29 de nov. de 2009

Cabarecht

Foto: divulgação

Lost in the stars

Desde que baixei da internet, não consigo parar de ouvir Florence + The Machines que vim a conhecer pelo anúncio no msn da música que um contato meu estava ouvindo. Florence Welch é uma cantora que se uniu a uma banda e juntos formam uma nova sensação no indie rock britânico. Gravaram apenas um cd, em junho último, que se chama Lungs. “You Got The Love” é a música que eu mais gosto. Mas, assistindo ao “Cabarecht", eu agradeci a Deus porque, antes de aprender a baixar músicas da internet, a ter amigos de MSN e pegar as indicações musicais deles, de conhecer e gostar de indie rock e ouvir Florence + The Machines, eu tive o privilégio de sentir que música já existia há mais tempo que o teatro, bem antes do Windows Vista e do Iphone.

“Cabarecht” é um show musical apesar de existir como homenagem ao teatro. E tem muitos méritos no todo e nas muitas partes, mas senti que o maior de todos é atualizar canções de peças teatrais de Berthold Brecht (1898 – 1956) e Kurt Weill (1900 – 1950). Diferente do teatro, música é reprodutível. Para Jorge Dubatti e muitos autores, faz parte do DNA do acontecimento teatral o acontecimento convivial: o encontro num tempo e num espaço entre seres humanos cuja duração pode ou não ser delimitada, mas que não ocorre virtualmente. Ouço no meu computador uma música que não comprei, a partir de um cd em que eu nunca encostei, cantada por uma cantora que gravou seu primeiro disco há menos de seis meses. Humberto Vieira traz à Porto Alegre músicas de um dramaturgo conhecido como um dos mais importantes do século nas vozes de atores gaúchos tidos como o “cream of the top” do estado, sem falar no piano e na voz de Cida Moreira, uma das artistas mais importantes do país. E isso a alguns centímetros do nosso joelho, com a fumaça do charuto de Cida entrando pelas narinas e sob o olhar vivo de Sandra Dani. Se é num show que a música encontra o teatro, é em “Cabarecht” que é possível que um trintinha como eu, “duro do dreamulle”, de allstar, jeans e camiseta, pode encontrar-se com um teatro e um clima que só é despertado em momentos raros e quase nada comerciais. E eu em meio a pessoas de idades diversas, como também, quero crer, são os que lêem esse texto.

Se é que há algum, o único apelo comercial de “Cabarecht” é Brecht: só aparece (parcialmente) no título do evento e na composição das letras. A estrela da noite é mesmo Kurt Weill: compositor que fez dupla com o dramaturgo em vários espetáculos a partir de 1927, sendo o mais conhecido deles a “Ópera dos três vinténs”, adaptação de “The beggar’s ópera” (John Gay, 1728), espetáculo tido como o avô do atual musical norte-americano (o pai é “The Black Crook”, 1866, Charles Barras). Nessa produção da Cia Babel de Teatro, não há nada que exerça algum discurso dentro do teatro épico. As canções também não são cantadas no espírito brechtiniano e nem poderiam. Pelo menos no caso da “Ópera dos Três Vinténs”, a idéia era justamente debochar do drama clássico, da ópera tradicional de então, do gosto culto, atualizando assim o que já tinha feito Gay e Barras nos séculos anteriores. Uma vez que o “Cabarecht” é uma colagem de músicas descontextualizadas, perdeu-se a crítica, o deboche e todas as marcas do artista alemão que fez no teatro o que James Joyce fez na literatura, Sergei Einsenstein fez no cinema e Pablo Picasso fez na pintura. Por tudo, no entanto, fica claro a discordância daquilo que eu esperava, que era ver Brecht: Humberto Vieira e Cida Moreira apostam todas as forças no que, para eles, é mais importante – a música. Ao contrário de sugerir que a dupla de diretores não valoriza o teatro e importantiza outra arte, chego a conclusão de que ambos sabem que a obra brechtiniana é muito rica para ser toda refletida num só espetáculo. Essa concepção merece os aplausos que tem ganho por fazer bem aquilo que se propõe a fazer: cantar as letras de Brecht (nas músicas de Weill).

A seleção é nobre tanto quanto o elenco, formado por Zé Adão Barbosa, Antônio Carlos Burnet, Sandra Dani e a própria Cida Moreira.

