26 de fev. de 2024

Sangue e pudins (RS)

Foto: divulgação

Elison Couto e Li Pereira

De um lado, belo texto. De outro, belo espetáculo


“Sangue e pudins” é a mais nova produção teatral dirigida por Luciano Alabarse, um dos diretores mais conhecidos e respeitados do sul do Brasil. Trata-se de uma releitura da peça teatral “Shopping and fucking”, do inglês Mark Ravenhill (1966), pincelada com trechos do romance semi autobiográfico do americano Brontez Purnell (1982) “Johnny, would you love me if my dick were bigger?”. Muito bom sob vários aspectos, o espetáculo pauta questões que envolvem consumismo, (homos)sexualidade, solidão e relações humanas, mas é principalmente uma homenagem aos anos 90. Angela Spiazzi (Lulu), Elison Couto (Gary), Jaques Machado (Robbie), Li Pereira (Mark) e Pingo Alabarce (Brian) estão no elenco apresentando boas interpretações, com destaque para os ótimos trabalhos de Spiazzi e sobretudo de Couto, esse último que, como normalmente, abrilhanta as peças nas quais atua. O trabalho estreou em janeiro de 2024 e pretende voltar à cena em abril ainda desse ano. É bem interessante conferir.


O ótimo casamento entre “Shopping and fucking” e “Johnny”: a adaptação de Alabarse.

O enredo de “Sangue e pudins” mantém quase que em sua integridade o de “Shopping and fucking”, peça escrita em 1995 e que foi um hit em Londres em 1996. No Brasil, houve uma primeira montagem em 1999 dirigida por Marco Ricca; uma segunda, em 2007, por Fernando Guerreiro; e uma terceira, em 2016, por Jopa Moraes.

Um dia, em um supermercado, o rico Mark (Li Pereira) compra dois jovens de sua idade: Lulu (Angela Spiazzi) e Robbie (Jaques Machado). Juntos, os três formam um certo de tipo de família, andando sempre juntos em festas, orgias, todo o tipo de experiência que envolve comida, drogas, sexo e música. Quando a história começa, Mark, recém diagnosticado como portador do HIV, não está bem de saúde, provavelmente em função de mais uma noitada de bebidas e heroína. Então, por sua própria conta, decide abandonar Lulu e Robbie (com quem tem uma relação afetiva um um pouco mais profunda) e ir para uma clínica de reabilitação. A partida do “provedor da casa”, deixa os dois em apuros: é preciso sustentarem-se. E, assim, comida congelada passa a fazer parte da rotina. Em busca de uma oportunidade, Lulu vai a uma agência de atores. Lá ela se encontra com Brian (Pingo Alabarce) e recita para ele um lindo trecho de “O canto do cisne” (1887), do russo Anton Tchekhov. Ele, porém, tem outro trabalho em mente para a desempregada. Sem outra opção, ela aceita, mas seu roommate Robbie (Jaques Machado) acaba estragando tudo e criando, para a dupla, um problemão fenomenal.

Do outro lado da narrativa, “Sangue e pudins” desenvolve uma trama paralela. Tendo sido sempre, desde muito criança, violado de todas as formas por parentes e pessoas estranhas, Gary (Elison Couto) hoje é um jovem michê (garoto de programa). Seu fantasma maior é seu padrasto, aquele que mais vezes o estuprou. Na adaptação de Alabarse de “Shopping and fucking”, o personagem Brian é o mesmo que “contrata” Lulu (no original de Ravenhill, não). Brian, uma espécie de “príncipe das trevas” no original, é apaixonado por “The lion king”, mas aqui ressalta a música como a maior criação de Deus. E, ainda na comparação com o original, Mark é expulso do centro de reabilitação, enquanto aqui, em “Sangue e pudins”, ele afirma mais de uma vez que saiu do lugar por sua própria vontade.

Ao voltar ao apartamento que dividia com Lulu e Robbie, Mark não é bem recebido. E suas novas decisões de vida o fazem encontrar-se com Gary, de modo que é, nesse momento, que as duas pontas de “Sangue e pudins” se unem. Ainda que Gary tenha cenas muito marcantes, é Robbie o personagem mais bem desenvolvido por Ravenhill mesmo na adaptação de Luciano Alabarse.

