Michel

Peça


Ontem me dei conta de uma coisa que explica bastante a minha relação com o teatro. Ao esperar que mais uma peça começasse, eu desliguei o celular e refleti sobre o que tinha acabado de fazer. Eu nunca desligo meu aparelho celular. Nunca. Quando estou muito cansado e quero dormir sem ser acordado pelo toque, eu coloco ele no silencioso. No cinema, eu coloco ele no silencioso. Quando vou sair e não quero ser incomodado, não levo o aparelho. Ou, então, quando não quero, eu simplesmente não atendo deixando quem me liga desistir. É, no teatro, o único lugar onde eu desligo o meu aparelho de telefone. Por respeito aos atores e à produção, sim. Também num gesto de profunda delicadeza com os demais da platéia. Mas, sobretudo, por respeito a mim que quero vivenciar aquele momento como de fato ele é: único.

Gosto de lembrar que um espetáculo é uma peça. Peça é sinônimo de parte. Um espetáculo, assim, não é o teatro, mas apenas uma peça de teatro. Um filme não é o cinema. Nem mesmo vários filmes. O teatro é um universo com todas as peças, como um imenso quebra-cabeças em cuja caixa perdida se encontrava o número total de partes em que o todo fora dividido, mas que agora já não sabemos quantas são. Então, vamos montando uma aqui, outra ali, bastante longe de termos uma noção da imagem final. É fato que umas peças são mais ricas (em cores, por exemplo) que as outras. Outras são tão perfeitas que é fácil de encontrar no tabuleiro o seu lugar de encaixe. Há, no entanto, algumas terríveis: de tão estragadas já não conseguimos encontrar seu par e acabam ficando num limbo esperando talvez para mais adiante serem postas no todo em construção.

“Monstras S.A.” é uma peça interessante porque, se olharmos bem para ela, vamos identificar, na sua pequena parte de imagem, várias pequenas peças. Trata-se de um espetáculo de dublagens em que dois atores se revezam dublando cantoras famosas. É uma peça sem muita cor como aquelas que compõem o céu, ou o gramado, ou o branco da nuvem em oposição àquelas peças que são os olhos ou o nariz de alguém. Sem elas, no entanto, o cenário está incompleto. Num quebra-cabeça, todas as peças tem igual valor, desde que se encaixem uma nas outras. (ou vamos pensar que são peças de outros quebra-cabeças...)

Luis Carlos Castanha e Caio Prates, sob a direção de Vanja Ca Michel, escolheram algumas músicas. Talvez o elemento dramático que defina essas escolhas fosse a feiúra de suas cantoras. No entanto, não podemos dizer que Maria Callas (Sempre Libera, La Traviata) foi feia algum dia, tampouco Danielle Licari (Concerto para uma só voz) ou Sara Brightman (O fantasma da ópera). Além disso, Klaus Nomi (Ópera) e Antônio Bandeiras (O fantasma da ópera) são homens e não chegam a monstros. Estaria a monstruosidade, então, na excelência de suas vozes? O encontro com a dúvida não é um bom começo numa análise de espetáculo.

Castanha e Prates encontram, e isso é o mais importante, nesse espetáculo, um ótimo lugar para mostrar o seu melhor. Castanha domina o público como poucos, apenas algumas vezes exagerando nas piadas com conotativas sexuais, utilizando em excesso palavrões desnecessários pela grande quantidade. É notório a forma como ele é envolvente, cativante e engraçado. Têm-nos nas mãos e, no quebra-cabeça, nos lembra como é importante o diálogo público-espetáculo estabelecer-se. Prates é, sem dúvida, o melhor no gênero dublagem na capital gaúcha e é bom tê-lo de volta depois de inesquecíveis espetáculos de tempos atrás.

Um espetáculo composto unicamente pela sucessão de dublagens corre o risco de ser cansativo. A graça aparece rapidamente no surgimento do ator caracterizado, o que quase sempre provoca gargalhadas. O riso, no entanto, nem sempre dura toda a extensão da música. Não é o caso de “Monstras S.A.” Não em todos, mas na maioria dos números, a interpretação dada pela dupla de atores à música faz aparecer surpresas e mais surpresas, o que garante o divertimento do início ao fim. Fica a vontade de sair correndo a pesquisar as músicas cujos cantores não conhecemos e entender as piadas que não compreendemos. Fica, mais que tudo, a homenagem aos artistas.