Moriat (o elenco)
Surabaya Johnhy (Sandra Dani Moreira)
Duelo do Ciúmes (Sandra Dani e Cida Moreira)
September's Song (Zé Adão Barbosa, quem me fez lembrar com prazer de Mr. Higgins)
A canção da dependência sexual (Antônio Carlos Brunet)
Je ne t'aime pás (Sandra Dani, no seu melhor momento!)
Youcali (o elenco)

Entre outras, essas canções, cantadas em alemão, português, francês e inglês, são preciosidades que quem gosta de teatro não pode deixar de conhecer. Apesar de algumas esquecidas (inaceitáveis) da letra, os três atores e a cantora interpretam com paixão as letras e as melodias de forma que não conseguimos desgrudar o olhar, indo pro espaço o distanciamento brechtiniano (por uma ótima causa!). Vários signos teatrais são utilizados na expressão dos tons engrandecendo a homenagem já expressa pelo figurino e pela organização livre do cenário. De resto, o gênero teatral escolhido é mesmo o bom musical americano, em que as falhas são condenáveis, a curva dramática é bem marcada (início apoteótico, pausas intercaladas com levantes, ápice no encerramento) e o bis é agradecido.

E tudo isso para mim, numa única noite, sem a frieza de um mp3 distante, com o calor que só o teatro e a música ao vivo podem dar.

"And we're lost out here in the stars
Little stars big stars blowing through the night
And we're lost out here in the stars
Little stars big stars blowing through the night
And we're lost out here in the stars"

28 de nov. de 2009

Projeto Picasso: um sonho

Dizer e não dizer não é uma questão.


“Projeto Picasso: Um Sonho” é uma peça infantil.

1) Seus personagens não são nada abobados, metidos a adultos coloridos com entonações agudas, movimentos frágeis e feições artificialmente brilhantes. Os cinco atores gastam o seu tempo preenchendo o nosso com vivacidade, alegria e muito vigor. Em cada presença e em cada ausência mostram estar, ou não estar quando se promove a plenitude, inteiros. Ninguém é parte cujo todo é uma história, mas cada um é uma história em si. Em se tratando de um texto que remete a Pablo Picasso, para mim e para meus olhos, isso é o cubismo aplicado de forma inteligente na construção de uma figura dramatúrgica.

2) O ritmo é continuo, sem crescentes ou buracos. O espetáculo inteiro é um lugar de indeterminação: os movimentos de cena do coletivo de elementos (trilha, iluminação e elenco) que se apresentam sem anunciar nada além de si mesmos. O sentido é sempre dado por quem vê num esforço em enganar quem pensa que sabe o que o grupo quer dizer. O Grupo Barraquatro quer dizer algo, mas, dizendo, não diz que algo é esse. Ouvindo, quem tem que dizer somos nós. Os acontecimentos que juntos são um só pairam diante de nós como, desculpem a clichezisse do exemplo, o mar: as ondas nunca são as mesmas, você já viu o mar mil vezes, mas não é possível fazer de conta que ele não está ali ou não dar-lhe crédito. Ao menos dois segundos, você tem que dar inteiramente a ele, ao seu som, à sua energia. “Projeto Picasso” está ali. Ponto.

3) Há colorido. Há emoção. Há aventuras e brincadeiras. Leveza e Pesadeza estão juntas no mesmo objeto, como sempre. É de adulto considerar que algo é leve ou é pesado. No fundo,tudo é leve e tudo é pesado. O Grupo Barraquatro pega esse conceito de jeito: ri com coisas sérias, sem transformá-las em bobas. As coisas são como são. Estão ali. Crianças preferem rir. Choram só quando estão cansadas de rir. 4) A dramaturgia é. Com olhos atentos podemos até reconhecer que há um pulo no passado: fala-se da menina que morreu e ficou dias com o corpo no armário e entender que essa é a história. Mas pode-se achar que tudo isso é brincadeira sem nexo, com sentido, por prazer. As cenas se sucedem pelo ventura de acontecer-se. A brincadeira de esconde-esconde, os tecidos brancos a correr e esconder grandes malas e meninas atrás delas, “Você sabe que horas são?”, o casamento, o namoro, o banho.

Pausa pro suco:

Thiago Pirajira está excelente em cena. Seus olhos expressam uma imensa sinceridade, uma energia tão cativante que nos deixa muito a vontade em rir, em brincar, em participar com ele. Com a agilidade e a técnica de um trabalho que vem da academia, com todo o valor que isso proporciona, sua interpretação nos motiva a permanecer olhando.

A direção de Júlia Rodrigues prende sabendo que, nesse caso, é necessário em soltar. Solta-se com muito cuidado: as atrizes estão muito afinadas em suas melodias individuais, tudo segue a mesma ordem: "desordem, mas com bom gosto, por favor!". Fiquei muito tempo pensando que o espetáculo era lírico demais. E, sim, é. Por isso, tão cheios de valores, alguns deles apontados aqui.

5) Por isso, infantil. No dia em que eu fui, havia crianças na platéia. Riram, se divertiram entre adultos sérios tentando reconhecer os sentidos. Minha tese de que “Projeto Picasso: um sonho” é infantil nada mais é do que uma adultice descarada e inútil. Mas é porque gostei muito de ter visto. É minha forma de dizer que quero ser criança ou, ao menos, gostar sem ter que dizer porquê.

