16 de fev. de 2010

Homens

Foto: divulgação

O Inusitado


A comédia tem como um dos seus elementos o inusitado. Não se trata, como aliás nenhum, de um elemento identitário: não é o inusitado que caracteriza a peça como cômica. O inusitado pode ser encontrado em vários gêneros dramáticos e teatrais como, num exemplo bem pouco cerebral, o arroz. O arroz está na comida brasileira e está, também, na comida japonesa. Mas o arroz com feijão é diferente do arroz no sushi. O inusitado é utilizado de forma fenomenologicamente diferente na comédia, em todos os tipos que existem, como também é num texto dramático, ou pós-dramático, ou não-dramático. O inusitado é um elemento utilizado na trama de Männers, roteiro levado às telas em 1985 pela diretora alemã Doris Dörrie, que, no Brasil, se chamou Homens. Bob Bahlis trouxe para um palco uma produção que utiliza o teatro para contar a mesma história.

Um marido descobre pela boca de sua mulher que está sendo traído. Ao descobrir o homem que está saindo com sua esposa, descobre também que ele está procurando alguém para dividir o aluguel do seu pequeno apartamento. O protagonista, então, candidata-se à vaga e fica algumas semanas fora de casa, longe da esposa e dos filhos, com a desculpa de que está em férias em algum lugar distante. Nesse tempo, descobre como age o rival, como ele encara a vida, o que ele pensa da mulher mais velha com quem anda saindo, esposa do inquilino. A situação é construída para diálogos cômicos em que o protagonista obviamente se vê ridicularizado inusitamente, tendo que encontrar-se com a própria esposa fantasiado de macaco para que ela não o reconheça e, além de tudo, servindo ao seu senhorio arrumando-lhe um novo emprego e dando conselhos sentimentais.

De uma forma bastante inteligente, Bob Bahlis exclui personagens, diminui o apartamento e apressa a trama. Toda a história acontece agora dentro do apartamento do Stefan, o pintor que namora Paula, esposa de Júlio, esse último seu inquilino. O cenário, na cena teatral, é muito bem distribuído e de extremo bom gosto: todos os espaços são preenchidos, há vários níveis bem explorados e todos eles só contribuem com a trama que privilegia o bom diálogo como marca importante. A comédia de Dörrie e de Bahlis está no texto e não no cenário, tampouco no figurino, luz ou trilha, todos esses elementos postos adequada e inteligentemente a favor do teatro e do teatro gaúcho.

Fábio Monteiro (Stefan) dá ao seu personagem uma delicadeza que não é vista na versão fílmica. Não há, na versão teatral, malícia mas profundidade. O ator explora o personagem de uma forma diferente do seu antecessor cinematográfico contribuindo com um colorido maior na discussão das relações. Rafaela Cassol (a ex namorada do pintor) aparece bem mais na trama de Bahlis do que sua antecessora na versão de Dörrie. Cassol, cujo carisma já foi reconhecido em outra crítica e pode ser comprovado no sucesso “Dez (quase) amores”, mais uma vez, acrescenta valor à obra de Bahlis e também à personagem de Dörrie. A atriz é expressiva e faz da cena em que sua personagem conversa com Júlio um ponto de mudança bastante relevante à narrativa, o que não acontece no filme alemão.

Marcelo Naz e Claudia Meneghetti provocam mudanças bastante significativas ao texto original, sem que isso seja negativo. Marcelo Naz é um ator maior que os personagens que interpreta: o ator leva muito de si para os personagens fazendo com que, ou eles se pareçam com ele, ou eles inexistam. Naz dialoga bastante com o público e emprega nesse gesto grande parte da força do seu trabalho como ator. Embora nem sempre isso seja positivo, em “Homens”, a situação cômica do texto fica engraçada na encenação produzindo uma reação do público de bastante riso. Claudia Meneghetti dá um escracho para Paula que, nem de longe, é próximo a interpretação da atriz alemã. Em duas das aparições da atriz, a personagem está bêbada e precisa ser um péssimo comediante para, interpretando alguém bêbado, não fazer alguém rir. Nesses dois casos interpretativos, Bahlis assina um deslocar da comédia do texto para a interpretação: o ator e sua capacidade de chamar a atenção acabam prevalecendo, embora nem sempre engrandeçam a obra.