O cenário, composto de fotografias e velas, além de teias de aranhas, traz imagens dos cantores escolhidos. É com eles que Prates e Castanha dividem as palmas no final, o que é um gesto louvável.

Em alguns momentos, me peguei contemplando o cenário e o figurino e refletindo sobre como é interessante perceber o todo da obra para compreendê-la. De longe, se percebe a falsidade dos fios que constroem as teias, isso sem nem tocar no caso da aranha de pelúcia. O fato é que é mesmo para ser assim. Nesse espetáculo, nesse todo, um micro universo do teatro, o cenário é apenas ilustração e não deve funcionar como algo além disso. E, de fato, não funciona. Sinta-se nisso a conclusão de que o que é notoriamente falso no cenário e no figurino cai “como uma luva” na proposta do espetáculo porque concorda com ela. A Susan Boyle de Caio Prates não é, de fato, a cantora britânica recém descoberta, assim como a Amy Winehouse de Castanha não é a cantora de soul mais escutada em 2008. É uma piada, uma paródia dela. A grande aranha vermelha é também em relação a uma aranha viva.

“Monstras S.A.” agrada pela despretensão, pela ingenuidade, mas também por haver, dentro de si, uma ligação que, de uma forma geral, transborda a peça e chega ao todo da imagem.

Antes de colocar a peça no tabuleiro, olhamos atentamente para ela concentrados no divertimento da montagem do quebra-cabeça. Posta no seu devido lugar, podemos olhar outras partes, nos conectar com outras imagens e, finalmente, religar o aparelho celular, nos disponibilizando para o mundo.
*

FICHA TÉCNICA

Texto: João Carlos Castanha
Direção e produção: Vanja Ca Michel

Elenco: Caio Prates e João Carlos Castanha

Iluminação e Operação de som: Moa Junior
Maquiagem: João Carlos Castanha e Caio Prates
Figurinos: João Carlos Castanha
Costureira: Zila Oficina de Costura
Cenário: João Carlos Castanha e Vanja Ca Michel
Fotos e Arte Gráfica: Moa Junior
Realização: Cia Déjà-vu

5 de fev. de 2010

Larissa não mora mais aqui


Foto: Betânia Dutra


Pessoas. Construção.

O Jornal de Teatro (nº 17 – Janeiro de 2010 – p. 8) pergunta para Bárbara Heliodora, sobre quem dispensa apresentações:

“Você tem que ter um amor imenso pelo teatro para fazer críticas sobre ele”. Explique essa frase sua. 

E ela responde:

Você não pode imaginar como é cansativo ver um número imenso de espetáculos ruins, como acontece com o crítico que tenta ficar o mais possível em dia com o que está acontecendo na sua cidade, o Rio, que é pobre em número deles, espetáculos totalmente despreparados, sem um mínimo de competência, embora chamem a si mesmos de profissionais. É preciso amar muito o teatro para não desistir.

E, agora, falemos de “Larissa não mora mais aqui”.

Decepcionante.

O espetáculo com a divulgação mais massiva a que eu já assisti leva o público ao teatro através de uma publicidade mais que intensa: blog, twitter, Orkut, facebook, pichações (“Larissa doen’t live here anymore” no banheiro do Cabaret), camisetas, adesivos, lambe-lambes e váááários vídeos no youtube. Bom seria se atendesse a ela apenas os familiares, amigos, BFFs e namoradas(os) dos atores e atrizes que, animados pela promissora (e prometedora!) carreira do amigo e/ou assemelhado, dar-lhe-ia tapinhas nas costas e desejaria sucesso. Não é o meu caso. Nem, por exemplo, da senhora que estava o meu lado quem, como eu, esperava ansiosamente pelo fim do espetáculo.