Se digo é porque quero gostar mais. Voltem.

*

Inspirado no texto “As quatro meninas”, de Pablo Picasso.

Elenco:
Carolina Pommer
Daniela Dutra
Juliana Morosini
Kaya Rodrigues
Thiago Pirajira

Direção: Júlia Rodrigues
Orientação: Irion Nolasco e Gisela Habeyche
Iluminação: Bathista Freire
Trilha Sonora: Júlia Rodrigues

25 de nov. de 2009

O vendedor de palavras (por Guilherme Nervo)

Foto: Tiemy Saito


Dez centavos a letra, um real a palavra*

O céu nublado e a ameaça de chuva no último sábado (21 de novembro) não foram páreos aos encantos do Grupo Mototóti, que encenava seu primeiro espetáculo de rua: "O Vendedor de Palavras", escrito por Rodrigo Monteiro.

Carlos Alexandre e Fernanda Beppler, ao lerem a crônica de Fábio Reynol, idealizaram uma peça. Não de palco, mas de rua. A crônica, devidamente adaptada, foi entregue ao grupo no final de 2008.

O tema (incentivo à leitura) se mostrava importante ao mesmo tempo que arriscado. Risco esse contemplado com uma peça de boníssimo humor e leveza. A proposta teve retorno artístico principalmente pelo nível de profissionalismo dos atores, sabendo aproveitar o que quer que fosse, com agilidade e dinâmica. O figurino e o cenário, aparentemente caseiros, baseavam-se em tecidos coloridos, colagens, máscaras, placas e instalações.

Bom seria se eu pudesse dizer que Carlos e Fernanda foram maravilhosamente guiados por Arlete Cunha, sem que um deles sobressaísse. Acontece que minha opinião difere: por vezes Fernanda rouba o foco. Destaco a notável presença de palco e a comicidade física.

Interessante que o incentivo à leitura já começa no próprio figurino dos personagens, repleto de colagens com as mais diversas palavras. Felizmente essa aura de letras não limita-se apenas à estética.

João só é João com Maria; Romeu com Julieta; e Milho com Espiga. Milho é um apaixonado pelas letras. E, assim como sua amada, Espiga, trata-se de um sonhador.
Todo sonhador possui um sonho, também chamado de ideia, qual pode tornar-se em uma ideologia. Nesse caso, a ideia era ir para a Capital. A ideologia, difundir novos pensamentos com a venda de palavras. Afinal, como o próprio Milho diz: "- As pessoas possuem tão poucas palavras que limitam-se a repetirem as mesmas."

Enquanto os jovens sonhadores empolgam-se com a empreitada, as máscaras colocadas indicam que novos personagens acabam de surgir: Adam, o inglês sofisticado, e Odete, a alemã rústica. Inicia-se então uma discussão permeada de controvérsias e ciúmes entre os avós. Era a batalha entre Shakespeare e Goethe.

Recordo de algumas cenas-chave em que o nível de humor era bem adequado: o não-beijo na estação de trem, a apresentação do "Gãgou" (Google) e o contato de Odete com o mundo virtual e suas nomenclaturas esquisitas. A trilha sonora é de bom gosto, constituída de gaita e violão. A projeção vocal é bem trabalhada, não lembro de ter perdido alguma fala.

Já na terra prometida, onde se lê Mercado Público, deparamo-nos com um confronto entre o vendedor de palavras e o "vende-tudo", ou camelô, personagem engraçadíssimo, muito bem interpretado por Carlos Alexandre. Ele censura: "- Mas as palavras pertencem à todos, não pode vendê-las." A resposta logo vem: "- Quem não sabe o que uma palavra significa, não a possui." Sentença coerente, mas com um quê de engraçada. Ou deveria dizer histriônica? Talvez comicamente vil ou charlatã.

"O Vendedor de Palavras" não decepciona, dá gosto de lhe ser assistido!

Pois bem, agora minhas palavras merecem um descanso, uma folga, um repouso, um sossego. Por hoje, compras feitas.

* Crítica publicada no blog Percepção Teatral.

23 de nov. de 2009

Dentrofora

Foto: Gilberto Chaves

Como o azul

Encontrar é um verbo de ação. Quando você encontra algo, você está num lugar. O objeto ou a pessoa encontrada estabelece ou mantém uma relação com você. Isso tudo acontece num ritmo, num tempo. Encontrar não é necessariamente um ponto fixo. O encontro dura um segundo, uma hora, uma vida... E uma vida nem sempre é uma ação. Encontrar não só representa uma ação.

“– Você acha que vamos encontrar?"

