29 de jun. de 2009

Gordos ou somewhere beyond the sea

Foto: Kiran



Daniel Colin: 5 em 1

Falsa Unidade Dramática: Quero fazer uma peça em que tudo seja branco verde e laranja.

Por que não azul, preto e vermelho? Ou cinza e amarelo? Ou roxo e marrom? Qual é a intenção estética dessa escolha? O que essas cores contribuem? E por que não todas as cores?

Primeiro vem as cores, depois o resto.

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Falsa Unidade Dramática: Quero fazer uma peça em que todas as interpretações sejam exageradas.

Por que não interpretações contidas? Ou realistas? Ou com máscaras? Ou todos parados em cena só dizendo as falas? Ou por que não uma dança sem fala nenhuma?

Os atores (Daniel Colin, Felipe Vieira de Galisteo, Aline Grisa e Tatiana Mielczarski) constroem imagens muito interessantes. Têm corpos bastante seguros, as vozes são bem colocadas e tons cheios de significados. Todos eles, sem exceção, são, em potencial, tão cheios de talento quanto de técnica. Mas a que todo esse gasto energético se refere? A história contada não tem nenhuma ligação com esse tipo de interpretação. Chego a pensar que, em construções realistas como o que se vê na grande maioria dos filmes de Katherine Hepburn, o resultado seria muito mais positivo. Repito: por que essa escolha e não outra?

Primeiro vem a opção pela construção mais engraçadinha, depois o resto.

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Falsa Unidade Dramática: Quero fazer uma peça em que não haja cenário.

Por que não haver cenário? Por que uma mesa que vira várias coisas? Por que o chão limpo se as botas estão sujas de areia? Por que o tablado de madeira preta e não um chão verde?

Também: primeiro vem a decisão do cenário, depois vem o resto.

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Falsa Unidade Dramática: Quero fazer uma peça em que haja uma cena de musical.

E por que não uma cena de balé? Ou de palhaços e trapezistas? Ou um coro de tragédia grega? Ou por que não simplesmente um intervalo real? A gente sai, escolhe tomar um café e assistir ao segundo ato ou ir embora pegar a sessão das dez num cinema real e não num palco onde os atores querem porque querem meter o cinema dentro do teatro assim porque é do “jeitão” deles ser jovem e mostrar que têm talento? Linda a coreografia, a música é ótima, os rostos estão bem, mas por quê? Pra quê?

Eles querem. Querem porque querem e pronto. Depois, decide-se o resto.

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Falsa Unidade Dramática: Quero fazer uma peça em que haja projeção de filmes clássicos.

Vídeo clipe? Novelas? Um programa de rádio? Um trote do Willmutt? Uma gravação da aniversário da vovó? Hummm... A história tem a ver com uma estrela de cinema e faz uso de situações bem típicas de filmes... Será? Tou achando que, como tudo...

A projeções vão aparecer, depois se pensa no resto.

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Falsa Unidade Dramática: Quero fazer uma peça em que o humor seja vendido como “negro”.

Por que não aventura? Terror? Romance? Os três temas tem tudo a ver com a história tanto quando Humor Negro... Uma opção mais comercial?

Será de humor negro. Depois a gente vê como fica o resto.

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Falsa Unidade Dramática: Quero fazer uma peça em que os personagens se apresentem em primeira pessoa.

Eles precisam mesmo de nome? Ou é só para haver mais uma informaçãozinha desconexa que, no máximo, vincula os nomes em inglês aos filmes de Hollywood e ratifica a vontade de fazer algo moderninho? Também pode ser que alguém pense que essa dramaturgia é norte-americana, o que deixaria a produção com uma cara de pesquisadora de textos interessantes...

Os nomes serão em inglês. Os personagens ricos. Todo o resto sobre eles a gente constrói depois disso estabelecido.


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Falsa Unidade Dramática: Quero colocar seis peças na roda cênica de Porto Alegre!

Uma bem feita não basta? É preciso mesmo repetir exatamente os mesmos erros de outras? E se é para colocar seis (vi cinco até agora) por que não pensar em pesquisa cênica? Há outro grupo na cidade com o mesmo evento: comemorar aniversário trazendo todo o repertório... Em um mês, o público pode ver uma montagem de Clown, outra de Mimo Corpóreo, outra de Shakespeare e outra de Bufos.

Somos jovens e temos talento. Seis peças em cinco anos e, assim, vamos poder usufruir da Lei de Fomento a ser votada hoje. Somos um grupo que temos trabalho continuado (mesmo que os erros continuem tanto quanto a gente...).

Daniel Colin, enquanto diretor, precisa entender que direção não é aproximar sistemas diferentes, mas utilizar-se de informações diferentes num sistema único, coeso e coerente se quiser mesmo fazer bem o teatro dramático que até agora tem feito.


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FICHA TÉCNICA


Direção: Daniel Colin

Roteiro: Andressa de Oliveira, Daniel Colin, Maico Silveira e Tatiana Mielczarski (livremente inspirado em textos e idéias de T. Willians, F. Bacon, N. Silver, G. Arraes e M. Pena).


Elenco:

Aline Grisa

Daniel Colin

Felipe Vieira de Galisteo

Tatiana Mielczarski


Luz: Carina Sehn

Som: Patrícia Salge

Vídeo: Ricardo Zigomático


Produção: Palco Aberto Produtora


Realização: Teatro Sarcáustico

27 de jun. de 2009

Gueto Bufo


Foto: Marian Starosta


Quando o aplauso é de despedida

De quase três anos de estudo, hoje eu só lembro de uma música e ainda assim minha memória é falha. Eu tinha entre onze e treze anos, quando minha mãe quase analfabeta (se tudo correr bem, ela termina o ensino fundamental no final desse ano!) e meu pai, um administrador sem curso superior e quase se aposentando, resolveram colocar o filho único da família moradora do interior de Gravataí para estudar Piano Clássico. Todas as terças e quintas-feiras, às quinze horas em ponto, eu ouvia a Professora Eunice Hoerning trancar a porta da saleta onde só cabia um velho piano e eu. De ouvidos atentos ao som que deveria vir das pequenas salas, ela batia na porta quando não ouvia música. Ou algo que deveria ser música. Sozinho, na companhia do pentagrama, das claves e das bolinhas pretas, no Conservatório que ficava no sótão do Colégio Dom Feliciano, eu sempre ouvia uma outra música. Palmas, gritos e alegria. Era o barulho do recreio do colégio de freiras da cidade que me tirava do...

Se essa rua, se essa rua fosse minha,
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante
Para o meu, para o meu amor passar.