Contemporânea do musical “Rent”, de Jonathan Larson; e da peça “Closer”, de Patrick Marber, o texto “Shopping and fucking” envelheceu. Seus personagens são os jovens adultos frutos do neoliberalismo de Margareth Thatcher e Ronald Reagan que atormentaram suas infâncias. De um lado, a comida e o amor congelados; de outro, as drogas e o sexo como fantasmas assassinos. Essa dualidade já hoje em dia exige muita força para ser comparada com o mundo pós internet. Em outras palavras, é difícil trazer aquelas questões para o hoje sem muito esforço. E é aqui que entra o mérito do casamento de “Shopping and fucking”, de Ravenhill, com “Johnny, would you love me if my dick were bigger?”, de Purnell.

“Sangue e pudins” dosa bastante bem as cenas de ação com pequenos monólogos que exibem reflexões introspectivas dos personagens.  Escrito em 2015 e publicado um ano depois, o romance “Johnny…” participou, junto com outros textos do mesmo autor, de uma leitura dramática em Berlin, em setembro de 2023. Brontez Purnell, musicista, artista visual, bailarino e escritor, é um jovem conectado com o hoje e, como tal, reconhece as diferenças entre a contemporaneidade e os anos 90 no que se trata de consumismo, uso de drogas, práticas sexuais e solidão. São seus textos, em “Sangue e pudim”, que conectam o público ao espetáculo e aos personagens, promovendo reflexões bastante válidas que oxigenam a montagem. O título da peça vem de uma música de Fagner e Fausto Melo, interpretada por Simone e que faz parte de um disco lançado em 1976. Na letra, a frase: “Não quero saber quem sou, morro de medo” simboliza um vórtice de todas as questões abordadas no espetáculo. Lulu, Robbie, Brian e principalmente Mark e Gary só se reconhecem a partir de suas relações com as demais pessoas, pois não têm identidades próprias.


A direção boazinha com os personagens

A concepção de direção de Luciano Alabarse é bastante paradoxal. De um lado, “Sangue e pudins” é uma obra bonita de se ver porque esteticamente está muito vinculada aos anos 90: suas cores, estampas, modelagens, valores. Qualquer um que se lembre do apartamento da Mônica de “”Friends” vai achar visualmente bonito o que se vê em cena. Por outro lado, a beleza da produção atrapalha a violência, o escárnio, a acidez, a solidão, a desesperança da dramaturgia. A performance de “Help!”, dos Beatles, em que Jaques Machado dubla Miley Cyrus (?), é um desses momentos exemplares: belíssimo de um lado, mas pouco contribuinte de outro. E, encadeados a essa concepção, caminham o lindo desenho de luz de Maurício Moura e João Fraga, que tornam o espetáculo quase um musical adocicado da Broadway; os incríveis figurinos do grupo; o cenário assinado pelo diretor; e as ricas coreografias de Angela Spiazzi. Tudo isso parece ser de um espetáculo enquanto o texto é de outro. Um ponto de vista realmente negativo e sem contradições é a trilha sonora de Luciano Alabarse. É como se não houvesse um só instante de silêncio ao longo dos 120 minutos de duração da peça, o que alivia a dureza que os personagens deveriam sentir em suas extremas solidões e faltas de perspectiva. Em resumo, a direção parece ser muito “boazinha” com os personagens.


A brilhante interpretação de Elison Couto

Quanto às interpretações, a primeira coisa que deve ser dita é que Angela Spiazzi (Lulu), Pingo Alabarce (Brian) e principalmente Elison Couto (Gary) revelam ter técnica vocal bastante positiva para a defesa do espetáculo. Tudo o que eles dizem é compreensível: cada sílaba, cada entonação, o que nos faz recordar um tempo distante em que os atores, em geral, não precisavam de microfones de lapela para qualquer obra. O mesmo não se pode dizer infelizmente de Jaques Machado (Robbie) e sobretudo de Li Pereira (Mark). No caso deles, ouvem-se mais os gritos e as intenções bruscas do que o que realmente deve ser ouvido - as palavras. Pereira, em especial, praticamente diz todas as suas falas com a mesma entonação, sem nuances, sempre com muito esforço, nenhuma técnica, de maneira muito perigosa para suas cordas vocais e bastante monótona para a plateia.

