Chapeuzinho Amarelo
Foto: Gustavo Razzera
O medo e o parque de diversões
Chapeuzinho Amarelo tem esse nome porque “amarela” para tudo. A peça é a história de uma guria que tem medo de tudo. Não toma banho pra não descolar, não pega sol porque tem medo de sombra, não toma sopa pra não ensopar, não sorri para não cair o queixo, não dorme porque tem medo de pesadelo,... Aí chegam dois guris que meio que resolvem se meter na vida da pobre sempre entocada dentro de uma barraca. Ah, ela mora ou está (não sei) na casa de uma tia. Lá pelas tantas ela fala na mãe, mas a personagem que aparece é uma tia. Voltando: os dois guris. Não, não são amigos dela. Eles se apresentam: Dudu e Bira. Ela se chama Maria Rita. Prazer, prazer. Os dois, então, resolvem mostrar para a nova amiga que ter medo é normal e até saudável. E que todo mundo tem medo de alguma coisa, incluindo eles. Narram, cada um, um medo bobo de outro. A princípio, a empreitada não vê muito sucesso: Maria Rita continua medrosa. Uivos são ouvidos. Pensam que é uma ambulância. Não é. Será um lobo? Um lobo!! Os dois guris fogem. Tentam levar a amiga, mas ela se fecha dentro de sua barraca amarela como ela. O lobo (bem parecido com o Alex do Laranja Mecânica) aparece. Chama por Chapeuzinho. Assopra a barraca. E eis que Maria Rita vem para fora já sem medo algum, mas ainda com o detalhe amarelo na cabeça. É. O medo desapareceu e ninguém viu isso acontecer. Sumiu. O caçador aparece e quem tem medo agora, mas não amarelidão, é o lobo. Sim: o lobo. E quem lhe ajuda? Maria Rita, a heroína. E ajuda como? Contando para o lobo um segredo: ao dizer as coisas ao contrário, o medo delas diminui. Caçador? O lobo tenta “Dorcaça”. E dá certo. Mas por que Maria Rita não usou esse segredo antes? Nunca seria amarela!! E poderia ter ido brincar com os seus novos amigos, almoçar com sua tia e aproveitar o sol, o banho, a sopa... Enfim. Lobo e Caçador desaparecem e dão lugar para Dudu e Bira. Talvez Caçador e Lobo foi só um jeito que os dois meninos acharam para resolver o problema do medo de Maria Rita. De um jeito meio estranho, mas resolveu. Final Feliz.
A fama de “Diretor Cuidadoso” de Paulo Guerra não é por acaso. A nova produção da Cia. Halarde, completando 19 anos, ratifica o costume: em termos de produção e interpretação, não há um só detalhe desnecessário, fora do lugar ou não interessante. O figurino é ótimo: a tia, o lobo e o caçador bem próximos de uma estética de história em quadrinhos. Maria Rita, Dudu e Bira nada distantes disso também. A escolha por branco, preto e tons de cinza realça o amarelo, cor que marca a história em seu início. O cenário é bastante rico: as entradas são bem aproveitadas, o varal dá profundidade, a barraca joga em cena junto com os atores por sua leveza e praticidade. E há recursos bem utilizados: tecidos infláveis, bolhas de sabão, sirene de ambulância. A trilha sonora em 5.1 preenche o espaço e contagia, a luz é detalisticamente marcada e as interpretações estão na medida. Fernanda Petit é pequena e, ao mesmo tempo, forte: duas características bastante importantes para a personagem e convenientemente utilizadas pela jovem e talentosa atriz. Thiago Prade e Denis Gosh caminham no limite do exagero, mas sem chegar nele: exatamente no ponto. Poderíamos identificar um pequeno excesso de afetação no Lobo, mas a interpretação construída dialoga com o figurino, ficando tudo em paz.
Mas o caso é realmente dramaturgia.
Por mais interessantes que sejam a trilha e o jogo de luzes, por melhores que sejam as interpretações e, mesmo com toda a riqueza que cenário, figurinos e adereços trazem, a proposta da Cia. Halarde de fazer um teatro dramático não atinge o máximo de suas potencialidades, tão ricamente exploradas. Gosta-se de tudo que se vê, mas abandonamos o teatro com a sensação de que algo faltou. Falta uma boa história.
Uma boa história para teatro.
Em outro momento, num aliás bastante problemático, já escrevi sobre a atualização de um sistema, outrora literatura, para o teatro. Embora o caso de Chapeuzinho Amarelo não tenha tido o mesmo resultado negativo, vou tentar ser mais claro tratando de uma questão que me parece ser fundamental: o medo de Maria Rita, que só se chama Chapeuzinho Amarelo por isso.
No texto de Chico Buarque, consta o seguinte parágrafo:
Mas o engraçado é que, / assim que encontrou o LOBO, / a
Chapeuzinho Amarelo / foi perdendo aquele medo / o medo
do medo do medo / de um dia encontrar um LOBO./ Foi
passando aquele medo / do medo que tinha do LOBO/.Foi
ficando só um pouco / do medo daquele lobo. / Depois
acabou o medo / e ela ficou só com o lobo.