Um gueto. Um gueto é um lugar de encontro. Onde acontece a identificação, o reconhecimento do outro e a construção de si como indivíduo coletivo, membro por sua vez de uma coletividade. Não precisa ser um lugar específico, mas corresponde à esfera de socialização humana que, separada por alteridade de outras esferas, se manifesta no todo e na parte através da construção de limites que ratificam a separação, mas constituem, ao mesmo tempo, um modo de anunciar que este grupo é tão importante como os demais. Revisitei Gueto Bufo, espetáculo mais antigo da Cia do Giro, depois de oito anos na última sexta-feira.

Sem dúvida é um dos espetáculos mais lindos a que eu já assisti e um dos mais importantes para o teatro porto-alegrense. É o típico exemplo que faz com que eu me irrite quando reclamam da constante volta aos palcos de antigas montagens. Uma juvenil e boboca sede pelo novo toma conta, às vezes, das pessoas que deveriam se preocupar com literatura, vídeo ou qualquer coisa que não teatro porque parecem esquecer daquilo que é cerne nas artes cênicas: a efemeridade do momento de encontro, de gueto, de identificação, de facilização (de face, não de fácil) entre o humano que faz algo para outro humano a que assiste. Se teatro é irreprodutível por excelência, é maravilhoso ter a oportunidade de (re)ver um espetáculo tão bonito, tão bem feito, tão premiado que dispensa qualquer análise.

Duas estruturas quero lembrar como fundantes do gueto cênico proposto por Daniela Carmona e Cláudia Sachs:

1) No figurino de Filó, há um xale. Um xale cinza que parece ser de lã. Pequenas flores bordadas decoram essa peça de figurino. Uma peça de um conjunto propositalmente feio, escuro e violento.

2) Tanto Daniela Carmona como Cláudia Sachs são artistas que empreenderam, como projeto de vida, não só o fazer teatral, mas o estudo desse fazer, para que esse último evoluísse e fizesse evoluir. Ambas estudaram aqui e na Europa. As duas estudam e fazem divulgar seus conhecimentos através de cursos afora.

Se 1) lembra a parte, o 2) lembra o todo. As pequenas flores bordadas no figurino são um detalhe que exibe o cuidado mínimo ao máximo. É a sobrancelha bem colocada, é o balde escolhido, é a voz pesquisada, é o texto decidido. São fagulhas que fazem uma fogueira incendiar. Sozinho, um jornal não queima inteiro. A coisa se dá letrinha após letrinha, pixel após pixel. Até o fim. E eis que teatro, o fim, não se faz, caridosamente, de qualquer jeito. Você pode fazer uma oficina, entrar no DAD, na Uergs, no Tepa e na Escola Sarcáustico e marcar esse dia como início de uma carreira. Mas não encha o saco do crítico que te xinga nos teus primeiros dez anos se tu não parar de estudar. Há que se louvar quem vai a fundo, quem torna a arte, além de trabalho, estudo, mas que sobretudo torna tanto um como outro, um bem cultural de valor considerável. E, como é o caso desse espetáculo, aplaudível.

Essa semana recebi um email de uma pessoa que , lá pelas tantas, me dizia:

“Sabe uma outra coisa que tem me deixado chocado? A falta de respeito do público. Não sei se é só nessas peças gratuitas, mas como é desconfortável!! No Gasômetro (Gordos ou somewhere beyond the sea), um telefone tocou bem alto durante a peça... E o pior: o cara atendeu!! Disse alô e que ligaria depois! Deveria haver uma multa para isso... Ontem (Projeto 1: Desejo, no Teatro de Câmara) tinha uma retardada que ria alto toda hora. Era constrangedor. E algumas pessoas, quando ela soltava aquilo que parecia ser uma gargalhada, riam dela. Chegou a tal ponto que acho que, se a peça durasse mais meia hora, alguém mandaria ela calar a boca, talvez eu mesmo...”

Pois minha reflexão é que até mesmo o aplauso pode te atrapalhar. Quando Gueto Bufo acabou e a luz elétrica foi desligada deixando apenas a experiência humana do contemplar o fogo tomar conta da assistência absorta, uma pessoa começou a aplaudir. Insistente, as palmas dela seguiram. Por segundos, lutou-se contra aquele barulho, tentando, ao máximo, segurar o momento, segurar as personagens, não deixar que o gueto construído se desfizesse. Mas as palmas, fortes como celulares e gargalhadas estridentes, venceram. O coro aplaudiu chateado pela despedida daquele momento que se repetirá sabe Deus quando, triste porque a peça tinha terminado.

Em minha cabeça de menino, as palmas do recreio me tiravam do solfejo. As palmas da professora me prendiam a ele. E eu só queria que a música durasse um pouco mais.

Nesta rua, nesta rua, tem um bosque
Que se chama, que se chama Solidão.
Dentro dele, dentro dele mora um anjo
Que roubou, que roubou meu coração.
*

Direção Geral e Texto: Daniela Carmona
Encenação: Élcio Rossini
Atuação: Daniela Carmona e Cláudia Sachs

24 de jun. de 2009

Cama de Casal e Cama de Casal & 1/4 de hóspedes

Foto: Sérgio Souza

B


Não havia escrito sobre “Cama de Casal” no verão porque a peça tinha sido mais uma entre tantas a que eu assisti com a pobre proposta de discutir relações (de heterossexuais casados e moradores da mesma casa, habitantes da mesma cama, sem filhos). A montagem se propunha a 3 e não fazia 1. O meio era conseguido por Karen Radde, esforçada no papel da terapeuta Naná, e Lucas Sampaio, esforçado no papel do bancário Guto. Todo o resto não fazia esforço. O cenário foi todo colhido de vitrines do DC Navegantes, numa estética falsamente realista. Os figurinos eram de gosto duvidoso e a trilha sem gosto de teatro nenhum. Num misto de novela da Record com filme B, ficaríamos nos comerciais. De tudo, o pior era o texto de Ellen D’Ávila. O tema relacionamento quase não acontecia: o tempo inteiro, a discussão, na cabeça do público, pairava sobre o porquê Naná, a esposa, ser tão neurótica. E em como Guto, o pobre marido mais novo, agüentava aquela mulher, 80% por cento do tempo insuportável de tão histérica. E, enquanto nos perguntávamos isso no conforto do assento da platéia, depoimentos vindos não sei de que concepção, surgiam num telão. Personalidades de Porto Alegre insistiam no tema: relacionamento (casamento heterossexual blá blá blá) não é coisa fácil, mas é bom. Vinham algumas gargalhadas e havia alguns momentos interessantes: repito que o casal de atores é bom. O problema mesmo era a pobreza de todo aquele acontecimento (teatro é evento!) que poderia ter ficado na telinha do sábado à noite.