Já foi dito, mas é possível repetir que Angela Spiazzi e Jaques Machado tem poucas oportunidades de mostrar variáveis de expressão, pois seus Lulu e Robbie respectivamente têm curvas muito limitadas já no roteiro. Lulu para na solução do problema do dinheiro que deve a Brian e Robbie tem toda a sua flexão nos ciúmes de Gary, e quase nada além disso. No entanto, ambos, mas principalmente Spiazzi dão a ver ótimos trabalhos com o pouco que têm, aproveitando bastante bem as possibilidades. Pinto Alabarce (Brian) praticamente não contracena, isto é, em boa parte da peça, seu personagem está sozinho. No entanto, o ator, cheio de ótimas oportunidades, agarra-as com galhardia ao que lhe é oferecido com destaque para a cena da cobrança de Lulu. Li Pereira (Mark), aquele que foi agraciado com o melhor personagem do roteiro, é o que menos tira proveito do texto. Tendo uma curva narrativa cheia de nuances, ele oferece uma interpretação linear que, no máximo, vai do 8 ao 80: ou está quase imóvel, ou está em explosão.

Elison Couto (Gary), com muitos mais anos de vida que o personagem que interpreta, apresenta uma defesa nada menos que brilhante em “Sangue e pudins”. Desde a verdade da sua dor física ou psicológica até a verdade irônica da forma como ele ridiculariza a si próprio em uma espécie de automutilação, o ator nutre a peça com detalhes riquíssimos de teatralidade. Há tantas variações de expressividade que fica difícil para o público digerir seu Gary, o que é motivador, pois tudo o que um bom espectador quer é sorver aos poucos o espetáculo que se descortina diante de si. Couto oferece, vibrantemente, um espetáculo à parte, fugindo dos lugares mais fáceis, investindo em segundos níveis e explorando as melhores dúvidas sobre sua composição, enquanto esconde a cristalização (se é que ela existe). Sem dúvida, é o que há de melhor em “Sangue e pudins”.


Escolher e aplaudir

Embora seja assim que o espetáculo se apresenta em seu programa entregue na bilheteria e divulgado nas redes sociais, “Sangue e pudins” é muito pouco sobre violência e muito mais sobre anos 90. Está muito mais próximo dos “Doc.s musicais”, dirigidos por Frederico Reder e Marcos Nauer no Rio de Janeiro, do que realmente sobre a dor. Para exemplificar, há uma cena em que os contrarregras Alexei Goldenberg e Vini Gomes correm com uma enorme bandeira LGBT em uma cena linda que pauta o falecimento de milhões de homossexuais durante a década em função do vírus HIV. O quadro trata-se de um tópico de check-list de tudo o que se passou no período e que não pode deixar de ser tematizado na opinião dessa concepção. Com isso, quer-se dizer que, na hora de assistir, o público terá que escolher se se deslumbra por toda a enorme coleção de lindas presenças estéticas ou se mergulha no texto, no personagem e na história narrada. Há que se escolher e, depois então, aplaudir!


*


Ficha técnica:

textos originais de Mark Ravenhill (“Shopping and fucking”) e Brontez Purnell (“Johnny, would you love me if my dick were bigger?”) com adaptação de Luciano Alabarse.


Direção, Cenário e Trilha Sonora: Luciano Alabarse

Coreografias: Angela Spiazzi

Iluminação: Maurício Moura e João Fraga

Figurinos e Maquiagem: O grupo


Elenco por ordem alfabética:

Angela Spiazzi - Lulu

Elison Couto - Gary

Jaques Machado - Robbie

Li Pereira - Mark

Pingo Alabarce - Brian


Contrarregras:

Alexei Goldenberg

Vini Gomes


Produção Executiva: Jaques Machado Produções Artísticas

Assistente de produção: Vini Gomes

Operação de Som: Manu Goulart

Fotos: Juliana Alabarse e Mariano Czarnobai Jr

6 de ago. de 2016

O mal entendido (RS)

Foto: Adriana Marchiori

Fernanda Petit
Texto de Albert Camus ganha excelente versão brasileira

O excelente “O mal entendido”, um dos espetáculos de maior destaque em 2015 na capital gaúcha, está de novo em cartaz em Porto Alegre. A peça, com dramaturgia e direção de Daniel Colin, é uma adaptação do original homônimo do franco-argelino Albert Camus (1913-1960) escrito em 1943 e que ganha, com essa montagem, sua primeira versão no Brasil. Na história, um homem pretende fazer as pazes com seu passado, reencontrando-se com a mãe e a irmã com quem há muito tempo não tem contato, mas elas não o reconhecem. Por causa disso, confundido com mais um hóspede, ele acaba participando dos terríveis meios que elas encontram para alimentar o sonho de sairem dali e verem o sol. Pedro Nambuco, Carla Cassapo, Elison Couto estão no elenco, mas Gabriela Grecco e principalmente Fernanda Petit brilham em excelentes atuações. A peça pode ser vista até o dia 14 de agosto no Teatro de Arena, no alto do Viaduto da Borges de Medeiros, na zona central de Porto Alegre.