Entre todas as utilizações do inusitado já dispostas (as voltas do texto em seus diálogos, a boa opção de cenário, a adequada e sóbria utilização do figurino, iluminação e trilha sonora, e os percursos interpretativos dos quatro atores), há apenas um evento (três situações) bastante negativo nesse espetáculo que, sem ter a pretensão de ser a comédia do ano, não chega a desagradar. Trato aqui da relação do espetáculo como um todo em relação às outras produções da capital gaúcha e do valor que seus artistas dão aos seus trabalhos como forma, entre outras, de fazer com que o público acorra ao que é feito e apresentado aqui.

Narro:
1) A Stefan (Fábio Monteiro) é solicitado que faça um chapéu com um pedaço de papel que lhe é concedido. O ator, em cena aberta, desabafa: “Vamos ver se eu ainda sei fazer isso. Não faço desde a última temporada.”

Perguntas:
a) O ator não se exercitou desde a última temporada naquilo que seu personagem precisa?
b) O público presente não merecia um ensaio?

2)Júlio (Marcelo Naz) está em cena bebendo uma cerveja. Ao passar pela bambolina entrega a garrafa para alguém que se encontra escondido do público. Não satisfeito, olha para a platéia e explica: “A atriz pediu para beber um pouquinho.”

Perguntas:
a) Uma comédia realista como “Homens” não comporta desaparecimentos não explicáveis na trama. Num gênero como esse, o desenrolar dos eventos é mais importante que tudo e o espectador não pode perder tempo tentando criar um significado para o sumisso de uma garrafa de cerveja. O ator não poderia ter colocado a garrafa numa mesa?
b) O fato de uma atriz estar na coxia pedindo para beber não deveria ser um fato escondido do público?

3) Paula (Cláudia Meneghetti), na cena final, diz uma fala em hora errada. E desabafa: “Errei, né?!”. Stefan e Júlio (Monteiro e Naz) continuam a cena e Paula erra novamente. A atriz desabafa de novo: “Errei de novo, né?! Eu disse que a gente deveria ter ensaiado essa cena!”

Perguntas:
a) Em qualquer curso de iniciação teatral, não ensinam aos atores que, errando, eles devem esconder isso do público que, afinal, não conhece o texto e as decisões finais de seus realizadores?
b) O público presente não merecia um ensaio?

Explorar os erros de cena como fatos pra comédia é um respeitável modo de produzir entretenimento. No momento em que as três situações narradas acontecem em isolado e sem nenhum motivo que possa acrescentar relação e, por isso, significado, exibem, de forma vergonhosa, que a apresentação do espetáculo que faz parte do Porto Verão Alegre não foi minimamente ensaiado.Ou seja, ao público foi destinado um ensaio geral.

Diante de um momento em que grupos de teatro de Porto Alegre se esforçam em mostrar ao público que o que se faz é um teatro de qualidade, um caso como esse é, negativamente, inusitado.

*

Ficha Técnica:

Texto: livre adaptação feita por Bob Bahlis do filme alemão Manner, de Doris Dörrie
Elenco: Claudia Meneghetti, Fabio Monteiro, Marcelo Naz e Rafaela Cassol
Direção Geral: Bob Bahlis

1 Comentário:

disse...

Por falar em comédia lembrei do meu esforço e do nosso bate-papo para classificar o gênero de 'A Escolha'. Quando iniciei os meus escritos não pensei em risadas, tão pouco em situações que deixassem dúvidas sobre a 'seriedade' daquilo que era contado. Embora a comédia seja a tragédia do outro (como sempre anunciou o nosso ilustre amigo), a sua forma precisa ter leveza ou mesmo ser tosca, os diálogos podem ser inteligente ou mesmo ridículos e os elementos cômicos são geralmente peculiares. Isso aponta caminhos, mas confunde.

Embora eu tenha pesquisado o assunto, preciso confessar que é difícil sair do gênero cômico e de todas as ramificações, ou de não utilizar aqueles elementos, quando falamos de um texto que trata, de forma simples, do cotidiano. Mas, por fim, me convenci de que aquilo era textualmente o 'drama [...] ' da Teresa, e que em cada situação também aparecia o inusitado. Nada diferente do retrato da vida e sobre aquilo que a gente nunca espera do outro.

Afinal, os erros eram propositalmente inusitados ou cometidos?

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