Eis, então, que Ronald Radde aparece com “Cama de Casal & ¼ de hóspedes”, vulgo “Cama de Casal 2”. Texto ainda de Ellen D´”Avilla. Karen Radde ainda como a protagonista Naná. Mas com um realmente interessante (a esse tipo de produção) diferencial: um tema propício. A nova peça trata sobre SOGRAS!

Não. Sogras não é um tema moderno. Também não é profundo. Interessante muito menos (o fato de ser diferencial é que é). Mas é rico. Rico, repito, para esse tipo de montagem. E que tipo de montagem é essa?

Ronald Radde e a Cia Teatro Novo se propõem novamente a 3. Só três. Não há nada que diga que assistiremos a um grande espetáculo, com interpretações inesquecíveis, momentos mágicos e experiências inenarráveis. Um locutor, ao anunciar o início da peça, antes das luzes se apagarem, solicita que o público se desligue dos seus problemas e do seu mundo e se divirta. Essa solicitação já nos diz muito: 1) É teatro dramático: por alguns minutos, iremos nos desvencilhar de nós mesmos, conviveremos com personagens parecidos conosco e, ao fim, voltaremos e olharemos para a realidade com outros olhos; 2) Não se trata de um tipo de produção que se esforça em nos desligar de nós mesmos. Daí que o desligamento deve partir de nós mesmos antes do início para que nada se perca no investimento que começa já em casa ao partir para o DC Navegantes.

Ronald Radde não promete nada. Ou melhor, promete muito pouco. E, dessa vez, nos dá esse pouco, o três! O tema “sogras” oferece situações cômicas, piadas de jornal. Os depoimentos no telão se referem esteticamente a essa situação anedótica. Jair Kobe, o Guri de Uruguaiana, antes da peça começar, já dá esse tom. E essa experiência é oposta aos vídeos de “Cama de Casal 1” que nos lembra “Vida e Saúde” ou “Jornal Hoje”: pare, pense e reflita. O tema agora é para rir. O resto vem em acréscimo.

E rimos. O texto de Ellen D’Ávilla continua oferecendo bastante pouco aos atores. As situações são fracas: Naná cantando em frente ao espelho, o diálogo entre Eugênia e Bárbara (as duas sogras), os papos entre filhos e mães. Tão logo termina a sessão, você já não consegue reconstituir a história na cabeça, tão fraca ela se apresenta sem conflitos fortes, mudança de personagens, desenho narrativo, desafios e clímax. Salvam os bons atores, além do tema.

Naná continua histérica, mas agora sua mãe Bárbara equilibra seus rompantes: genealogicamente as personas estão invertidas – a mãe é leve e a filha é dura. Karen Radde e Lúcia Bendati repetem a boa dupla que já formam em outro espetáculo.

A substituição de Lucas Sampaio por Daniel Anillo foi um grande acerto da produção. Guto, o marido, está menos ingênuo e mais viril, dominando a cena não só pela simpatia, mas por sua função na narrativa.

Em termos de interpretação, o mérito maior é de Letícia Paranhos, que interpreta Eugênia, a sogra de Naná. Apesar de jovem, mas bem servida pela superficialidade que o texto e a produção lhe oferece, a atriz envelhece, mantendo a dignidade do teatro comercial, mesmo caminhando na espinhosa via da caricatura. Vence!

O cenário continua sendo tirado de vitrines do DC Navegantes. O figurino continua sendo de estética duvidosa. Mas a concepção comercial (sem qualquer sombra de valor negativo nisso), clara desde as primeiras piadas sobre sogras, passando pela permanência do merchandising e chegando na ligação (descontextualizada) com o clássico Dirty Dancing, sustenta isso tudo.

Quem pensa que o cinema só vive de grandes produções A desconhece que é do lucro obtido com os bons filmes B e C que o mercado se movimenta.

Viva Se eu fosse você e a Globo Filmes!

*


FICHA TÉCNICA
Texto de Ellen D´avila
Direção: Ronald Radde
Direção de Produção: Ellen D´avila
Assistente Administrativo: Bernardo Altenbernd
Seleção de Músicas: Ellen D´avila
Edição de Imagens e Som: Álvaro RosaCosta
Coreografia: Saionara Sosa
Figurinos: Titi Lopes e Di Armentano Shopping Total
Cenografia: Colflex Colchões e Dapertutto Móveis e Decoração
Iluminação e Operador de Luz: José Cavalheiro
Operador de Som: Osmar Montiel / Gabriel Severo
Equipe de Apoio: José H. Cavalheiro, Joaquim Fiúza, Osmar Montiel, Cristiane Cavalheiro e Hamilton Dias.
Programação Visual: Rogério Araújo
Fotos: Sérgio Souza
Web Designer: Rosana Almendares
Divulgação: Cia. Teatro Novo
Depoimentos em telão: Zé Victor Castiel, David Coimbra, Jair Kobe, Pedro Ernesto Denardin, Lurdes Eloy e Lucas Krug (Fernandão).

Elenco
Karen Radde – Naná
Daniel Anillo – GutoLúcia Bendati – Bárbara
Letícia Paranhos – Eugênia
Em off: Ellen D´avila - Vitória Malta e Pedro Ernesto Denardin - Narração do Gre-Nal

22 de jun. de 2009

Chapeuzinho Amarelo


Foto: Gustavo Razzera

O medo e o parque de diversões


Chapeuzinho Amarelo tem esse nome porque “amarela” para tudo. A peça é a história de uma guria que tem medo de tudo. Não toma banho pra não descolar, não pega sol porque tem medo de sombra, não toma sopa pra não ensopar, não sorri para não cair o queixo, não dorme porque tem medo de pesadelo,... Aí chegam dois guris que meio que resolvem se meter na vida da pobre sempre entocada dentro de uma barraca. Ah, ela mora ou está (não sei) na casa de uma tia. Lá pelas tantas ela fala na mãe, mas a personagem que aparece é uma tia. Voltando: os dois guris. Não, não são amigos dela. Eles se apresentam: Dudu e Bira. Ela se chama Maria Rita. Prazer, prazer. Os dois, então, resolvem mostrar para a nova amiga que ter medo é normal e até saudável. E que todo mundo tem medo de alguma coisa, incluindo eles. Narram, cada um, um medo bobo de outro. A princípio, a empreitada não vê muito sucesso: Maria Rita continua medrosa. Uivos são ouvidos. Pensam que é uma ambulância. Não é. Será um lobo? Um lobo!! Os dois guris fogem. Tentam levar a amiga, mas ela se fecha dentro de sua barraca amarela como ela. O lobo (bem parecido com o Alex do Laranja Mecânica) aparece. Chama por Chapeuzinho. Assopra a barraca. E eis que Maria Rita vem para fora já sem medo algum, mas ainda com o detalhe amarelo na cabeça. É. O medo desapareceu e ninguém viu isso acontecer. Sumiu. O caçador aparece e quem tem medo agora, mas não amarelidão, é o lobo. Sim: o lobo. E quem lhe ajuda? Maria Rita, a heroína. E ajuda como? Contando para o lobo um segredo: ao dizer as coisas ao contrário, o medo delas diminui. Caçador? O lobo tenta “Dorcaça”. E dá certo. Mas por que Maria Rita não usou esse segredo antes? Nunca seria amarela!! E poderia ter ido brincar com os seus novos amigos, almoçar com sua tia e aproveitar o sol, o banho, a sopa... Enfim. Lobo e Caçador desaparecem e dão lugar para Dudu e Bira. Talvez Caçador e Lobo foi só um jeito que os dois meninos acharam para resolver o problema do medo de Maria Rita. De um jeito meio estranho, mas resolveu. Final Feliz.