O expressionismo na direção de Daniel Colin
A história se passa em uma hospedaria abandonada em um distante lugarejo próximo a uma represa e longe do mar. A peça começa com a chegada de Jan (Elison Couto) que vem, vinte anos depois, para retomar o contato com sua Mãe (Gabriela Grecco) e com Marta, sua irmã mais nova (Fernanda Petit). O problema é que ele não é reconhecido por elas e, com medo de uma recepção negativa, posterga a apresentação de sua verdadeira identidade para o espanto de sua esposa Maria (Carla Cassapo). Ao se hospedar escondendo a verdade, acaba despertando a cobiça das duas que percebem que ele é um homem de posses.

Marta, como o irmão da parábola bíblica do filho pródigo, permaneceu com a Mãe em sua velhice, mas alimenta o desejo de partir, conhecer o mar, o amor e o sol. Para realizar esse sonho, as duas costumam assassinar os hóspedes solitários mais ricos, jogando seus corpos na represa e engordando suas economias. Jan é uma vítima em potencial, embora a Mãe, por algum motivo que ela desconhece, relute em praticar o mesmo crime tantas vezes feito anteriormente.

Escrito, no meio da ocupação nazista na França, com influências do expressionismo, o texto “Le Malentendu” recebeu, ao longo das décadas, análises que o associam ao existencialismo e ao absurdo. Além do trecho do evangelho (Lc 15, 11-32), o texto se associa às tragédias “Electra”, de Eurípedes, e “Antígona”, de Sófocles. A adaptação de Daniel Colin mudou, na dramaturgia, o ritmo das cenas, mantendo sua força positivamente.

Na direção, o encenador confortavel e de modo excelente privilegiou o tom expressionista. Desse modo, é possível perceber sua versão também a partir dos olhos de Jan: a esposa amada, a mãe e a irmã assustadoras e o criado (Pedro Nambuco) enigmático. O clima solar de onde o protagonista vem é uma referência longínqua à umidade da região onde ele se encontra. Tudo é enegrecido, podre, doente.

Ao longo da peça, o fato dos atores não sairem de cena confere à fruição o aspecto sufocante em que a fluidez do texto se pauta positivamente. O público, que tem informações privilegiadas em relação aos personagens, consegue ler, a partir disso, o todo das relações que se estalecem na narrativa. O modo como a direção de Colin organiza a estrutura da cena e a articulação dos quadros, além de oferecer belos panoramas ricos em experiências sensoriais, nutre, apresenta e defende uma estética potente ao todo.


Gabriela Grecco
O brilho de Gabriela Grecco e de Fernanda Petit
Carla Cassapo, apresentando a Esposa Maria, consegue alguns méritos no pouco espaço possível no contexto narrativo positivamente. Ela representa o presente de Jan e serve, em termos de função na dramaturgia, para questioná-lo sobre os motivos que o levam a se esconder da própria família. Elison Couto, com melhores oportunidades no início da peça, permite-se sucumbir ao protagonismo de Marta durante o desenvolvimento da história. Em outras palavras, a narrativa começa em Jan, mas não é nele que está seu melhor. Com afinco e dedicação, o intérprete mobiliza um conjunto de expressões sutis que oferecem profundidade ao todo, sem se opor à hierarquia dos sentidos, o que é elogiável. Pedro Nambuco, no seu Criado quase silencioso, defende com ótima participação a figura forte de seu pequeno personagem.

Gabriela Grecco, em mais um belíssimo trabalho de interpretação, oferece um conjunto enorme de níveis diversos à personagem da Mãe. Em excelentes contracenas, com presença fulgurante nos silêncios e voz imponente nos diálogos, sua colaboração assina boa parte dos melhores méritos da produção. Um a um, os desafios são ultrapassados com galhardia em um quadro cheio de méritos.

Fernanda Petit, de novo, está excelente! Como Grecco, mas com maior número de desafios devido ao protagonismo de sua personagem, vê-se, em seu trabalho aqui, nobre pesquisa no interior de cada intenção, resposta e movimento. Suas expressões, nesse sentido, são claras, mas não óbvias, em tempos inteligentes e fortes. O melhor é reparar o jeito como sua Marta, de vilã, assume o precioso aspecto humano que é capaz de manter as narrativas trágicas e o conceito expressionista próximos da contemporaneidade. Isso sem falar na importância do personagem do irmão na parábola do Filho Pródigo, através do qual, toda a história faz sentido há dois mil anos. Uma performance destacável!