Hide and Seek, ou “Dentrofora”, começa com essa frase. Um casal de personagens presos em caixas envidraçadas. Modelos, manequins, estereótipos? Que personagens são esses que nunca se vêem porque estão em caixas separadas, sem comunicação visual entre elas? Que espécie de encontro é esse que um deles almeja perguntar isso no início, e outro no fim? "Dentrofora", novo espetáculo do Grupo In.co.mo.de-te, não é, talvez até nenhum seja, um espetáculo de respostas. Mais que tudo, estão claras as perguntas. Perguntas feitas à nós, cujas respostas fazem com que Jimmy veja Marie. Sem elas, o casal não é um casal. Há tempos que não se via uma história que depende tanto dos ouvintes, mais do que dos contadores, mais do que dos fatos. “Dentrofora” não tem ação dramática. E não é chato. Nada chato.

O mérito de Carlos Ramiro Fensterseifer, o diretor, não está em cuidar de todos os detalhes e levá-los ao potencialmente máximo sem burramente almejar o inalcançável todo. Isso é dever cumprido. O seu melhor é permitir que nós, a platéia, aproximemos o todo de quem a ele se refere. Cada signo (cor, forma, movimento, intenção manifesta) está arregimentado: azul que é tão azul que está em todas as cores, como diz, mais ou menos assim, Paul Auster, nesse texto de 1976. Nesse sentido, a peça, de um modo geral, fala de tudo, de todos, de mim e de vários eus. Você se indentifica e vê outras pessoas também, novas situações, pensa e sente. E atualiza, por indicação do autor, “Dias Felizes”, de Becket. A história que se conta sobre o prazer/desprazer de outras histórias.

Liane Venturella e Nelson Diniz são dois dos melhores atores da capital gaúcha. Praticamente parados em cena, atraem nossa atenção pela forma dinâmica com que usam a voz bem pontual e cheia de movimentos. As intenções faciais, mínimas, ganham vida nos corpos tão experientes, talentosos e estudados desses dois grandes artistas. Adequada e lindamente vestidos, sob focos de luz extremamente interessantes e bem usados, Venturella e Diniz são os fatos da história sem ação quem contam. Interpretações inesquecíveis, num texto célebre, numa montagem tão bem dirigida, produzida e oferecida ao público daqui.

A trilha, apesar de tudo ter sido tão bom, merece um destaque pela força que dá não na história que sai do palco, mas na história que chega a platéia. Coordenada (composta?) por Álvaro RosaCosta, os acordes sublinham o que virá e o que veio, sem ocupar o espaço do que está. Entradas certas, volume adequado, tons que grudam ao ouvido e que arrastam as palavras de Auster e de Fensterseifer. Se algo lidera todos os elementos, para mim, é a música, quem embala o tempo que dura esse encontro nesse espetáculo que não fala sobre como ele ocorreu, nem como ele deixou de ocorrer. Mas dele.

- A vida segue conosco ou sem nós.

*

Direção: Carlos Ramiro Fensterseifer

Elenco:
Liane Venturella
Nelson Diniz

Iluminação: Cláudia De Bem
Trilha Sonora: Álvaro RosaCosa
Figurinos e Maquiagem: Rodrigo Nahas
Produção e Assistência de Direção: Denis Gosch
Divulgação: Léo Sant’Anna
Design Gráfico: Rodrigo Nahas

O vendedor de palavras (por Helena Mello)

Foto: Vilmar Carvalho


Teatro de rua, a princípio, não é confortável. Pode ser ótimo, pode ser divertido, mas confortável não é. Porém, de nada adianta estar na melhor poltrona do teatro perfeito se o espetáculo não presta. Vamos acabar dando a qüinquagésima olhada no lustre para nos distrairmos. Aliás, era este o número de apresentações de O Vendedor de palavras, espetáculo de rua a que fui assistir no Parque Farroupilha.

Para mim, estar ao ar livre é sinônimo de liberdade. É verdade que, em Porto Alegre, não é difícil o clima não atrapalhar. Se não é a chuva, é um calor úmido bem desagradável. Pior ainda para os atores que, até o último minuto, não sabem se vai ser possível apresentar o espetáculo. Mas eles estavam lá. E, diferente do que eu imaginara, com cenário a ser montado. Poucas coisas, mas com uma característica que eu aprecio muito: objetos que se transformam em outros. Então, em poucos minutos, estávamos olhando para uma estante cheia de livros que iria se transformar em um píer. Outros pequenos detalhes e as cenas estavam completas.

O nome do espetáculo, para mim que sou jornalista, já me atraia muito. Atiçava minha curiosidade. Haveria um jeito de pagar minhas dívidas só com palavras? Não precisaria ser contratada por uma grande empresa? Ser escritora? Bem, teria que pagar para ver, quer dizer, neste caso, só ficar para ver já que não cobravam nada. A peça é baseada na crônica de Fábio Reynol, jornalista também. Provavelmente por isso eu tenha gostado da idéia.