A fama de “Diretor Cuidadoso” de Paulo Guerra não é por acaso. A nova produção da Cia. Halarde, completando 19 anos, ratifica o costume: em termos de produção e interpretação, não há um só detalhe desnecessário, fora do lugar ou não interessante. O figurino é ótimo: a tia, o lobo e o caçador bem próximos de uma estética de história em quadrinhos. Maria Rita, Dudu e Bira nada distantes disso também. A escolha por branco, preto e tons de cinza realça o amarelo, cor que marca a história em seu início. O cenário é bastante rico: as entradas são bem aproveitadas, o varal dá profundidade, a barraca joga em cena junto com os atores por sua leveza e praticidade. E há recursos bem utilizados: tecidos infláveis, bolhas de sabão, sirene de ambulância. A trilha sonora em 5.1 preenche o espaço e contagia, a luz é detalisticamente marcada e as interpretações estão na medida. Fernanda Petit é pequena e, ao mesmo tempo, forte: duas características bastante importantes para a personagem e convenientemente utilizadas pela jovem e talentosa atriz. Thiago Prade e Denis Gosh caminham no limite do exagero, mas sem chegar nele: exatamente no ponto. Poderíamos identificar um pequeno excesso de afetação no Lobo, mas a interpretação construída dialoga com o figurino, ficando tudo em paz.

Mas o caso é realmente dramaturgia.

Por mais interessantes que sejam a trilha e o jogo de luzes, por melhores que sejam as interpretações e, mesmo com toda a riqueza que cenário, figurinos e adereços trazem, a proposta da Cia. Halarde de fazer um teatro dramático não atinge o máximo de suas potencialidades, tão ricamente exploradas. Gosta-se de tudo que se vê, mas abandonamos o teatro com a sensação de que algo faltou. Falta uma boa história.

Uma boa história para teatro.

Em outro momento, num aliás bastante problemático, já escrevi sobre a atualização de um sistema, outrora literatura, para o teatro. Embora o caso de Chapeuzinho Amarelo não tenha tido o mesmo resultado negativo, vou tentar ser mais claro tratando de uma questão que me parece ser fundamental: o medo de Maria Rita, que só se chama Chapeuzinho Amarelo por isso.

No texto de Chico Buarque, consta o seguinte parágrafo:

Mas o engraçado é que, / assim que encontrou o LOBO, / a
Chapeuzinho Amarelo / foi perdendo
aquele medo / o medo
do medo do medo
/ de um dia encontrar um LOBO./ Foi
passando aquele medo / do medo que tinha do LOBO/.Foi
ficando só um pouco / do medo daquele lobo. / Depois
acabou o medo / e ela ficou só com o lobo.

A literatura usa o que tem: letras, palavras. Assim, o leitor vê o medo de Maria Rita diminuir pela diminuição do número de vezes que a palavra medo aparece no texto e pela distância dela da palavra Lobo. O medo, assim, não some do nada, mas aos poucos, como um jogo de palavras, um entre tantos que podemos encontrar nessa bela história de Chico Buarque. Esse processo de diminuição do medo está, ainda, ligada à relação da Chapeuzinho com o Lobo. A professora Martha Bonotto, em seu artigo "Chapeuzinho Amarelo: um novo sentido para uma velha história" apresenta muito convenientemente a questão da virtualidade desse lobo na história de Chico Buarque. O lobo mora num buraco na Alemanha, ou seja, não é do bicho que Maria Rita tem medo, mas da imagem dele. Quando ele deixa de ser uma imagem e torna-se real, quando deixa de ser virtual e passa a ser atual (Pierre Levy), o medo desaparece. Isso na literatura.

Artur José Pinto, quem assina a dramaturgização, não resolve bem a transformação da protagonista, que nomeia o espetáculo, como, infelizmente, também outras algumas questões. Ao emaranhado de atributos estéticos, fica faltando o fio que possibilita a existência de várias camadas de significados, a leitura por vários públicos e o riso e o prazer geral de toda a platéia. Fica faltando o "Dia da Criança" que deixa a ida ao parque com gosto de evento especial.

Inesquecível, tenho que dizer, foi o riso de uma criança, próxima a mim, que se divertiu, como outras, a valer com o grande parque de diversões criado por Paulo Guerra!


*

Texto: Chico Buarque de Holanda
Dramaturgia: Artur José Pinto
Direção: Paulo Guerra

Elenco:
Denis Gosh
Fernanda Petit
Thiago Prade

Trilha Sonora Original: Jean Presser
Mixagem 5.1: Fernando Basso
Cenografia: Denis Gosh
Figurinos: Zélia Mariah
Iluminação: Anilton Souza
Design Gráfico e Ilustrações: Sandro Ka
Fotos: Gustavo Razzera
Adereços: Lair Santos
Produção: Paulo Guerra
Realização: Companhia Halarde

21 de jun. de 2009

Desvario


Foto: Elisa Viali


Viagem

Em alguns momentos da minha vida em que ou enlouqueci ou somente pareci que estava enlouquecendo, ouvi uma frase bem comum do linguajar de hoje: “Rodrigo, você está viajando!”

Viajar é sair do lugar onde mora e ir para outro lugar por um tempo. Viajar não é mudar-se para outro lugar. É ficar temporariamente num espaço incerto. A incerteza pode ser boa ou pode ser ruim. A viagem pode ser boa ou pode ser ruim. A loucura pode ser boa ou pode ser ruim. Fins, às vezes justificam. Comos, às vezes justificam. Com quens, às vezes justificam. E, às vezes, nada justifica porque também, às vezes, justificativas não são necessárias. Importa ainda dizer que já me arrependi de ter viajado. Mas também já me arrependi de não ter viajado. Acho que a loucura é válida porque a volta dela é sempre revigorante. Negativamente ou não.