Montagem exuberante que merece viajar pelo país
“O mal entendido” tem ótimas colaborações do cenário de Marco Fronckowiak e de Rodrigo Souto Lopes, da luz de Carlos Azevedo, da trilha sonora de Beto Chedid, do figurino de Antônio Rabadan e do visagismo de Elison Couto. Ao longo da apresentação, o palco vai sendo inundado por água que banha os intérpretes, afogando os personagens em suas buscas pelo passado (Jan) e pelo futuro (Marta). O feito, tecnicamente complicado e em ótimo uso aqui, além de ser visualmente impactante, é, na ordem do conteúdo, bastante inteligente. Mãe e Marta se distanciam de Jan e Maria quanto ao guarda-roupa, oferecendo, com brilhantismo ao panorama, espaço fértil para o reconhecer das relações além do que já faz a dramaturgia. Tons mais escuros de verde e de vermelho oferecem respiro enquanto as lentes de contato e os cabelos prendem a atenção. A iluminação de Carlos Azevedo e a trilha sonora de Beto Chedid ampliam as possibilidades do espaço cênico, alargando a experiência estética com diagonais e fontes espalhadas de som. 

A produção brasileira de “O mal entendido” ganhou dez indicações em nove categorias do Troféu Açorianos de Teatro Gaúcho de 2015, vencendo nas de Melhor Iluminação, Cenário, Atriz Coadjuvante (Carla Cassapo) e de Atriz (Gabriela Grecco). Trata-se de uma montagem exuberante a qual se deseja que viaje para outras regiões do país a fim de que outros públicos, e não só os gaúchos, tenham acesso à sua enorme qualidade estética. Aplausos!

*

Ficha técnica:
Texto: Albert Camus
Dramaturgia e Direção: Daniel Colin
Atuação: Fernanda Petit, Gabriela Greco, Elison Couto, Carla Cassapo e Pedro Nambuco
Iluminação: Carlos Azevedo
Trilha sonora: Beto Chedid
Figurinos: Antonio Rabadan
Maquiagem e Cabelos: Elison Couto
Cenário: Marco Fronckowiak e Rodrigo Souto Lopes
Registro fotográfico: Jorge Scherer e Adriana Marchiori
Produção: Fernanda Petit

28 de jun. de 2012

A opinião sobre teatro na internet



A crítica desautorizada? 

