9 de jun. de 2009

Há vagas para moças de fino trato


O Imperador


Há um texto, uma imagem da minha infância que me fala que, se você quer encontrar o caminho, então, deve se trancar no seu quarto e apagar a luz do lado de fora do mundo, do lado de fora do quarto e de você mesmo. A luz que está dentro de si irá perceber que só há ela e que tudo depende dela. Seu corpo virará pavio e, de você, sairá a luz de que você precisa para iluminar o caminho. Porque de dentro, não vem a resposta. De dentro, vem a luz. O caminho não vem. O caminho está. Quem irá através dele é você. E, para escolhê-lo, é só de luz que você precisa.

Lembrei de uma carta do tarot que saiu para mim num desses sites google ponto com: o imperador. Fui ler sobre e descobri que há várias imagens sendo a mais comum a do homem sentado em seu trono. Não é dessa que estou falando. É a de alguém, um nobre, que olha o universo de longe e, assim, o administra com sabedoria. Talvez, a nobreza lhe venha justamente dessa sabedoria. Gosto de acreditar que fazem parte dele, constituindo sua coroa, as feições femininas e o gesto masculino. A capacidade de amar e gerar e a disposição em lutar e gerir. Ele se afasta do reino para olhá-lo como um todo. Está sentado porque sabe que é com ponderação que as melhores atitudes são tomadas. É frio, mas não mal. É velho, mas não doente. É humano, mas é Rei.

É assim que nos sentimos na platéia de “Há vagas para moças de fino trato”, quarta produção do Grupo Sarcáustico a que assisto em menos de seis meses. Daniel Colin, o diretor, nos leva para dentro do quarto que Gertrudes divide com e aluga para Madalena e Lúcia. Os lençóis que decoram o teto do espaço cênico continuam sobre o público. De fato, estamos dentro do quarto, iluminados pela mesma luz, abrigados pela mesma parede e sob o mesmo assoalho. A situação de público, de platéia, de assistência nos informa de que não estamos, porém, na mesma situação. Somos o imperador, que se afasta para o canto para ver o mundo de longe. Somos o menino que se tranca no quarto e acende a sua própria luz.

O espaço cênico é lugar de relações. É onde o texto se relaciona com a representação. É onde os objetos se relacionam com a narrativa e com os objetos reais do mundo escurecido. É onde os personagens se relacionam entre si e as figuras espelham as pessoas do lado de fora do quarto. É palco da catarse, é lugar que se desfaz por ser feito de pensamento, de emoções, de pura percepção. E, nessa feliz montagem, é exatamente onde estamos.

Três camas, três personagens. Madalena e Gertrudes, em oposição, se resumem em Lúcia. Gertrudes é capricórnio. Madalena é câncer. Uma prefere um pássaro na mão do que dois voando. A outra tem mil pássaros voando e nenhum na mão. Madalena veste vermelho, faz festa e tem o corpo bonito. Gertrudes tem a cama impecável e mantém o açucareiro sempre cheio. Uma faz na rua. A outra faz em casa. Uma deve ser do Grêmio e a outra colorada. Madalena é interpretada por Ariane Guerra. Gertrudes por Maíra Prates. Uma é alta e a outra é baixa.

Lúcia é.

A cama de Lúcia está entre a de Madalena e a de Gertrudes. Lúcia deve ser de Libra. E torcer pro Juventude.

Ali, dentro desse espaço, mas não nele, somos a crase que diferencia assistir a (ver) de só assistir (ajudar). Não nos metemos nem quando Madalena passa dos limites, nem quando Gertrudes não cala a boca. Apenas vemos uma usar o corpo e a outra usar a fala. Ambas discursam e Lúcia (Guadalupe Cassal), como nós, fica no centro. São excelentes as três interpretações, assim como tudo nesse universo criado para o nosso estar (ver, sentir). Poderíamos dizer que o texto nem sempre se encaixa na boca das atrizes, num excesso de fonemas e numa falta de naturalidade, mas diálogo é uma ponta da relação, que não permite que o tear se desfaça.

Madalena vai embora e pode-se enfim, dormir. As luzes se apagam e o grupo espera as palmas chegarem. Não é pela falta de virtudes no trabalho que elas demoram para vir. É porque a luz que está dentro de nós demora um tempo para entender que é dela a responsabilidade de iluminar o mundo para que o imperador possa agir.

Lúcia é luz.


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FICHA TÉCNICA:
Direção: Daniel Colin
Texto: inspirado no 2º ato do texto homônimo de Alcione Araújo
Elenco: Ariane Guerra, Guadalupe Cassal e Maíra Prates
Luz: Carol Zimmer
Som: Daniel Colin
Cenário: Daniel Colin e Rudinei Morales
Produção: Palco Aberto Produtora
Realização: Teatro Sarcáustico

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