Talvez seja por isso que um aeroporto seja o lugar onde Desvario, texto escrito pelo argentino-chileno Jorge Diaz (1930-2007), começa. Um homem com malas. Uma esteira com malas. Uma voz de aeroporto e um carrinho para malas. Mas o aeroporto se desfaz. Os atores o chamam de casa. Casa? Sim. Casa.

Os personagens não sabem quem são. Não sabem se vieram ou se vão. Se é dia ou noite. Se se conhecem ou se nunca foram apresentados. Chamam-se de marido e esposa, mas não lembram-se de si mesmos e, muito menos, do alheio. Discute-se a relação. Mas antes dessa acontecer com o outro, fala-se desse acontecimento consigo mesmos. A sós, eles não sabem quem são. E é no outro que, talvez, essa resposta seja encontrada. A viagem começa.

A peça muito bem dirigida por Tainah Dadda fala sobre solidão. A solidão de quem se sente só consigo mesmo. E eu que penso que teatro do absurdo hoje é, antes de tudo, um exercício museológico de fazer teatro (lembrar que houve um dia que autores resolveram se rebelar contra o realismo alienante e criaram um outro tipo de dramaturgia não-dramática, não pós-dramática, mas justamente não-dramática) me surpreendi quando li que o texto é de 2002. De fato, o texto de Diaz é tão atual quanto o Orkut (meu profile Chernobyl é de 2004!).

O protagonista, vulgo “Pastel”, interpretado pelo excelente Leandro Leffa, não gosta do outro personagem masculino, o fortão, interpretado pelo não menos excelente Lucas Sampaio. Um pensa que o outro é amante de sua mulher, mas um dos dois, afinal, é casado? E quem aqui que não se enciumou de alguém cuja relação não estava acertada que comente no espaço para isso dedicado (mas, por favor, identifique-se porque essa história de ir lá e me esculhambar sem se identifcar já é meio piada...).

Falando em piada, “Desvario” é feito para pensar que estamos vendo uma comédia. Leffa é um comediante perfeito: sutil, sensível e bastante longe de qualquer estereótipo. Sampaio, por outro lado, joga com o que tem de melhor: um ar de ingenuidade versus uma figura cênica grande em relação ao de seu colega de cena. Mas os diálogos não são sempre cômicos, como quase nunca são as situações. É fato o que a limpa produção, de Airton de Oliveira e Maura Sobrosa, informa no programa: “Está claro que Jorge Diaz não é um ator para dias de leveza e de festa.”

Nessa loucura toda há lampejos de consciência: “Eu não consigo entender, afinal, o que diabos vocês ainda fazem aqui?!” nos pergunta o protagonista e, nas minhas viagens, tive saudade da minha casa, da minha claridade, da segurança da porta do meu quarto. E uma nova personagem surge. Elisa Volpatto entra em cena como uma cantora lírica que diz ser, na verdade, um ex-caminhoneiro que descobriu-se como alguém muito feio e que queria ser melhor. O lindo corpo feminino que vemos seria, na verdade, de um homem barrigudo acostumado à churrascarias de postos de gasolina? Os cabelos são mentira: a cantora, como a de Ionesco, é careca. E cega. Engoliu as lentes e, agora, pode enxergar muito melhor seu eu interior. Será que se eu engolir meus óculos teria a mesma visão sobre mim mesmo?
Ursula Collischonn interpreta a dona de casa que mora no espaço que, para nós, continua a se parecer bem mais com um aeroporto. Seus ombros estão enrijecidos e seus cabelos muito bem penteados. A personagem é a exata esposa perfeita para o personagem de Leffa e torcemos para que, seja lá quando acontecer a auto-consciência e o fim da viagem, os dois possam ficar juntos. Os figurinos são bons e o cenário é funcional e esteticamente adequado. A luz deixa o proscênio às escuras em alguns momentos e é falha também em outros. A trilha é sempre muito bem posta. E o todo é um arranjo com um só nó. “Se Deus existisse, tudo faria sentido.”

Fiquei pensando que a peça é longa e que uns bons pares de minutos a menos ajudaria. Mas, ao olhar o relógio, vi que não é nem de Diaz, nem de Dadda, nem de Oliveira ou de Sabrosa a culpa. Quando se viaja, por melhor que seja a viagem, chega-se num instante de pensar na volta. Talvez o mundo real, o mundo além é que seja uma grande loucura, um grande absurdo que nos faz ficar fartos. Olhar o Jornal Nacional, às vezes, me faz pensar que sim.

Nesse emaranhado de palavras em situações nonsense, pegamos aqui e ali uma que outra coisa de nós mesmos e saímos, apenas uma hora depois, com a missão de nos desapegar das coisas sem sentido da nossa própria vida. Sim, aparte a TV, o jornal, os relacionamentos, elas existem!

*

Elenco: Elisa Volpatto, Leandro Lefa, Lucas Sampaio, Ursula Collischonn e Joana Vieira.
Preparação corporal: Moira Stein
Cenografia: Airton de Oliveira e Marcos Buffon
Iluminação: Nara Maia
Figurinos: Maiguida
Trilha Sonora: Arthur Barbosa
Programação visual: Ingo Wilges e Lucas Sampaio
Produção executiva: Airton de Oliveira e Maura Sobrosa
Direção de produção: Airton de Oliveira e Tainah Dadda
Realização: Telúrica Produções

19 de jun. de 2009

Projeto 1: Desejo




Foto: Kiran Prem



26 anos


É bom quando alguém faz alguma coisa para o nosso bem. Principalmente quando essa pessoa é especial para nós. Mas, de todos os bens que já me fizeram, tenho que dizer que a melhor sensação é aquela resultante de um bem que eu mesmo fiz para mim.

Abri a porta e deixei uma delas sair.

Podemos, para nos agradar, satisfazer a vários de nossos senhores. Um deles, de que trata a montagem do Grupo Barraquatro, é o desejo. E o desejo do ponto de vista do texto “O desejo pego pelo rabo” de Pablo Picasso. Não qualquer desejo, mas esse em específico.

Picasso abre o Cubismo com o desejo preso numa moldura, num castelo, num lugar não sei onde, não sei quando, não sei de quem, nem com quem, nem porquê. Pinta Les Demoiselles d'Avignon e usa, para isso, formas geométricas pré-existentes e nos deixa ver o todo delas e todas elas sem as também pré-existentes regras de percepção. Desejo não combina com regras pré-existentes, mas é feito de formas já anteriormente feitas.