            No jornal, o Bonequinho que vai ao cinema aplaude sentado ou em pé. O Bonequinho também pode pular ou dormir dependendo do filme. E tem também a polêmica figura do Bonequinho indo embora da sala de exibição. O leitor vê e sabe, assim, se o filme foi considerado bom ou ruim. Se, na opinião do jornal, vale a pena assisti-lo ou não. Mas, quando quer explicações sobre o motivo do aplauso, da cochilada, dos pulos ou do abandono da obra, ou mesmo das quatro, cinco, três ou nenhuma estrelinha, a análise crítica se faz necessária. A crítica torna-se um grande passo além da mera nota.
            Analisar uma obra, descrevê-la a partir do seu ponto de vista, identificar marcas, fazer ver problemas, méritos, dificuldades vencidas e tentativas fracassadas só não são desafios maiores do que reunir todas essas informações em um só texto e publicá-lo. Se, no primeiro momento, a opinião fica entre amigos, mesas de bar, conversas ao telefone e trocas de inboxes no Facebook, no segundo, sabe Dionísio onde as palavras vão parar, porque uma vez impresso, virtualmente ou não, a possibilidade de leitores do tal texto aí não tem fim.
            Não houve e não há uma faculdade de crítica de teatro, tampouco de música, de cinema, de literatura ou de artes visuais. Se quem escreve é alguém ligado unicamente à teoria, ele corre o risco de ser acusado de desconhecer a maquinaria teatral profundamente. Se for alguém da área, o problema fica ainda maior, pois “Como é possível falar mal da peça X se nela está o meu amigo ator, o meu futuro diretor, o meu ex-figurinista?” ou “Se a esposa dele está na peça Y, como ele vai falar mal do diretor?”. A autoridade para escrever a crítica ganha, a cada dia, mais força na própria crítica nesse tempo em que todos escrevem e publicam suas opiniões ou podem simplesmente desenhar bonequinhos, oferecer “curtires” ou usar de qualquer outra forma para divulgar sua avaliação sobre determinada obra de arte.
            Houve um tempo em que um determinado grupo de pessoas ditava o cânone a ser visto: os livros a serem lidos, um jeito certo de pintar, os programas de televisão censurados, os textos teatrais que poderiam ser produzidos. A igreja, o governo civil, a ditadura militar: o povo preguiçoso tinha guias “qualificados” para andar na selva sem pecar. Nos jornais, os editores escolhiam os críticos de teatro entre os jornalistas que se interessavam pelo tema e, ainda hoje, quem escreve sobre arte no Caderno de Cultura, também corre o risco de escrever sobre futebol durante a Copa, sobre política nas Eleições, sobre a Rihanna no Rock In Rio. No maior país da América Latina, há apenas duas pessoas que escrevem críticas de teatro em jornal e não escrevem mais nada além disso. Uma está no Rio de Janeiro e a outra está em São Paulo. Na exata linha oposta, Porto Alegre, Brasília, Fortaleza, Curitiba e Belo Horizonte têm importantes festivais com produções locais de altíssima qualidade. De Manaus a Florianópolis, hoje há mais salas de espetáculos e mais grupos de teatro e de dança do que nos últimos trinta anos. Cursos livres, cursos de formação técnica, graduação, mestrado e doutorado são abertos e se espalham e a Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas, a ABRACE, realiza encontros nacionais que reúne pesquisadores e artistas das cinco regiões do Brasil. Ou seja, na mesma medida em que o teatro perde espaço na mídia impressa, ganha-o nas ruas, na academia, nos shoppings, nos prédios restaurados pelo governo e pela iniciativa privada e, sobretudo, na internet.
            Depois de 40 anos escrevendo sobre teatro no jornal, o crítico Macksen Luiz saiu do Jornal do Commercio, seu último local de trabalho, e abriu um blog, dando assim continuidade ao seu trabalho. Com Lionel Fischer (Tribuna da Imprensa), Edgar Olímpio de Souza (Diário Popular) e com Ida Vicenzia (Jornal do Commercio), aconteceu o mesmo. Por outro lado, Luciano MazzaMarcelo Aouila Dinah Cesare nunca escreveram em jornais, mas abriram sites ligados ao tema mesmo assim. Em todos esses, há a necessidade de ir além do Bonequinho e compartilhar suas reflexões de forma mais profunda. Para eles, se o Gosto/Não Gosto válido é apenas o primeiro degrau, o último é o debate acerca da peça em cartaz. Nesses espaços, cada um é o seu próprio patrão, o seu próprio editor e, nesse sentido, a sua própria autorização. No Facebook, no Twitter ou por email, os links dos textos são compartilhados. Quando positivas, as críticas ganham printscreens e se tornam cartazes em portas de teatro. Quanto negativas, viram inboxes privados distribuídos em segredo. Em ambos os casos, os contadores de acesso marcam o crescente aumento do número de leitores, do número de leituras, do número de textos e o batido “Se gostaram, avisem aos amigos e, se não gostaram, avisem aos inimigos” continua valendo. O crítico que só fala bem pode até ser desacreditado por quem o lê com frequência, mas a produção da peça ruim sente no seu texto um carinhoso alento quando dela todos falam mal, já que o que ele escreveu vai engrossar a pasta a ser entregue nos órgãos competentes a fim de solicitar mais patrocínio, de ganhar editais de ocupação, de receber apoio para viajar. O crítico que só fala mal não existe, embora existam aqueles que, já de antemão, não gostam de determinado diretor, gênero, ator ou de tipo de teatro, honestamente parcializando a sua avaliação. Longe de terminar a tipologia, existem ainda aqueles que não falam nem bem, nem mal das peças a que assistem, procurando mais descrever as obras do que valorá-las, propondo reflexões que ganham corpo, principalmente, na investigação da linguagem artística e da sua recepção. Com isso, se chama a atenção para o fato de que há, felizmente, críticos para todos os gostos e críticas capazes de acompanhar a crescente malha cênica brasileira.
