9 de set. de 2011

Legalidade O Musical


Foto: Eduardo Seidl

O teatro gaúcho de pé unido pela qualidade


Legalidade– O Musical” é um documentário-musical com direção geral de Carla Joner, direção artística de Luciano Alabarse e direção musical de Hique Gomez. A produção assinada por Claudia D’Mutti reune um grande elenco de atores, músicos e técnicos, organizando-os cenicamente na representação de passagens importantes do “Movimento da Legalidade”, o último levante histórico-político-patriótico desencadeado no Rio Grande do Sul e com conseqüências nacionais. Em dois dias de apresentação, o público da capital gaúcha conferiu, diante do Palácio Piratini, a montagem que, durante sessenta minutos, trouxe de volta à memória do Estado as emoções de quem viveu aquele período de efervescência.
            Em termos estéticos, isto é, no que se refere a teatro, a dança e a música, a produção atingiu altos níveis de qualidade, cumprindo, em todos as esferas, o seu objetivo: usar o teatro e a música para reconstruir cenicamente os momentos mais importantes do ano de 1961. De uma forma muito inteligente, o início se dá pela referência a Getúlio Vargas, presidente gaúcho que se suicidara 7 agostos antes, pressionado pelas partes mais conservadoras da política brasileira. Carlos Cunha, que já havia interpretado o papel de Getúlio no documentário “50anos sem Getúlio” (quem não viu, deveria aceitar o convite para ver), mais uma vez, empresta seu talento e sua técnica ao personagem, oferecendo à audiência, talvez, uma das suas melhores virtudes: o bem dizer o texto, dando forma, cor, força e verdade para as palavras escritas não só no papel, mas na memória do país. Também não é novidade, encontrar excelentes resultados na participação de Marcelo Adams, que interpreta Jânio Quadros, presidente brasileiro que, ao renunciar, abriu espaço para o levante da extrema direita brasileira que não concordava com a constitucional posse do vice-presidente, o gaúcho João Goulart. Marcelo Adams é um  ator da mesma cepa artística de Cunha e de Mauro Soares, esse que dá vida a João Goulart na representação teatral, também atingindo,como esperado, um excelente resultado.  Cunha, Adams e Soares são expoentes do teatro gaúcho e devem servir de exemplo às novas gerações de atores que, infelizmente, passam anos se dedicando à expressão corporal e pouco se aprofundam no estudo da retórica. Evandro Soldatelli, bom pra ele e bom pra nós, não é um desses. Em “Legalidade – O Musical”, o ator, que já interpretou de Shakespeare a Ionesco, vence o desafio de estar junto desse elenco invejável e oferece ao público, talvez, o melhor momento de sua carreira até aqui. Ao interpretar o protagonista Leonel Brizola, Soldatelli emociona tanto aqueles que viveram o período histórico, como aqueles que, como eu, sabem de sua importância através dos livros e dos sites da internet.
            O espetáculo, além das participações citadas, se dá com um grupo grande de atores e atrizes que interpretam personagens menores ou acrescentam o coro. Interessante é notar como esse grupo se constitui. Lado a lado, estão Fernanda Petit, Vika Schabbach e Vinícius Meneguzzi, atores com troféus e indicações pelas suas grandes participações em produções excepcionais do teatro gaúcho; também Clóvis Massa, professor doutor do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS; e artistas estreantes como Diogo Zanella, Letícia Balle e Pedro Antunes, o que expressa a união de vários repertórios, currículos com diferentes pesos e, sobretudo, o resultado positivo da união de várias pessoas em prol do resultado extremamente positivo que se obtém. Ainda nesse grupo a presença de Luiz Paulo Vasconcellos e de Ida Celina, as participações especiais de Paulo César Peréio, de Nelson Coelho de Castro e de Adriana Deffenti. Artistas unidos, de pé, pela alta qualidade do fazer teatral gaúcho, todos eles em belíssimos figurinos de Daniel Lion, em uma produção que se apresenta como um dos momentos mais grandiosos do ano em termos de artes cênicas no Estado do Rio Grande do Sul.
            A união da música com as exibições de imagens de arquivo em vídeo vale destaque especial por, de forma simbólica, celebrar a união entre narração e documentário. Executadas pela Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro, regidas por Antônio Borges-Cunha, orquestradas por Wagner Cunha, as músicas compostas/organizadas por Hique Gomez embalaram os discursos, deram recheio às emoções despertas e força para a reflexão sobre aquele momento em relação ao momento atual. O momento de ouro da encenação, claro, é a interpretação do Hino da Legalidade, uma das canções mais bonitas e marcantes da história do país. O vídeocenário, cujo mérito principal é de Carla Joner, teve importância fundamental na construção do sentido pelo seu caráter ilustrativo-narrativo: reconhecemos os personagens como figuras reais da história do país, lemos notícias veiculadas realmente pela mídia da época e acompanhamos a história através de animações que dão ritmo à narrativa.
            Ao fundo, o Palácio Piratini, cenário real dos acontecimentos contados artisticamente nesse espetáculo. Apesar de sua importância, essa manifesta também pela sua imponência à Praça da Matriz, eis nele o elemento menos importante. Fica aí, então, o convite, o pedido e o estímulo às viagens que essa produção deve fazer pelo interior do Estado, cidades que, embora não tenha Palácios Piratinis, não são menos gaúchas que Porto Alegre. Não só pelas informações históricas, uma produção desse tipo precisa oferecer mais oportunidades para o público de evidenciar o quão talentosos são nossos artistas e técnicos e o qual potente é o ensinamento deixado pelos militantes da Legalidade para as gerações de hoje.