“(...) el campo social está directamente recorrido por el deseo, que es produto de este históricamente determinado y que la libido no necesita de ninguna mediación ni sublimación, de ninguna transformación ni operación psíquica para catectizar las fuerzas productivas y las relaciones de producción. Sólo existe el deseo y lo social, y nada más.” Bernard, Michel. El cuerpo. Barcelona: Paidós, 1985. p. 201

O objeto do desejo não está com elas. Ele vem, fica e vai. Não sabemos para onde vai, nem se volta, mas interessa a sua ausência. Porque é na ausência do objeto que o desejo se manifesta. E satisfazê-lo nós mesmos já é, em si, um bem nosso:

Duas cenas são especiais em “Desejo”, espetáculo dirigido por Júlia Rodrigues, e integrante do Projeto Novas Caras que, pela terceira vez nesse ano, traz uma importante contribuição para o palco porto-alegrense. A abertura se dá com o espaço cênico totalmente às escuras. Um ator acende um fósforo em frente ao seu rosto e contemplamos parte de suas feições. O fogo se apaga, mas, em outro lugar, outro ator repete o ato. Não há ação crescente, nem decrescente. Não se trata de narrativa tradicional e já nesse instante nos damos conta disso. O Grupo Barraquatro vem falar do efêmero, do que se esvai sem controle humano, do que não é social porque é anterior ao ser. Os pequenos focos aparecem e somem como vontades que surgem na escuridão e desaparecem. Umas duram mais, outras menos. Nenhuma fica, porque também nenhuma vai ou vem. A luz inexiste ou surge.

Felipe Vieira de Galisteo, que assina a iluminação, acompanha o ritmo. O Cubismo de Picasso se faz ver em cena sem luz aberta, sem rosto amplamente iluminado. Formas, claros, escuros, sombras e branquidão. Ausências que despertam nosso desejo de ver o que não vemos.

A cena da água é outro momento em que a não-mediação se estabelece: alguém traz um vidro cheio de água. As atrizes se mobilizam para pegar a água. Não pegam. Controle baseado em nada. Você pensa algo, mas é outro algo. Elas conseguem a água, mas não tomam. Não era sede. Não era isso ou aquilo. Mas era. Era o que queria ser. Tomam banho com água. Tem. Têm. Desejo satisfeito sentido por nós, antes de qualquer consciência. E não se trata só de prazer.

A simplicidade do trabalho versus a grande interpretação de Kayane Rodrigues aponta para a economia cubista e a força que o movimento teve enquanto discussão filosófica de arte. Fazer um bem para nós mesmos, na verdade, nem sempre é algo muito complicado. Dá-se o primeiro passo e voilà, o caminho se abre. Kayane não faz esforço para ser bela e para chamar a atenção. Sua presença é leve e seus gestos disciplinados. São para os seus olhos que olhamos quando está sob o foco e, consciente disso que está, joga com nossa atenção, conduzindo ela para os outros elementos da cena. Infelizmente, porém, nem tudo é tão bom quanto o que foi levantado até aqui.

A cena de metateatro é dispensável. A forte impressão é a de que o grupo cansou de fazer algo sério e resolveu brincar um pouco para nos fazer rir desnecessariamente. É boa, mas seria melhor em outra peça. O meta-metateatro (a diretora saindo da cabine e falando com os atores) é ainda pior. Você está convivendo com o objeto de seu desejo quando o desejar, de repente, se desfaz. O mesmo para a utilização do espaço cênico: afinal, qual é ele? Os atores utilizam o palco e também a platéia. Mas não há luz na platéia, que permanece separada do palco. Ocupar o espaço do público não é código do teatro pós-dramático. Pode se ficar lá, sob a luz e o conforto, e continuar sendo o que se quis ser e se é muito bem sido. Ricardo Zigomático e Chico Buarque são também duas vozes que não concordam com o todo. Por mais que tente, o primeiro, talvez por estar sozinho e representar cinqüenta por cento do elenco, não consegue o mesmo nível corporal e energético das atrizes. O segundo, sem nem tentar, afasta todo o bloco até então construído do lugar imaginário que fizemos para nós.

Vale mesmo a abertura de portas para que delas saiam os desejos embusca de sua satisfação. Um desejo, ao final, só existe para ser satisfeito. Mesmo que alguns não o sejam agora, quem sabe um dia?

“O desejo pego pelo rabo” esperou 26 anos para ser levado ao palco pela primeira vez.


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FICHA TÉCNICA:


Direção: Júlia Rodrigues

Iluminação: Felipe Vieira de Galisteo

Orientação: Irion Nolasco e Gisela Habeyche

Concepção Gráfica: Ricardo Zigomático


Elenco:

Carolina Pommer

Cibele Donato

Daniela Dutra

Juliana Morosini

Kayane Rodrigues

Ricardo Zigomático

Sofia Schul

9 de jun. de 2009

Há vagas para moças de fino trato


O Imperador


Há um texto, uma imagem da minha infância que me fala que, se você quer encontrar o caminho, então, deve se trancar no seu quarto e apagar a luz do lado de fora do mundo, do lado de fora do quarto e de você mesmo. A luz que está dentro de si irá perceber que só há ela e que tudo depende dela. Seu corpo virará pavio e, de você, sairá a luz de que você precisa para iluminar o caminho. Porque de dentro, não vem a resposta. De dentro, vem a luz. O caminho não vem. O caminho está. Quem irá através dele é você. E, para escolhê-lo, é só de luz que você precisa.

Lembrei de uma carta do tarot que saiu para mim num desses sites google ponto com: o imperador. Fui ler sobre e descobri que há várias imagens sendo a mais comum a do homem sentado em seu trono. Não é dessa que estou falando. É a de alguém, um nobre, que olha o universo de longe e, assim, o administra com sabedoria. Talvez, a nobreza lhe venha justamente dessa sabedoria. Gosto de acreditar que fazem parte dele, constituindo sua coroa, as feições femininas e o gesto masculino. A capacidade de amar e gerar e a disposição em lutar e gerir. Ele se afasta do reino para olhá-lo como um todo. Está sentado porque sabe que é com ponderação que as melhores atitudes são tomadas. É frio, mas não mal. É velho, mas não doente. É humano, mas é Rei.

É assim que nos sentimos na platéia de “Há vagas para moças de fino trato”, quarta produção do Grupo Sarcáustico a que assisto em menos de seis meses. Daniel Colin, o diretor, nos leva para dentro do quarto que Gertrudes divide com e aluga para Madalena e Lúcia. Os lençóis que decoram o teto do espaço cênico continuam sobre o público. De fato, estamos dentro do quarto, iluminados pela mesma luz, abrigados pela mesma parede e sob o mesmo assoalho. A situação de público, de platéia, de assistência nos informa de que não estamos, porém, na mesma situação. Somos o imperador, que se afasta para o canto para ver o mundo de longe. Somos o menino que se tranca no quarto e acende a sua própria luz.

