19 de jun. de 2009

Projeto 1: Desejo




Foto: Kiran Prem



26 anos


É bom quando alguém faz alguma coisa para o nosso bem. Principalmente quando essa pessoa é especial para nós. Mas, de todos os bens que já me fizeram, tenho que dizer que a melhor sensação é aquela resultante de um bem que eu mesmo fiz para mim.

Abri a porta e deixei uma delas sair.

Podemos, para nos agradar, satisfazer a vários de nossos senhores. Um deles, de que trata a montagem do Grupo Barraquatro, é o desejo. E o desejo do ponto de vista do texto “O desejo pego pelo rabo” de Pablo Picasso. Não qualquer desejo, mas esse em específico.

Picasso abre o Cubismo com o desejo preso numa moldura, num castelo, num lugar não sei onde, não sei quando, não sei de quem, nem com quem, nem porquê. Pinta Les Demoiselles d'Avignon e usa, para isso, formas geométricas pré-existentes e nos deixa ver o todo delas e todas elas sem as também pré-existentes regras de percepção. Desejo não combina com regras pré-existentes, mas é feito de formas já anteriormente feitas.

“(...) el campo social está directamente recorrido por el deseo, que es produto de este históricamente determinado y que la libido no necesita de ninguna mediación ni sublimación, de ninguna transformación ni operación psíquica para catectizar las fuerzas productivas y las relaciones de producción. Sólo existe el deseo y lo social, y nada más.” Bernard, Michel. El cuerpo. Barcelona: Paidós, 1985. p. 201

O objeto do desejo não está com elas. Ele vem, fica e vai. Não sabemos para onde vai, nem se volta, mas interessa a sua ausência. Porque é na ausência do objeto que o desejo se manifesta. E satisfazê-lo nós mesmos já é, em si, um bem nosso:

Duas cenas são especiais em “Desejo”, espetáculo dirigido por Júlia Rodrigues, e integrante do Projeto Novas Caras que, pela terceira vez nesse ano, traz uma importante contribuição para o palco porto-alegrense. A abertura se dá com o espaço cênico totalmente às escuras. Um ator acende um fósforo em frente ao seu rosto e contemplamos parte de suas feições. O fogo se apaga, mas, em outro lugar, outro ator repete o ato. Não há ação crescente, nem decrescente. Não se trata de narrativa tradicional e já nesse instante nos damos conta disso. O Grupo Barraquatro vem falar do efêmero, do que se esvai sem controle humano, do que não é social porque é anterior ao ser. Os pequenos focos aparecem e somem como vontades que surgem na escuridão e desaparecem. Umas duram mais, outras menos. Nenhuma fica, porque também nenhuma vai ou vem. A luz inexiste ou surge.

Felipe Vieira de Galisteo, que assina a iluminação, acompanha o ritmo. O Cubismo de Picasso se faz ver em cena sem luz aberta, sem rosto amplamente iluminado. Formas, claros, escuros, sombras e branquidão. Ausências que despertam nosso desejo de ver o que não vemos.

A cena da água é outro momento em que a não-mediação se estabelece: alguém traz um vidro cheio de água. As atrizes se mobilizam para pegar a água. Não pegam. Controle baseado em nada. Você pensa algo, mas é outro algo. Elas conseguem a água, mas não tomam. Não era sede. Não era isso ou aquilo. Mas era. Era o que queria ser. Tomam banho com água. Tem. Têm. Desejo satisfeito sentido por nós, antes de qualquer consciência. E não se trata só de prazer.

A simplicidade do trabalho versus a grande interpretação de Kayane Rodrigues aponta para a economia cubista e a força que o movimento teve enquanto discussão filosófica de arte. Fazer um bem para nós mesmos, na verdade, nem sempre é algo muito complicado. Dá-se o primeiro passo e voilà, o caminho se abre. Kayane não faz esforço para ser bela e para chamar a atenção. Sua presença é leve e seus gestos disciplinados. São para os seus olhos que olhamos quando está sob o foco e, consciente disso que está, joga com nossa atenção, conduzindo ela para os outros elementos da cena. Infelizmente, porém, nem tudo é tão bom quanto o que foi levantado até aqui.

A cena de metateatro é dispensável. A forte impressão é a de que o grupo cansou de fazer algo sério e resolveu brincar um pouco para nos fazer rir desnecessariamente. É boa, mas seria melhor em outra peça. O meta-metateatro (a diretora saindo da cabine e falando com os atores) é ainda pior. Você está convivendo com o objeto de seu desejo quando o desejar, de repente, se desfaz. O mesmo para a utilização do espaço cênico: afinal, qual é ele? Os atores utilizam o palco e também a platéia. Mas não há luz na platéia, que permanece separada do palco. Ocupar o espaço do público não é código do teatro pós-dramático. Pode se ficar lá, sob a luz e o conforto, e continuar sendo o que se quis ser e se é muito bem sido. Ricardo Zigomático e Chico Buarque são também duas vozes que não concordam com o todo. Por mais que tente, o primeiro, talvez por estar sozinho e representar cinqüenta por cento do elenco, não consegue o mesmo nível corporal e energético das atrizes. O segundo, sem nem tentar, afasta todo o bloco até então construído do lugar imaginário que fizemos para nós.

Vale mesmo a abertura de portas para que delas saiam os desejos embusca de sua satisfação. Um desejo, ao final, só existe para ser satisfeito. Mesmo que alguns não o sejam agora, quem sabe um dia?

“O desejo pego pelo rabo” esperou 26 anos para ser levado ao palco pela primeira vez.


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FICHA TÉCNICA:


Direção: Júlia Rodrigues

Iluminação: Felipe Vieira de Galisteo

Orientação: Irion Nolasco e Gisela Habeyche

Concepção Gráfica: Ricardo Zigomático


Elenco:

Carolina Pommer

Cibele Donato

Daniela Dutra

Juliana Morosini

Kayane Rodrigues

Ricardo Zigomático

Sofia Schul

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