A literatura usa o que tem: letras, palavras. Assim, o leitor vê o medo de Maria Rita diminuir pela diminuição do número de vezes que a palavra medo aparece no texto e pela distância dela da palavra Lobo. O medo, assim, não some do nada, mas aos poucos, como um jogo de palavras, um entre tantos que podemos encontrar nessa bela história de Chico Buarque. Esse processo de diminuição do medo está, ainda, ligada à relação da Chapeuzinho com o Lobo. A professora Martha Bonotto, em seu artigo "Chapeuzinho Amarelo: um novo sentido para uma velha história" apresenta muito convenientemente a questão da virtualidade desse lobo na história de Chico Buarque. O lobo mora num buraco na Alemanha, ou seja, não é do bicho que Maria Rita tem medo, mas da imagem dele. Quando ele deixa de ser uma imagem e torna-se real, quando deixa de ser virtual e passa a ser atual (Pierre Levy), o medo desaparece. Isso na literatura.
Artur José Pinto, quem assina a dramaturgização, não resolve bem a transformação da protagonista, que nomeia o espetáculo, como, infelizmente, também outras algumas questões. Ao emaranhado de atributos estéticos, fica faltando o fio que possibilita a existência de várias camadas de significados, a leitura por vários públicos e o riso e o prazer geral de toda a platéia. Fica faltando o "Dia da Criança" que deixa a ida ao parque com gosto de evento especial.
Inesquecível, tenho que dizer, foi o riso de uma criança, próxima a mim, que se divertiu, como outras, a valer com o grande parque de diversões criado por Paulo Guerra!
*
Texto: Chico Buarque de Holanda
Dramaturgia: Artur José Pinto
Direção: Paulo Guerra
Elenco:
Denis Gosh
Fernanda Petit
Thiago Prade
Trilha Sonora Original: Jean Presser
Mixagem 5.1: Fernando Basso
Cenografia: Denis Gosh
Figurinos: Zélia Mariah
Iluminação: Anilton Souza
Design Gráfico e Ilustrações: Sandro Ka
Fotos: Gustavo Razzera
Adereços: Lair Santos
Produção: Paulo Guerra
Realização: Companhia Halarde
O medo e o parque de diversões
Chapeuzinho Amarelo tem esse nome porque “amarela” para tudo. A peça é a história de uma guria que tem medo de tudo. Não toma banho pra não descolar, não pega sol porque tem medo de sombra, não toma sopa pra não ensopar, não sorri para não cair o queixo, não dorme porque tem medo de pesadelo,... Aí chegam dois guris que meio que resolvem se meter na vida da pobre sempre entocada dentro de uma barraca. Ah, ela mora ou está (não sei) na casa de uma tia. Lá pelas tantas ela fala na mãe, mas a personagem que aparece é uma tia. Voltando: os dois guris. Não, não são amigos dela. Eles se apresentam: Dudu e Bira. Ela se chama Maria Rita. Prazer, prazer. Os dois, então, resolvem mostrar para a nova amiga que ter medo é normal e até saudável. E que todo mundo tem medo de alguma coisa, incluindo eles. Narram, cada um, um medo bobo de outro. A princípio, a empreitada não vê muito sucesso: Maria Rita continua medrosa. Uivos são ouvidos. Pensam que é uma ambulância. Não é. Será um lobo? Um lobo!! Os dois guris fogem. Tentam levar a amiga, mas ela se fecha dentro de sua barraca amarela como ela. O lobo (bem parecido com o Alex do Laranja Mecânica) aparece. Chama por Chapeuzinho. Assopra a barraca. E eis que Maria Rita vem para fora já sem medo algum, mas ainda com o detalhe amarelo na cabeça. É. O medo desapareceu e ninguém viu isso acontecer. Sumiu. O caçador aparece e quem tem medo agora, mas não amarelidão, é o lobo. Sim: o lobo. E quem lhe ajuda? Maria Rita, a heroína. E ajuda como? Contando para o lobo um segredo: ao dizer as coisas ao contrário, o medo delas diminui. Caçador? O lobo tenta “Dorcaça”. E dá certo. Mas por que Maria Rita não usou esse segredo antes? Nunca seria amarela!! E poderia ter ido brincar com os seus novos amigos, almoçar com sua tia e aproveitar o sol, o banho, a sopa... Enfim. Lobo e Caçador desaparecem e dão lugar para Dudu e Bira. Talvez Caçador e Lobo foi só um jeito que os dois meninos acharam para resolver o problema do medo de Maria Rita. De um jeito meio estranho, mas resolveu. Final Feliz.