O espaço cênico é lugar de relações. É onde o texto se relaciona com a representação. É onde os objetos se relacionam com a narrativa e com os objetos reais do mundo escurecido. É onde os personagens se relacionam entre si e as figuras espelham as pessoas do lado de fora do quarto. É palco da catarse, é lugar que se desfaz por ser feito de pensamento, de emoções, de pura percepção. E, nessa feliz montagem, é exatamente onde estamos.

Três camas, três personagens. Madalena e Gertrudes, em oposição, se resumem em Lúcia. Gertrudes é capricórnio. Madalena é câncer. Uma prefere um pássaro na mão do que dois voando. A outra tem mil pássaros voando e nenhum na mão. Madalena veste vermelho, faz festa e tem o corpo bonito. Gertrudes tem a cama impecável e mantém o açucareiro sempre cheio. Uma faz na rua. A outra faz em casa. Uma deve ser do Grêmio e a outra colorada. Madalena é interpretada por Ariane Guerra. Gertrudes por Maíra Prates. Uma é alta e a outra é baixa.

Lúcia é.

A cama de Lúcia está entre a de Madalena e a de Gertrudes. Lúcia deve ser de Libra. E torcer pro Juventude.

Ali, dentro desse espaço, mas não nele, somos a crase que diferencia assistir a (ver) de só assistir (ajudar). Não nos metemos nem quando Madalena passa dos limites, nem quando Gertrudes não cala a boca. Apenas vemos uma usar o corpo e a outra usar a fala. Ambas discursam e Lúcia (Guadalupe Cassal), como nós, fica no centro. São excelentes as três interpretações, assim como tudo nesse universo criado para o nosso estar (ver, sentir). Poderíamos dizer que o texto nem sempre se encaixa na boca das atrizes, num excesso de fonemas e numa falta de naturalidade, mas diálogo é uma ponta da relação, que não permite que o tear se desfaça.

Madalena vai embora e pode-se enfim, dormir. As luzes se apagam e o grupo espera as palmas chegarem. Não é pela falta de virtudes no trabalho que elas demoram para vir. É porque a luz que está dentro de nós demora um tempo para entender que é dela a responsabilidade de iluminar o mundo para que o imperador possa agir.

Lúcia é luz.


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FICHA TÉCNICA:
Direção: Daniel Colin
Texto: inspirado no 2º ato do texto homônimo de Alcione Araújo
Elenco: Ariane Guerra, Guadalupe Cassal e Maíra Prates
Luz: Carol Zimmer
Som: Daniel Colin
Cenário: Daniel Colin e Rudinei Morales
Produção: Palco Aberto Produtora
Realização: Teatro Sarcáustico

8 de jun. de 2009

Platão Dois em Um - O Banquete


Os aplausos da decepção


A segunda parte de “Platão Dois em Um” termina com papel prateado caindo do teto ao som da banda “Sonoros Meliantes” e da coreografia dos “Plato’s boys”. Quando o elenco se reuniu e veio para o proscênio, ouvi cinco segundos de aplausos de uma platéia esburacada (muita gente havia ido embora depois de Górgias) e completamente sentada. O elenco seguiu a combinação e fez uma volta inteira e retornaram para a frente do palco. Em silêncio, algumas pessoas se levantaram para ir embora e as demais ficaram olhando constrangidas para os atores, talvez, mais constrangidos ainda. Nem mesmo os aplausos haviam sido unânimes. Eu, por exemplo, não aplaudi.
Mas deveria ter.
Há quatro momentos na última produção de Luciano Alabarse que valem mais do que aplausos. Mauro Soares, Carlos Cunha, José Baldissera e Sandra Dani merecem gritos de Viva!!. Em meio a uma pasmaceira nonsense, em que o diretor exibe sua excentricidade, querendo fazer com que Porto Alegre engula seu gosto pessoal por Platão e Lacan, esses quatro grandes artistas se levantam e nos fazem retornar ao mundo real que é o mundo do prazer de estar dentro do Teatro de Eva Sopher. São pequenos monólogos. Um por um levanta-se da sua cadeira e deixam com que seus personagens falem sobre Eros. E cada palavra que sai deles tem a profundidade de um personagem construído, de uma imagem, primeiramente vista por eles, de que somos gentilmente convidados a compartilhar, e de um som fértil o suficiente para produzir sons que nossa mente cansada do palavrório há tanto aspirava. Pouco se mexem. Não se esforçam em chamar a atenção. Economizam porque sabem que teatro é, sim, feito de movimento e de presença, mas que um coração batendo num ator em frente ao seu público já é o suficiente para que isso se estabeleça. O mais é exagero e mal gosto. Ao darem-se a ver, Mauro Soares, Carlos Cunha, José Baldissera e Sandra Dani (e repito os nomes propositalmente) fazem valer a pena ter estado ali por quase quatro horas.
Há ainda as atuações de Rodrigo Fiatt e de Marcelo Adams que, apesar dos excessos de caras, bocas, gritos e fricotes, dão vida ao texto de Donaldo Schüller, dramaturgo novo que, infelizmente, não encontrou quem lhe explicasse que, na biblioteca, lugar onde se lê, não se faz teatro. Se lê. E, que no teatro, lugar onde se atua, não se lê. Se atua e se assiste a alguém atuando.
Assiste-se, mas nem sempre se aplaude, se levanta, se grita e homenageia.
Luiz Paulo Vasconcelos, estou ficando convencido disso, sempre interpreta o mesmo personagem ou, talvez, há muito tempo não interpreta nenhum. Tirando o texto muito bem dito, o tom de voz, corpo e expressões são exatamente os mesmos em todos os trabalhos a que tenho assistido. Marcos Contreras, Vika Schabbach e Lutti Pereira poderiam ter ficado sem o (desde Creonte) bêbado, a afetada professora de filosofia e a bicha estilista bem aos moldes do Zorra Total respectivamente. A presença da acima referida banda e o grupo de bailarinos (?!) coroa o desperdício de talento, dinheiro e espaço.
Três dúvidas ficam:
1) o papagaio, boneco manipulado por Lê Souza, no proscênio, era uma referência à Ana Maria Braga (não duvidaria de mais essa) ou só estava ali para dizer o texto aos atores (porque havia um tripé com as páginas dele em frente ao ator) quando esses se esqueciam dele?
2) Por que na última cena, em que o jornalista e Sócrates discutem sobre Lacan, não acendem a luz e nos servem café, uma vez que a peça já terminou ou, quem dera, nunca tivesse sido feita (desse jeito, claro)?
3) Repetindo a pergunta do outro post deste blog: como pode, Luciano Alabarse, com o currículo invejável e reconhecido em todo país, debochar de uma forma tão grosseira do público e dos atores da nossa capital?