Não. Não se tratam de atores ruins (apesar da dicção problemática), de figurinos ruins, de luz e trilha ruins. O diretor é o Júlio Conte e isso, como foi dito sobre Bárbara Heliodora, dispensa apresentações. Tratam-se se atores sem experiência suficiente para sustentar toda a imagem que construíram em cima de seu próprio trabalho. Provavelmente, há muita coisa interessante para ser descoberta com o tempo em seus corpos artísticos e em suas carreiras, mas o que foi mostrado até agora é muito pouco para cobrar R$ 20,00, exatamente o mesmo valor que os outros espetáculos em cartaz no dia (“A comédia dos erros”, “Médico à força”, “Apareceu a Margarida”, “Vestida do avesso”, só para citar alguns, além de “Bailei na Curva”, cujo valor de ingresso passa por esse também.)

“Larissa não mora mais aqui” se apresenta da seguinte forma:

O Grupo Teatral Conta pra Ele invade a cena da cidade capitaneados pelo autor, diretor Júlio Conte (de Bailei na Curva, Se Meu Ponto G Falasse e O Rei da Escória) para contar a história do edifício Comendador Siqueira, criado nos anos 50 como último grito na construção civil. Elevadores com pantográficas, recepção com amplos arcos e grandes corredores, quartos imensos e pé direito alto marcaram o uso exorbitante dos espaços. Mas se criou em torno pequenas favelas para albergar a mão-de-obra necessária para manter tanto luxo. Aos poucos a decadência toma conta, o mar de favelas cresce em torno, os aluguéis caem e os novos inquilinos tentam manter a dignidade de suas vidas nos dias de hoje. A história dos últimos moradores do edifício combina com um retrato social da nossa sociedade, ilhada, oprimida, falida, moralmente indecisa e assustada.

Assistir à peça esperando para ver isso justifica, entre outras coisas, a decepção. Como em quase todas a peças de Júlio Conte (só lembro de "Se meu ponto G falasse" como exceção), não há cenário, portanto, nada de arcos, pés direitos e imponência na arquitetura dos anos 50. O palco está marcado com divisórias de dois apartamentos, dois estreitos corredores e um elevador, cuja imagem fica clara se eu citar o cenário do filme Dogville. A decadência do lugar em oposição ao tempo em que foi construído também não se vê. Há uma rápida cena de passagem das décadas em que os atores trocam de roupas e sentimos a moda se modificar. Nada além. Todo o tempo restante é ocupado pela narrativa contemporânea, o último ano do edifício Siqueira Campos. Quanto ao que se diz sobre a história dos últimos moradores, essa, sim, você encontrará com facilidade.

A dramaturgia de ‘Larissa não mora mais aqui” é visivelmente uma colagem de cenas construídas num processo de improvisação. Diferente de outros espetáculos de Júlio Conte em que a liga das cenas é a passagem trágica do tempo (“Bailei na Curva” e “Se meu ponto G falasse”) ou a relação inevitável entre os personagens (“Pílulas de Vatapá” e “Dançarei sobre o teu cadáver”), aqui o que une as cenas é o Edifício Siqueira Campos, que não é visto, cuja história não é contada, e que só serve como espaço cênico e nada além. Para deixar bastante claro a quem me lê, o edifício não é o protagonista da história e, portanto, não tem força para ligar cena alguma. Em “Titanic”, o navio é o protagonista. Em “2012”, os efeitos valem muito mais do que qualquer outra coisa. Em “Bailei”, o tempo que passa e, nesse passar, produz e conserva feridas, é o personagem principal. Dizer que o Edifício Siqueira Campos modificou a vida dos seus moradores é algo que não basta. E fica-se esperando o tempo inteiro a vinda do teatro para mostrar o que é dito. E não vem. Sai-se com a conclusão de que, sim, você pode até gostar do lugar onde mora, mas dizer que o prédio modifica a sua vida e te faz uma pessoa melhor, é um pouco demais. Um pouco que poderia ser modificado, mas que não é.