Levei o afilhado de minha irmã comigo. Ele não tem ainda o hábito de ver teatro, então, me perguntou quando começaria o show. Eu expliquei que não era um show. Que era um espetáculo. Uma palavra que também serve para show. Mas que nós íamos ver uma peça. É... Usar as palavras não é assim tão fácil. Ainda mais quando, logo no início, um dos atores fala justamente que vai fazer um “show de teatro”. Fui desmentida.

O Vendedor de palavras começa com certa improvisação, chamando o público com música. Uma melodia agradável e comunicativa. Aos poucos, vai sendo contada a história. Uma? Não, várias. A dos avós, a dos pais e a do menino protagonista e sua amada. Dois atores fazem todos os personagens: Carlos Alexandre e Fernanda Beppler. E é um prazer ver que nenhum se destaca. Ambos são ótimos em cena. Confesso que me divirto muito com o sotaque alemão da Fernanda. Com certeza, não é fácil manter esta fala diferenciada de um jeito tão bem feito, ainda mais quando se faz mais de um personagem. Já conhecia Carlos Alexandre da Comédia dos Erros, então, quando o vi, sabia o que podia esperar. Seus personagens são carismáticos e convincentes. Desculpem. Não sei falar de atuação sem usar adjetivos. Talvez, se eu pudesse comprar algumas palavras... Pronto! Nem achei clientela para vender as minhas e já estou pensando em comprar! Era só no que eu pensava quando começaram a oferecer o significado de “histriônico” a cinqüenta centavos. Claro que eu queria. Ainda bem que, lá pelas tantas do espetáculo, a palavra foi revelada. Por isso, passo adiante também de graça. Histriônico é engraçadinho!

As mudanças de figurino acontecem diante de nós. Nem por isso, eles deixam de nos convencer. Ao contrário, todos os personagens estão definidos. São divertidos e inteligentes. Preciso dizer que adoro esta combinação. Algo que faça rir e pensar ao mesmo tempo. Não é perfeito? E é justamente o que fazem algumas falas como: “Por que eu sozinho vou ler para o mundo se o mundo inteiro pode ler sozinho?”

A coordenadora do Instituto Estadual de Artes cênicas, Rosa Campus Velho, estava lá e agüentou firme os 40 minutos de espetáculo. Espero que ela tenha achado que valia a pena. Eu saí com uma palavra a mais e com certeza muito mais pensamentos. Bom, acho que devo dizer que histriônico pode ser também bobo, ridículo, comediante, charlatão...Desta vez, vou doar as minhas palavras, mas na próxima...

O vendedor de palavras é o primeiro espetáculo do Grupo Mototóti e foi contemplado com o Prêmio FUNARTE de Teatro Myriam Muniz 2008 – Ministério da Cultura.

* Crítica publicada no blog Palcos da Vida.

*

Concepção e Atuação: Carlos Alexandre e Fernanda Beppler
Direção: Arlete Cunha
Dramaturgia: Rodrigo Monteiro
Trilha Sonora Original: Fernanda Beppler
Cenografia: O Grupo com a colaboração de Zoé Degani
Máscaras e Boneco - criação e confecção: Paulo Martins Fontes e Eduardo Custódio - Cia Gente Falante Teatro de Bonecos
Figurinos: Coca Serpa
Desing Gráfico: Carlos Alexandre
Produção e Realização: Grupo Mototóti

19 de nov. de 2009

Lady Day


Foto: La Photo

Sapatos na porta

Eu gosto de teatro por causa de sensações como a que vivencio ao assistir espetáculos como “Lady Day”.

****

Outro dia estava lendo sobre o costume oriental de tirar os sapatos antes de se entrar na casa alheia. Lembro que, quando me mudei para o Rio Grande do Sul, achava muito interessante os sapatos do lado de fora da porta, deixados por quem não queria manchar os pisos encerados das casas de madeira. Várias famílias de colegas meus mantinham pares de feltros a disposição dos visitantes para que andassem de meias sem sujá-las. Eu e minha mãe, paulistas, resistíamos a esse hábito: nossa casa é toda com piso de cerâmica. Mas dizia o texto que o costume de entrar descalço é um sinal de aceite da hospitalidade. É dizer “É com muito respeito que eu piso descalço nesse chão que foi limpo para me receber”. O anfitrião oferece. Com humildade, o visitante usufrui.

Melissa Arievo não só entra descalça no piso vermelho do cenário, mas joga-se nele. Serve-se dele. Com muito respeito, usufrui. Vestimos uma roupa legal, nos dirigimos ao teatro, sentamos e esperamos a luz apagar. Limpamos a casa, enceramos o chão. Ela é bem-vinda.