            Desde 2008, a jornalista Helena Mello pesquisa a crítica teatral em espaços virtuais na internet, apresentando, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, a dissertação Aspectos da Crítica Teatral Brasileira na EraDigital. Após entrevistar cerca de 80 pessoas ligadas ao teatro, incluindo críticos teatrais, o trabalho é referência por apontar questões relevantes com embasamento teórico, tais como, entre outras: a autoridade do crítico teatral da internet e a linguagem utilizada nesse tipo de texto. Sobre o primeiro ponto, entram na pauta dois temas – a necessidade humana de compartilhar experiências e a manutenção da verdade como uma estrutura sólida. A internet possibilita ao homem comunicar-se com desconhecidos do mundo todo em uma relação que cruza fronteiras geográficas e temporais. Afinal, uma foto sua publicada no Fotolog em 2005 pode ser acessada ainda hoje por alguém que nasceu em 2006 e isso está livre de acontecer na sua cidade ou do outro lado do mundo igualmente. Nesse sentido, pairam na rede, pontos de vista bastante diferentes e também bastante iguais sobre acontecimentos de qualquer tipo. As verdades, cada vez menos sólidas e mais fluídas, são questões que estimulam a maneira de pensar a arte, modificando, com certeza, a velha crítica, mas apresentando uma nova à qual, segundo a pesquisadora, é “pura perda de tempo resistir”.
            Orientada por Edélcio Mostaço, Helena Mello cita o caso recente da publicação de críticas teatrais anônimas em Santa Catarina, que causaram um alvoroço feroz entre a classe artística de lá naquela ocasião. “É natural que uma pessoa que escreve de modo desrespeitoso, aparentemente sem critério, questionando aspectos pessoais daqueles que fazem arte não seja bem aceita no meio artístico. Acho que fizeram bem aqueles que procuraram buscar sua identidade, reclamaram do espaço que ela ocupou, etc. Mas, também achei extremamente pertinente a colocação do ator  Daniel Olivetto ao perguntar se é preciso realmente saber QUEM fala. Afinal, diz ele, os textos bíblicos provocam profundas discussões sem que a autoria seja posta a prova. Além disso, é bem verdade que os artistas costumam dizer que o que importa é o diálogo aberto com o público, a troca. Então, por que preciso saber quem fala para dar importância ao que está sendo dito?” É natural, sem dúvida, que seja dado mais valor às opiniões de pessoas que conciliam a formação acadêmica com o envolvimento artístico, mas desconsiderar os demais pontos de vista é, sem dúvida também, fechar-se para o desconhecido. Participando de encontros nacionais e internacionais de artes cênicas, (em maio, por exemplo, houve a IV Jornadas Nacionales de Investigación y CríticaTeatral, na Argentina) Helena Mello afirma que “o público, os leitores, o mercado se encarrega de dar ou tirar espaço daqueles que se intitulam críticos. E, considerando que, hoje, na virtualidade, não há mais a chancela de um jornal, isso acontece ainda mais facilmente. O resto são perguntas e não respostas, embora eu não veja nisso um problema. É a partir das primeiras que aguçamos a nossa sensibilidade e fortalecemos a nossa capacidade de refletir.”
            Sobre a questão da linguagem, a internet possibilita mais liberdade a quem nela escreve, não só em relação ao tamanho do texto. Fotos e vídeos podem ser anexados facilmente ao texto, assim como o recurso do hiperlink pode ser um importante aliado tanto do autor como do leitor. Enquanto lê o texto, é possível conhecer o site do grupo, ver cenas da peça, ouvir sua trilha sonora. Ao fazer relação com quadros, livros, filmes, lugares, ou qualquer outra fonte, a análise crítica publicada na internet pode proporcionar o acesso a essas informações de modo rápido e fácil.