Há dois momentos em que, em se tratando da obra como um todo, é possível ver um uso profissional do que o teatro oferece a quem se propõe a se expressar através dele.

a) Bolas de Ping-pong: Os moradores vão sair do prédio pela venda dele a uma empresa que o demolirá. Ao derramar baldes de bolinhas pelo palco, somos convidados a não ver as bolinhas, mas as pessoas, nós mesmos, quicando cidade a fora, mudando de um apartamento a outro, de um lugar a outro, de um bairro a outro sem criar raízes. Assim como os Conte e os Acurso não moram mais lá, os moradores do Siqueira Campos também não. Eu não moro na casa onde nasci. Nem na casa onde passei a adolescência. Até quando morarei aqui?
b) Implosão: O prédio cai e o prédio são seus moradores. Embora durante toda a (quase interminável) peça, nada fora mostrado a respeito, a frase é forte porque remete ao fato de nós, seres humanos, vivermos em comunidade. Júlio Conte expressa o desabamento colocando os atores em fila e fazendo com que, uma a uma, as cabeças vão caindo sobre os ombros do colega da frente. Cai o corpo, por fim, ao chão. Desce, então, a rotunda, mas apenas o suficiente para o sentido se estabelecer: ato contido como sempre se estabelece a direção de Conte. Um fim não menos que belo, inteligente, teatral.

Sobra no espetáculo a falta de concepção que una as opções cênicas, assim como uma dramaturgia consistente que una as cenas. Alguns atores são contidos, expressando (e agradando) mais pela presença do que pela máscara cômica, a que pouco recorrem. São eles Thiago Tavares (Rafinha), Emílio Farias (Josky), Ramon Silvestri e Gisele De Santi (casal de alcoólicos), Eder Santos (Delegado Peçanha) e Luana Zinn (Larissa). Os demais sustentam construções caricaturizadas que, muitas vezes engraçadas, não se estabelecem porque não concordam (e teatro realista PRECISA de coerência porque depende de verossimilhança) com o figurino usados, com a trilha utilizada e nem com o desenho do espaço. Fico me perguntando se a opção pelas máscaras (a bicha, o machão, a freak, o certinho...) não foi uma tentativa de reutilizar os acertos dos outros espetáculos da marca Conte. Se foi, foi um engano. “Pílulas de Vatapá” não têm máscaras. “Bailei na curva” e “Dançarei sobre o teu cadáver” usam as máscaras apenas como simulacro, uma vez que num a passagem do tempo é o mais forte e noutro a relação cada vez mais profunda entre os personagens protagoniza. Em “Se meu ponto G fasse”, a máscara é construída para ser desconstruída e reconstruída na sequência e, nisso, se baseia a contagem da história: a cada fase, uma nova mulher. Daí o fato dispersivo das máscaras em Larissa: distrai, tira o foco para o talento que não foi desenvolvido, o que não existe, o que existe num, mas não noutro.

Os piores momentos de “Larissa não mora mais aqui”, além da operação de trilha sonora e de luz serem bruscas em vários momentos, causando o estranhamento, são também dois:

a) A faxina de Alfa: o uso da terceira pessoa do discurso não se mantém. O personagem ora se refere a ele mesmo como outro, ora como “eu.”. Acaba funcionando como mais um floreio da dramaturgia ruim.
b) O discurso de encerramento: o último suspiro na tentativa de fazer entender que era a proposta ser do Edifício o protagonismo. Além de piegas, é nada além de cansativo.

Larissa só é destacada porque seu nome está no título do espetáculo sem protagonistas que esteve aqui e não está mais apesar de toda a divulgação que segue colocada na cidade. Mas o espetáculo é as pessoas que o construíram e que, eu espero, construirão outros, alguns bem importantes, outros nem tanto.

Um ator realmente capacitado em sua profissão pode optar por qualquer tipo de repertório, seja ele experimental ou realista. Mas se ele não domina a essência de seu ofício, seu potencial ficará sempre reduzido.(BH)

*

Ficha Técnica:
Texto e Direção: Júlio Conte
Assistência de Direção: Eduardo Mendonça
Elenco: Alessandro Peres, Catharina Cecato Conte,
Claudia Sehbe, Eder Santos, Emilio Farias,
Gigio Comunello, Gisele De Santi, Jaqueline
Pegoraro, Luana Zinn, Luiza Duarte,
Mariana del Pino, Pingo Alabarce,
Rafael Albuquerque, Ramon Silvestri, Renata
Sbroglio, Saulo Aquino e Thiago Tavares

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