A fama de “Diretor Cuidadoso” de Paulo Guerra não é por acaso. A nova produção da Cia. Halarde, completando 19 anos, ratifica o costume: em termos de produção e interpretação, não há um só detalhe desnecessário, fora do lugar ou não interessante. O figurino é ótimo: a tia, o lobo e o caçador bem próximos de uma estética de história em quadrinhos. Maria Rita, Dudu e Bira nada distantes disso também. A escolha por branco, preto e tons de cinza realça o amarelo, cor que marca a história em seu início. O cenário é bastante rico: as entradas são bem aproveitadas, o varal dá profundidade, a barraca joga em cena junto com os atores por sua leveza e praticidade. E há recursos bem utilizados: tecidos infláveis, bolhas de sabão, sirene de ambulância. A trilha sonora em 5.1 preenche o espaço e contagia, a luz é detalisticamente marcada e as interpretações estão na medida. Fernanda Petit é pequena e, ao mesmo tempo, forte: duas características bastante importantes para a personagem e convenientemente utilizadas pela jovem e talentosa atriz. Thiago Prade e Denis Gosh caminham no limite do exagero, mas sem chegar nele: exatamente no ponto. Poderíamos identificar um pequeno excesso de afetação no Lobo, mas a interpretação construída dialoga com o figurino, ficando tudo em paz.
Mas o caso é realmente dramaturgia.
Por mais interessantes que sejam a trilha e o jogo de luzes, por melhores que sejam as interpretações e, mesmo com toda a riqueza que cenário, figurinos e adereços trazem, a proposta da Cia. Halarde de fazer um teatro dramático não atinge o máximo de suas potencialidades, tão ricamente exploradas. Gosta-se de tudo que se vê, mas abandonamos o teatro com a sensação de que algo faltou. Falta uma boa história.
Uma boa história para teatro.
Em outro momento, num aliás bastante problemático, já escrevi sobre a atualização de um sistema, outrora literatura, para o teatro. Embora o caso de Chapeuzinho Amarelo não tenha tido o mesmo resultado negativo, vou tentar ser mais claro tratando de uma questão que me parece ser fundamental: o medo de Maria Rita, que só se chama Chapeuzinho Amarelo por isso.
No texto de Chico Buarque, consta o seguinte parágrafo:
Mas o engraçado é que, / assim que encontrou o LOBO, / a
Chapeuzinho Amarelo / foi perdendo aquele medo / o medo
do medo do medo / de um dia encontrar um LOBO./ Foi
passando aquele medo / do medo que tinha do LOBO/.Foi
ficando só um pouco / do medo daquele lobo. / Depois
acabou o medo / e ela ficou só com o lobo.
A literatura usa o que tem: letras, palavras. Assim, o leitor vê o medo de Maria Rita diminuir pela diminuição do número de vezes que a palavra medo aparece no texto e pela distância dela da palavra Lobo. O medo, assim, não some do nada, mas aos poucos, como um jogo de palavras, um entre tantos que podemos encontrar nessa bela história de Chico Buarque. Esse processo de diminuição do medo está, ainda, ligada à relação da Chapeuzinho com o Lobo. A professora Martha Bonotto, em seu artigo "Chapeuzinho Amarelo: um novo sentido para uma velha história" apresenta muito convenientemente a questão da virtualidade desse lobo na história de Chico Buarque. O lobo mora num buraco na Alemanha, ou seja, não é do bicho que Maria Rita tem medo, mas da imagem dele. Quando ele deixa de ser uma imagem e torna-se real, quando deixa de ser virtual e passa a ser atual (Pierre Levy), o medo desaparece. Isso na literatura.
Artur José Pinto, quem assina a dramaturgização, não resolve bem a transformação da protagonista, que nomeia o espetáculo, como, infelizmente, também outras algumas questões. Ao emaranhado de atributos estéticos, fica faltando o fio que possibilita a existência de várias camadas de significados, a leitura por vários públicos e o riso e o prazer geral de toda a platéia. Fica faltando o "Dia da Criança" que deixa a ida ao parque com gosto de evento especial.
Inesquecível, tenho que dizer, foi o riso de uma criança, próxima a mim, que se divertiu, como outras, a valer com o grande parque de diversões criado por Paulo Guerra!
*
Texto: Chico Buarque de Holanda
Dramaturgia: Artur José Pinto
Direção: Paulo Guerra
Elenco:
Denis Gosh
Fernanda Petit
Thiago Prade
Trilha Sonora Original: Jean Presser
Mixagem 5.1: Fernando Basso
Cenografia: Denis Gosh
Figurinos: Zélia Mariah
Iluminação: Anilton Souza
Design Gráfico e Ilustrações: Sandro Ka
Fotos: Gustavo Razzera
Adereços: Lair Santos
Produção: Paulo Guerra
Realização: Companhia Halarde
1 Comentário:
Assisti este espetáculo no domingo e simplesmente me encantei.
Concordo com tuas considerações de dramaturgia no que diz respeito a transformação do medo pela protagonista.
Trata-se um espetáculo inteligente (direção muito clara e visível), um elenco afinadíssimo e piadas muito muito muito legais.
Queria observar a questão da rima como um ponto forte e bem empregado da dramaturgia, no 3º minuto do espetáculo eu já estava entregue e me deliciando com o texto.
Me diverti. Assistam!
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