2 de set. de 2011

Lady Macbeth


Foto: Luciane Pires Ferreira (que tem feito fotos fantásticas da cena teatral gaúcha)

Qualidade desde o início

Limpar as mãos em arte, além dos sentidos narrativos e denotativos, oferece ao espectador atento duas possibilidades de significação: Pilatos e Lady Macbeth. As duas têm, em resumo, o mesmo sentido codificado: apagar o mal feito. Pilatos se eximia da culpa de condenar Jesus à crucificação. Lady Macbeth tentava, sem sucesso, afastar de si a culpa pela morte do Rei. Olhando para as próprias mãos, ambos vêem um sangue que, de fato, não existe. Um significado sem um significante aparente. Assim, nesse (des)contexto semiótico, pode ser encontrada uma chave de análise da versão cênica para o conto de Vinícius Canhoto “A gravidez de Lady Macbeth”. Em cena, as figuras e as situações propostas fogem constantemente à percepção do público, isto é, quando você acha que sabe do que se está falando, o assunto já é outro.

Antes de iniciar a análise da encenação, é preciso que se abra um parêntese elogioso à produção. “Lady Macbeth” é um espetáculo teatral que ocupou em sua temporada um espaço público na Usina do Gasômetro, centro cultural do município de Porto Alegre. Teve divulgação na mídia virtual e impressa e não fez apresentações gratuitas, ou seja, dividiu espaço com produções e artistas profissionais no mercado. Sabe-se, no entanto, que é uma produção estudantil. Por que? Porque corretamente se anuncia como tal quando inclui na sua divulgação a informação: “Estágio de Atuação 1 de Ingrid Bononi”. Dessa forma, ninguém poderá honestamente avaliar o espetáculo sem considerar a inexperiência da atriz. Não ter experiência não é defeito, não é desqualificação, não é mal. Mas vender um espetáculo, anunciar uma interpretação como profissional quando, na verdade, não é esse o caso, isso, sim, é desonesto e não-recomendável. Numa cidade em que as oficinas e os cursos de formação de atores felizmente estão cheios, o espectador desatento, muitas vezes, tem dificuldade de driblar a prejudicial e capciosa intenção de certas produções de vender “gatos” por “lebres”. A consequência negativa disso é fazer crer o espectador raro de que o “teatro feito aqui” é ruim, isto é, estimular a preferência do público a espetáculos trazidos de fora. “Lady Macbeth” teria uma avaliação negativa se fosse analisado como profissional. Uma vez que se sabe que a atriz Ingrid Bonini e a diretora Franciele Aguiar ainda estão em processo de formação, dá-se muito maior valor para as intenções do que para as marcas concretas. E, pela forma honrosa e humilde com que investem no mercado estabelecido, merecem elogios desde já.

Uma vez que o texto de Canhoto é fundamentado a partir de um jogo de imagens em que o leitor entra e sai de universos narrativos diferentes constantemente, pode-se dizer que o desafio de torná-lo cênico é grande. É correta a afirmação de que, quando um texto funciona muito bem enquanto literatura, será difícil fazê-lo ter o mesmo bom desempenho em outra atualização artística, no caso, o teatro. Se, ao ler, o leitor tem diante dos olhos apenas palavras e frases, ao assistir, o espectador de teatro percebe as palavras e as frases ditas, mas também o movimento, a respiração, a tonalidade da voz, os elementos plásticos, a música. Arregimentar esses diferentes signos numa só estrutura torna-se uma possibilidade a mais de dispersão, nesse caso, já indicada no texto de Canhoto, que “pula” de Macbeth, para Joana D’Arc e Dom Quixote de La Mancha, entre outros. As escolhas cênicas são bem sucedidas: espelhos quebrados, espaço iluminado recortadamente, intenções interpretativas que não se mantêm. Ingrid Bonini se apresenta como uma figura muito forte em cena e que, nesse início de carreira, deixa prever coragem, empenho e bom equilíbrio entre talento e técnica.

A direção de Franciele Aguiar é bastante pontual: não há nenhum elemento fora do lugar ou que permita pensar que acontece em cena sem planejamento prévio. A cena teatral porto-alegrense parece, assim, ganhar mais um nome que positivamente se preocupa com os mínimos detalhes e, de forma consciente, não ousa oferecer algo ao público que não seja digno da capital que todos amamos.

Ao construir uma cena em que o espectador fica na desconfortável situação de não saber sobre o que se está falando, a produção consegue bons resultados pela forma como viabiliza a proposta mais do que pela proposta em si. Não é mais fácil propor algo tão fluído como “Lady Macbeth” se pensarmos em todos os elementos envolvidos. Dessa conclusão, só se pode identificar essa montagem como bem sucedida e merecedora dos aplausos ganhos.

*

Ficha técnica:

Baseado na obra "A gravidez de Lady Macbeth", de Vinícius Canhoto
Estágio de atuação 1 de Ingrid Bonini
Participação de Giulia Maciel
Orientação: Inês Marocco
Direção, iluminação e operação de som: Franciele Aguiar
Cenografia e figurinos: Ingrid Bonini e Franciele Aguiar
Preparação vocal: Márcia Donadel

2 Comentários:

Anônimo disse...

Caro Rodrigo Monteiro, acabo de receber e ler com muita satisfação sua crítica à peça e todo seu conjunto (atriz, direção, autor). A leitura me confirmou que além da eterna necessidade de bons e novos artistas, seguimos também precisando da percepção de bons e novos críticos para que o nosso trabalho seja rigorosamente avaliado e discutido. Agradeço as palavras por mim e por todos os que lavaram e sujaram as mãos de sangue e suor. Thank you.

Chimene***Meny*** disse...

Maravilha!!!
Hoje vi esta peça em minha escola,Instituto de educação Flores da Cunha e a Muito tempo não passava de ante de mim tal obra...

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