            Lionel Fischer diz só ver vantagens ao escrever para o próprio site. “No blog, escrevo o que quero e sem nenhuma preocupação, por exemplo, com o tamanho dos artigos ou das críticas. Como sou o patrão de mim mesmo (pela primeira vez na vida, diga-se de passagem), desfruto de uma deliciosa e imensa liberdade. Tenho, no momento, 385 seguidores, mas sei que há um número muito maior de pessoas que lê o que escrevo, pois, muitas vezes, pessoas que não são seguidoras comentam comigo - pessoalmente ou por e-mail - os artigos e as críticas que posto.” Ida Vincenzia concorda com ele e, sobre a repercussão que a internet proporciona, acrescenta: “Recebo muitos e-mails comentando as críticas, além de convites para escrever sobre teatro. São pessoas aconselhando ao público de teatro a assistirem às peças por mim criticadas, ou indicando a leitura das críticas. A repercussão me surpreende. Outras afirmam a importância que tiveram, em suas carreiras, as observações feitas por mim. Isso tudo me faz perceber como os blogs são um veículo efetivo de comunicação, e como são recebidos pela classe teatral.” Marcelo Aouila, que diz não escrever críticas, mas opiniões pessoais, conta que “existe um link entre o blog e o Facebook. As pessoas curtem, criticam minha opinião e comentam sobre os espetáculos. Surpreendentemente, algumas vezes, já me pararam em locais públicos para dizer que lêem o que eu escrevo. Como também sou produtor cultural, sei das dificuldades de se produzir um espetáculo e do sofrimento que é quando alguém fala mal do seu trabalho sem saber as condições de produção. Procuro apontar coisas que possam melhorar, e evito falar mal. Mas nem sempre dá para não falar mal. Quando não gosto de nada da peça, eu não escrevo. Sempre tem algo de bom para comentar. Às vezes, eu nem gosto, mas tenho a consciência de que funciona para um tipo de plateia. Então, se funciona, tem q ser valorizado. É melhor ser sincero para quem lê do que agradar a quem está trabalhando e ser incoerente com o que penso.” Para, Edgar Olímpio de Souza, da revista virtual Stravaganza, “abrir um site de cultura, com espaço também para outras áreas culturais, é uma maneira de não ficar sujeito aos critérios nem sempre artísticos que orientam a cobertura teatral feita pelas revistas e pelos jornais tradicionais. Ou seja, tenho plena autonomia para abordar uma peça no meu blog, não importando se o espetáculo seja estrelado ou não por um(a) “artista da Globo”, alguma figura midiática ou esteja amparado por ampla publicidade.”
            Uma iniciativa bastante interessante é a Revista Questão de Crítica, um site dedicado a publicação de críticas e de estudos sobre o teatro. Dinah Cesare, uma das coordenadoras do projeto juntamente com Daniele Avila, conta que a ideia surgiu no final de seu curso de graduação em Artes Cênicas com habilitação em Teoria do Teatro na UNIRIO. “Nós finalizávamos o curso de teoria e a Daniele lançou um projeto para novos críticos na antiga edição do riocenacomportanea, que foi como um laboratório para nossa revista. Assistíamos aos espetáculos do festival e escrevíamos as críticas em tempo de publicação. A experiência nos possibilitou vislumbrar a criação de um espaço para a prática reflexiva sobre o teatro. Nós havíamos estudado a criação de perspectivas e de categorias novas para pensar a cena teatral e queríamos exercitar o olhar e a escrita em atrito com as produções artísticas. Sempre acreditamos que existe um público que está interessado na crítica, assim como na arte, ou seja, interessado em novos modos de ver e de construir o mundo.” Sobre aos acessos ao site, ela garante que “a repercussão da revista é pensada como um todo. Temos um índice significativo de visitas, considerando que se trata de conteúdo sobre teatro. Recebemos sistematicamente emails das assessorias dos espetáculos em cartaz no convidando para ver os trabalhos das pessoas. Em alguma medida, recebemos também retorno de artistas interessados em dialogar. Também recebemos comentários pela web. Isso tudo está crescendo. Cada vez mais pessoas que se dedicam ao teatro, tanto para pensá-lo quanto para fazê-lo mais propriamente. Estamos planejando o Segundo Encontro Questão de Crítica. Realizamos uma premiação em 2012 e já estamos no processo para 2013.”
            Talvez, para o futuro, o melhor benefício da crítica teatral nos espaços virtuais seja a potencialidade que ela tem de ser um arquivo aberto e constantemente alimentado de textos e de imagens dos espetáculos teatrais. Para conhecer as produções teatrais do Rio de Janeiro nos anos 80 e 90, para não irmos muito longe, o pesquisador deverá recorrer aos jornais e revistas. Haverá algumas críticas, algumas matérias e o serviço, contendo o título e alguns nomes da ficha técnica. Felizmente, depois do boom da internet, as ferramentas de busca oferecem um arsenal muito maior. Testemunhas de uma encenação, os críticos partilham o seu olhar por sobre as obras, colocando suas análises em lugar próximo às peças. Graças ao aumento do número de textos, é comum encontrar mais de dois pontos de vista por sobre o mesmo espetáculo, estando no leitor a tarefa de separar “o joio do trigo” e confiar nesta ou naquela opinião. Finalizando com uma frase de Antonio Costella, trazida pela pesquisadora Helena Mello, fica o valor da crítica disposta na internet: "Mas a roda faz andar a ambulância e o canhão, o avião serve para avizinhar cidades e para atirar bombas sobre elas, a energia nuclear contém o poder quase mágico de alavancar a humanidade e, ao mesmo tempo, o de destruí-la. Os meios de comunicação serão aquilo que o ser humano fizer deles". Abordado na saída, o Bonequinho pode agora se explicar (se quiser).

Rodrigo Monteiro
Revista de Teatro da SBAT, número  530, março e abril de 2012


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