Interessante, e difícil, reconhecer como se dá a construção dessa relação com a atriz. Geralmente, são os atores que preparam o teatro para o público. De alguma forma, os espectadores é que se sentem bem vindos. Em “Lady Day”, fico pensando naquilo que faz com que a tradição se inverta. Talvez porque Melissa Arievo seja uma atriz jovem com uma força que me faz lembrar (e muito) de Evelyn Ligocki em “Borboletas de Sol de Asas Magoadas”. Talvez porque seja negra, como Billie Holiday. Talvez porque seja linda e provida de uma voz também naturalmente linda e tecnicamente bela. Talvez porque “Lady Day” seja um monólogo e todos sabemos da dificuldade que é fazer (bem) um. Na mesma busca, fico me perguntando se não será pelo vermelho do palco, pela música, pelo espaço que já é aconchegantemente livre, libertador e libertário. O bom de escrever uma crítica é o desafio de, na busca aos porquês, chegar perto do prazer vivido como forma de pedir que fique mais um pouco.

A dramaturgia começa por uma não-dramaturgia, se é que isso é possível sob um refletor. Melissa se apresenta e nos toca pela relação dela com a personagem. Então, abaixa-se e, ao subir, estamos com Billie Holiday (1915-1959), ou Lady Day, a maior cantora de jazz da história. Com isso, entendemos que não importa se Melissa não tenha a idade de Billie, se conserve suas próprias reações (sorriso largo, olhos ágeis, corpo ereto) não se mascarando com supostos movimentos colhidos em vídeos tardios da cantora personagem, ou se nunca tenha sido mãe, não seja cantora profissional e nunca tenha sentido preconceito. O que vale é que, em retribuição à acolhida, Arievo nos faz conhecer sua relação de amizade com essa senhora, cujo nome verdadeiro nem se conhece. Amizade sua, mas também da equipe, essa brilhantemente dirigida por Marco Mafra: mão forte em acariciar cada cena desse monólogo tão repleto de boas qualidades. Como quem não se sente dado à falta de hospitalidade, recebemos o que a visitante nos traz com um sorriso e outras provas de efeto. Gratos pela visita e, depois, pelo que isso nos trouxe.

Figurino e luz solicitam nossa abertura de olhos a fim de registrar o momento, mas é na ação que se encontra o teatro. Vestir-se, cantar, sentar e fumar são gestos cuja mediocridade foi muito bem escondida pelo grupo. É com dor que Melissa se desveste, é com prazer que ela se senta e seu fumar num contra-luz laranja surpreende, ratifica, e concorda como se não houvesse aí uma contradição. Todos os usos são ricos e potentes.

Em se tratando de um monólogo sobre uma cantora da primeira metade do século XX, era de se supor que o microfone antigo exposto desde o início fosse cansativamente usado. Não é. O detalhe é que cada signo teatral é resgatado apenas num único momento, naquele que é seu. É nesse sentido que se encontra a carícia do diretor, o valor da dramaturgia, a inteligência dessa equipe. Se por aí dizem que são fracos os sensíveis, há que se forte para manipular os sentimentos próprios e, quem sabe, os alheios.

Mas por mais que eu tenha me empenhado em pedir que Melissa e Billie fiquem um pouco mais, a luz se apaga. Seus sapatos estão na porta. E ela se vai.

*

Direção: Marco Mafra
Atuação: Melissa Arievo
Iluminação: Mariana Terra

Concepção Sonora: André Paz
Maquiagem: Sibele Garroni
Fotos: Studio La Photo - Produção Ângela Martins
Produção: Marco Mafra e Melissa Arievo

15 de nov. de 2009

A Serpente

Foto: Marcos Castelan

Imagem e semelhança



Quando escrevi a crítica de “Apareceu a Margarida”, ainda não sabia que tantos outros textos viriam pela frente. Para cada texto, tinha a intenção de fazer uma experiência com o formato: um era uma carta, um era uma receita médica, outro uma lista de compras, um sem início nem fim, outro sem lógica. No caso desse espetáculo anterior do Teatrofídico, escrevi em rubricas as reais intenções e em caixa normal as falsas. Aquela montagem me pareceu muito interessante pela força que foram dadas às intenções, aos significados submersos. Enfim, a repercussão do texto me mostrou que minha tentativa foi um fracasso. E quem põe um texto na roda (ou uma peça no palco) está sujeito a não ser compreendido e receber puxões de orelha como os que levei. Merecidíssimos diga-se!

O mesmo vou tentar não repetir agora, indo direto ao ponto: a análise do espetáculo “A serpente” (1978), última peça de Nelson Rodrigues (1912 – 1980) e mais nova produção do Teatrofídico, direção de Eduardo Kraemer, comemorando os seis anos do grupo.