2 de set. de 2011

Lady Macbeth


Foto: Luciane Pires Ferreira (que tem feito fotos fantásticas da cena teatral gaúcha)

Qualidade desde o início

Limpar as mãos em arte, além dos sentidos narrativos e denotativos, oferece ao espectador atento duas possibilidades de significação: Pilatos e Lady Macbeth. As duas têm, em resumo, o mesmo sentido codificado: apagar o mal feito. Pilatos se eximia da culpa de condenar Jesus à crucificação. Lady Macbeth tentava, sem sucesso, afastar de si a culpa pela morte do Rei. Olhando para as próprias mãos, ambos vêem um sangue que, de fato, não existe. Um significado sem um significante aparente. Assim, nesse (des)contexto semiótico, pode ser encontrada uma chave de análise da versão cênica para o conto de Vinícius Canhoto “A gravidez de Lady Macbeth”. Em cena, as figuras e as situações propostas fogem constantemente à percepção do público, isto é, quando você acha que sabe do que se está falando, o assunto já é outro.

Antes de iniciar a análise da encenação, é preciso que se abra um parêntese elogioso à produção. “Lady Macbeth” é um espetáculo teatral que ocupou em sua temporada um espaço público na Usina do Gasômetro, centro cultural do município de Porto Alegre. Teve divulgação na mídia virtual e impressa e não fez apresentações gratuitas, ou seja, dividiu espaço com produções e artistas profissionais no mercado. Sabe-se, no entanto, que é uma produção estudantil. Por que? Porque corretamente se anuncia como tal quando inclui na sua divulgação a informação: “Estágio de Atuação 1 de Ingrid Bononi”. Dessa forma, ninguém poderá honestamente avaliar o espetáculo sem considerar a inexperiência da atriz. Não ter experiência não é defeito, não é desqualificação, não é mal. Mas vender um espetáculo, anunciar uma interpretação como profissional quando, na verdade, não é esse o caso, isso, sim, é desonesto e não-recomendável. Numa cidade em que as oficinas e os cursos de formação de atores felizmente estão cheios, o espectador desatento, muitas vezes, tem dificuldade de driblar a prejudicial e capciosa intenção de certas produções de vender “gatos” por “lebres”. A consequência negativa disso é fazer crer o espectador raro de que o “teatro feito aqui” é ruim, isto é, estimular a preferência do público a espetáculos trazidos de fora. “Lady Macbeth” teria uma avaliação negativa se fosse analisado como profissional. Uma vez que se sabe que a atriz Ingrid Bonini e a diretora Franciele Aguiar ainda estão em processo de formação, dá-se muito maior valor para as intenções do que para as marcas concretas. E, pela forma honrosa e humilde com que investem no mercado estabelecido, merecem elogios desde já.

Uma vez que o texto de Canhoto é fundamentado a partir de um jogo de imagens em que o leitor entra e sai de universos narrativos diferentes constantemente, pode-se dizer que o desafio de torná-lo cênico é grande. É correta a afirmação de que, quando um texto funciona muito bem enquanto literatura, será difícil fazê-lo ter o mesmo bom desempenho em outra atualização artística, no caso, o teatro. Se, ao ler, o leitor tem diante dos olhos apenas palavras e frases, ao assistir, o espectador de teatro percebe as palavras e as frases ditas, mas também o movimento, a respiração, a tonalidade da voz, os elementos plásticos, a música. Arregimentar esses diferentes signos numa só estrutura torna-se uma possibilidade a mais de dispersão, nesse caso, já indicada no texto de Canhoto, que “pula” de Macbeth, para Joana D’Arc e Dom Quixote de La Mancha, entre outros. As escolhas cênicas são bem sucedidas: espelhos quebrados, espaço iluminado recortadamente, intenções interpretativas que não se mantêm. Ingrid Bonini se apresenta como uma figura muito forte em cena e que, nesse início de carreira, deixa prever coragem, empenho e bom equilíbrio entre talento e técnica.

A direção de Franciele Aguiar é bastante pontual: não há nenhum elemento fora do lugar ou que permita pensar que acontece em cena sem planejamento prévio. A cena teatral porto-alegrense parece, assim, ganhar mais um nome que positivamente se preocupa com os mínimos detalhes e, de forma consciente, não ousa oferecer algo ao público que não seja digno da capital que todos amamos.

Ao construir uma cena em que o espectador fica na desconfortável situação de não saber sobre o que se está falando, a produção consegue bons resultados pela forma como viabiliza a proposta mais do que pela proposta em si. Não é mais fácil propor algo tão fluído como “Lady Macbeth” se pensarmos em todos os elementos envolvidos. Dessa conclusão, só se pode identificar essa montagem como bem sucedida e merecedora dos aplausos ganhos.

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Ficha técnica:

Baseado na obra "A gravidez de Lady Macbeth", de Vinícius Canhoto
Estágio de atuação 1 de Ingrid Bonini
Participação de Giulia Maciel
Orientação: Inês Marocco
Direção, iluminação e operação de som: Franciele Aguiar
Cenografia e figurinos: Ingrid Bonini e Franciele Aguiar
Preparação vocal: Márcia Donadel

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