Aos atores, fica a certeza de que esse texto serve a quem não viu a peça. Aqui consta, em forma de literatura, o que estava estampado nos cinco segundos mortos de aplausos decepcionados visto por eles mesmos na noite de estréia.
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FICHA TÉCNICA

Texto: Platão

Elenco: Luiz Paulo Vasconcellos, José Baldissera, Marcelo Adams, Vika Schabbach, Carlos Cunha Filho, Alexandre Magalhães e Silva, Lutti Pereira, Marcos Contreras, Rafael Mentges, Fernando Zugno, Eduardo Steinmetz, Rodrigo Fiatt, Fabrizio Gorziza, Daniel Bacchieri, Lê Souza e Vinicius Meneguzzi.

Participação Especial: Sandra Dani

Direção: Luciano Alabarse
Cenário: Sylvia Moreira
Figurino: Rô Cortinhas
Iluminação: Cláudia de Bem e Maurício Moura
Direção Musical: Moysés Lopes
Foto: Julio Appel

Duração: Górgias: 1h e 20 e O Banquete: 1h e 30 Intervalo de 40 minutos

6 de jun. de 2009

Platão Dois em Um - Górgias ou o Discurso da Retórica

Foto: Júlio Appel

Sugestão ao Professor de Matemática*

Geralmente demoro de um inverno ao outro para fazer uma manta de tricô. Não que eu seja ruim, mas é que trabalho não é uma das idéias pertencentes ao meu “sistema tricô”. Dentro dele, está também frio, vontade de não pensar, filme dublado, novela, papo furado, algo quente para beber, insônia. Não sei muitos pontos, então, preciosismo é outra coisa que não está nesse meu sistema. As mantas que eu faço geralmente são cheias de erros que eu não desfaço porque sinto que, assim, o negócio fica “bem do meu jeitão”. Meu “Sistema Tricô” compreende, assim, pontos errados, buracos, falhas.

Qualquer sistema pode ser atualizado. Pierre Levy nos leva a saber que atualizar é mais do que adaptar: é utilizar-se das condições existentes no sistema objetivo, considerando a instabilidade desse sistema nos fatores tempo, espaço e demais idiossincrasias, como forma de re-hierarquizar o sistema fonte. Eu posso, por exemplo, fazer uma peça de teatro sobre tricô. Para tanto, irei rever tudo aquilo que pertence ao sistema tricô e redistribuir, excluir, incluir, modificar coisas a partir do que me oferece o teatro enquanto condição discursiva. O teatro, ao longo dos milênios, acumulou um universo bastante grande de possibilidades. Um universo finito no entanto.

Poderia colocar dois atores vestidos de agulhas a se enroscar em um grande fio de lã. Seria uma coreografia. Ao fundo, poderia ter uma lareira crepitando. Seria lindo. Lindo por apenas alguns minutos. Duas agulhas se enroscando exige muita paciência do espectador. O único conflito é chegar até o fim da carreira e começar uma nova trocando de lado. Sem falar que muito provavelmente só quem sabe fazer tricô é que vai compreender bem isso e até achar engraçado em alguns momentos. A grande maioria vai dormir com o barulhinho do fogo no sétimo minuto. Fazer isso seria o jeito menos aproveitável de atualizar o “Sistema Tricô” para o palco.

Mas tricotar é relacionar. Você, com a ajuda da agulha, relaciona o ponto que está fazendo com o ponto origem e o ponto da carreira de baixo. Disso, nasce o ponto destino que, tão logo é feito, já é origem de outro também. Você, na falta de algo melhor, começa a dar aula em uma escola pública e não ganha tão bem quanto acha que merece. Um dia, numa reunião de organização da Gincana Junina, você fica no turno da tarde e conhece a professora gostosona da terceira série. No recreio, rola um bate papo e você fica sabendo que, na escola privada onde ela trabalha, estão precisando urgente de um professor de matemática. Você é professor de matemática. Pega o email dela, manda o currículo e ainda aproveita para marcar uma ida ao teatro no final de semana. A escola origem faz nascer uma oportunidade destino. As agulhas se relacionam. O ponto nasce. E você não dorme na platéia. Sucesso!

Luciano Alabarse não aproveitou as possibilidades que o teatro oferece ao sistema “Diálogos de Platão”. Todo o palavrório filosófico que funciona muito bem no preto e branco do livro fica muito chato no palco. No teatro, você não pode voltar e reler, há dezenas de outras informações além do texto e, inevitavelmente, você fica tentando unir um ao outro porque é justamente essa a diferença do signo lingüístico e do signo teatral. O texto dito pelos onze atores vira música de lareira e, no sétimo minuto, já não lembramos mais o que foi dito no terceiro e nos preparamos para não ter tempo para pensar na próxima hora e meia. E nos concentramos na imagem e no movimento.

Nada combina. Marcelo Adams, que diz o texto muito bem, está com o cabelo emplastado de algo que tende a deixá-lo grisalho. E aí lembramos de Luiz Paulo Vasconcelos, Mauro Soares e José Baldissera e pensamos, por que o Marcelo Adams e não um deles? Os dez alunos da “Escolinha do Professor Sócrates”, com toda a superficialidade das interpretações, sem nada da profundidade da comédia, são de ruins a péssimos em suas construções. Dá pena de ver Vinícius Meneguzzi fazer uma bichinha afetada e Lutti Pereira repetir seu Tirésias. É constrangedor ver Marcos Contreiras fazer uma bicha velha e chamar Sócrates de “gordinho” para fazer a platéia sonolenta acordar, rir e dormir de novo, talvez consciente de que o que o ator está fazendo é vergonhoso. E o exemplo dado acontece em quase todas as interpretações. Nenhum personagem foi construído para além de um nome e de um texto decorado. Há um bêbado, um irritado, um sonolento... E todos comem, comem e comem... Beber não bebem porque o que o garçom serve, e vemos isso, não encheria uma só colher de vinho.

Sim, há um garçom vestido de terno e gravata borboleta. E não se faz a menor idéia do porquê ele está vestido assim uma vez que todos vestem vestidos tal qual nos quadros que vemos de Sócrates, Platão e a Academia. Roupas brancas que chegam a reluzir de tão limpinhas: um figurino que é não só para o público e para os atores, mas também parece ser falso para os próprios personagens.

Na parede do fundo do palco, grita a frase: “Conhece-te a ti mesmo”. E, nos perguntamos, como Luciano Alabarse, líder de uma grande equipe de artistas e técnicos, coordenador do Porto Alegre em Cena e homem respeitabilíssimo por tudo o que fez nas artes cênicas, pode deixar que isso saísse da sala de ensaios?

Fica o conselho a você, professor de matemática que marcou uma ida ao teatro com a professora da terceira série: prefira “O Exterminador do Futuro”. Por pior que seja, o diretor do filme conseguiu aproveitar bem o que o cinema lhe dispunha.

* Crítica também publicada na Revista Informe C3 #5.

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