Não acho que exista receita pronta para teatro, nem para arte alguma. Pelo contrário, me aventuro a dizer que marca a contemporaneidade a hibridização, a relação entre sistemas diversos, os filtros estéticos que iluminam pontos de vistas antes não descobertos em posições tradicionais. Mas, pelo que estudo, estou convencido de que todos os signos se estabelecem através de sistemas. Sistemas amplos, mas não infinitos. Ou seja, existem limites, esses estabelecidos por quem propõe o signo, que é quem o percebe. E repito o já várias vezes dito (e copiado de Luiz Arthur Nunes): Nelson Rodrigues escreve realismo psicológico em narrativa melodramática.

Foi ótimo, dando um jeito de começar, ver que Kraemer não esqueceu do realismo psicológico ficando só no melodrama como faz a maioria que tenho visto por aqui. Colocou a platéia em diagonal, no centro do espaço, cadeiras viradas para os janelões do Guaíba. Sem caras e bocas, nem desenhos muito marcados, “A Serpente” é apresentada através de diálogos antes consigo mesmos e, depois, entre dois personagens. Há a intenção do minimalismo realista, embora a imensa quantidade de simulacros atrapalhe a nossa percepção sobre essa marca rodrigueana. Ágata Baú, que interpreta Lígia, é a que melhor consegue driblar a enxurrada de informações (mal) dispostas por Kraemer e nos lembrar que sua personagem, o similar de Eva na trama, é feita para ser a nossa imagem e semelhança, também a imagem e semelhança de Deus. Nisso consiste o realismo: o paralelo entre o fora da narrativa e o dentro dela é muito estreito.

Qual é a narrativa? Adão e Eva só brincam no paraíso e ela está entediada disso. Reclama para a Serpente que lhe apresenta a árvore do fruto proibido, o pecado, aquele que é capaz de fazê-la compreender sobre a vida e a morte. Eva come a maçã e já não é mais a mesma que era quando Adão a deixou para conhecer melhor o Éden. Adão volta, mas, coadjuvante que é nessa história, não muda o destino traçado: a expulsão do paraíso. A Serpente é jogada terra abaixo, o inferno. E, como Moisés, na abertura do Pentateuco, Nelson Rodrigues faz crer que essa história é a nossa história. Eu, bem admoestado que sou, é que não vou dizer que não.

Kraemer, com alguns momentos de exceção, diz que não. O realismo se afasta do olho da platéia toda vez que: a) as músicas (num volume absurdamente alto) gritam muito mais que a história: Madonna, Mozart, Elza Soares... ; b) a paleta de cores se define: usar tudo da mesma cor é, quase sempre, um recurso muito pobre de unidade estética. Rico só quando bem justificado, o que não é o caso; c) não há variações de intensidade: a peça começa “lá em cima” e passa-se todo o tempo se esforçando para o ritmo sustentar essa coragem. Exausto, o ritmo cai. Nós também.

Renato Del Campão, que interpreta Paulo, nem de longe alcança a excelência obtida em "Apareceu a Margarida", do mesmo diretor, no mesmo grupo. Sua voz está extremamente alta e quase não conseguimos ouvir os outros atores, sobretudo Maiquel Klein (Décio), cuja dicção nos impede de compreender o pouco que dele conseguimos ouvir. Campão ainda põe em cena uma energia que seria vibrante num monólogo, mas que é irritante numa contracenação: puxa o foco o tempo inteiro, protagoniza até mesmo nas cenas em que seu personagem não aparece. Vestido com um figurino vários tamanhos maiores que o necessário, sua construção é muito efeminada em algumas cenas e pouco efeminada em outras. Paulo, cuja masculinidade é fundamental, não convence como aquele cunhado que é oferecido à irmã da esposa.

De um modo geral, destacam-se positivamente as cenas entre Ágata Baú (Lígia) e Rejane Meneghetti (Guida). São os momentos em que melhor conseguimos respirar e fruir o que a narrativa tem pra dizer. Tanto uma como a outra segue, admoestadas (e boas!) que são, as indicações da concepção, mas, conscientes de que são as protagonistas, permitem que a história aja nelas. E aí que se vê a psicologia que define o realismo deste dramaturgo muito mais essencial, a meu ver, que Moisés.

Não poderia encerrar, quem sabe, o texto mais direto que já escrevi nesse espaço sem elogiar a sequência de revisão, em que os quatro atores recuperam mais que uma vez toda a cronologia do espetáculo, marcando o caráter orgânico que Rodrigues destacou na estréia deste único texto-ato pouco antes de falecer. Se depois de provar do pecado, Lígia pode entender de vida como também entendia de morte, passou a ser inteira, plena, ironicamente imagem e semelhança de Deus. Finalmente.

1 de nov. de 2009

O diário do desassossego


foto: divulgação


Cuido e descuido

Numa carta à Jaqueline Cantore, Caio Fernando Abreu, escreveu:

"Amor não resiste a tudo, não. Amor é jardim. Amor enche de erva daninha. Amizade também, todas as formas de amor."

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Se o universo é uma balança, gosto de pensar que o homem é só um dos pratos e, por isso, desequilibrado. Estando no alto ou no baixo, a corrente de acontecimentos e existências sempre se encarregam de contrabalançar e nos manter, assim, no prumo. A mim, “O diário do desassossego” tratou com movimentos do movimento de subida e descida do prato que somos nós. Não se trata de ir pro lado, pra frente ou pra trás: vai-se apenas pra cima, vai-se pra baixo, fica-se no equilíbrio central. Nada de evolução, mas de experimentação. O solo inicial de Giuli Lacorte, de quem não se consegue retirar os olhos, tão intenso, tão capaz de prender nossa atenção, surpreendentemente vivo, pode ser considerado como alto ou baixo, mas, com certeza, e unanimemente, não no centro. Quem cujo trabalho corporal inicia o espetáculo de dança mais nobre a que assisti nesse ano cheio de tantas produções gaúchas me faz acreditar ser a tradução do próprio desassossego, o protagonista dessa história recém começada.

Se voltarmos, no entanto, ao sentimento de que realmente não há criatividade no universo e tudo só se trata mesmo de balançar e contrabalançar, equilibrar-se e desequilibrar-se, podemos pensar que Lacorte não inicia a história, mas termina um processo, um ciclo anterior que precisou terminar para outro acontecer. Outro com novidades, novas sensações, novos personagens, vozes, palavras. Lendo sobre a peça para escrever esse texto, descobri a inspiração em Fernando Pessoa e cheguei a pensar que as palavras ditas e o movimento com os livros, assim como o diálogo com os ursinhos, são tentativas de referenciação à obra poética do autor português. Na platéia, ainda bem, o uso desses objetos só me pareceram dizer que aquilo era pra ser algo. E algo outro que, de repente, não se tinha visto, não se tinha aproximado. Eram símbolos da busca pelo sossego, antagonista das cenas. O equilibrado sossego vai aparecendo aos poucos na medida em que o desa rareia. Mariano Neto, cujos movimentos são precisos e belos, engrandecendo ainda mais a obra dirigida por Ivan Motta, junto com outros personagens, constrói, sob uma luz muito pontual, o ritmo desse novo processo. Letícia Paranhos e Didi Pedone, em separado, me fazem ver o alcance do objetivo, esse, de forma muito interessante, observado, medido, invejado talvez por olhos mais experientes. No palco, esses olhos perscrutadores somos nós com o privilégio de sentir de perto o calor dos corpos que vibram ao som da música, embaixo de roupas elásticas. Ivan Motta, e a Companhia H, esquematiza cada milímetro desse aproximar do equilíbrio como um movimento cheio de rimas, sílabas que se aproximam, mas não se repetem. Sem pensar naquilo que inspirou a Companhia H, senti o “Diário” como o registro de uma trajetória. E não era mesmo isso?

Talvez porque não goste de ausência de conflitos, senti o ritmo cair com o estabelecimento de coreografias que me levaram a sentir a tranqüilidade: Paranhos e Roberto Volkmann. Mas o processo é pulsante e Lacorte reaparece porque esse ciclo também está para encerrar. Afinal, outro precisa começar e o sossego é tão importante quanto desassossego, ambos apenas momentos.

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Você não consegue parar de sofrer quando vê, pela janela, a roseira presente do seu antigo amor. E não tem forças para ir até ela e cortá-la para sempre. Então, descobre a cortina e simplesmente a fecha. Sem o olhar do dono, crescem ervas daninhas em volta da roseira. Cresce. Cresce. Cresce. Um dia, já mais forte, você toma coragem e abre novamente a cortina. O mato tomou conta. A roseira desapareceu. Você não sabe se ela morreu, se ela está florida, se ainda está lá. Você apenas não a vê mais e respira aliviado. Antes de se afastar da janela, porém, seus olhos baixam.

Não é que flores do campo nascem em campos descuidados?


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FICHA TÉCNICA

Direção e Coreografia: Ivan Motta

Elenco:
Didi Pedone
Cristiano Carvalho
Giuli Lacorte
Roberto Volkmann
Mariano Neto
Rossana Scorza
Letícia Paranhos

Produção geral - Companhia H
Assistente de produção - Luka Ibarra
Projeto Gráfico - Agência de Arte
Iluminação - Taylor Araújo
Figurinos - Atelier Alfa

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