1 de nov. de 2009

O diário do desassossego


foto: divulgação


Cuido e descuido

Numa carta à Jaqueline Cantore, Caio Fernando Abreu, escreveu:

"Amor não resiste a tudo, não. Amor é jardim. Amor enche de erva daninha. Amizade também, todas as formas de amor."

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Se o universo é uma balança, gosto de pensar que o homem é só um dos pratos e, por isso, desequilibrado. Estando no alto ou no baixo, a corrente de acontecimentos e existências sempre se encarregam de contrabalançar e nos manter, assim, no prumo. A mim, “O diário do desassossego” tratou com movimentos do movimento de subida e descida do prato que somos nós. Não se trata de ir pro lado, pra frente ou pra trás: vai-se apenas pra cima, vai-se pra baixo, fica-se no equilíbrio central. Nada de evolução, mas de experimentação. O solo inicial de Giuli Lacorte, de quem não se consegue retirar os olhos, tão intenso, tão capaz de prender nossa atenção, surpreendentemente vivo, pode ser considerado como alto ou baixo, mas, com certeza, e unanimemente, não no centro. Quem cujo trabalho corporal inicia o espetáculo de dança mais nobre a que assisti nesse ano cheio de tantas produções gaúchas me faz acreditar ser a tradução do próprio desassossego, o protagonista dessa história recém começada.

Se voltarmos, no entanto, ao sentimento de que realmente não há criatividade no universo e tudo só se trata mesmo de balançar e contrabalançar, equilibrar-se e desequilibrar-se, podemos pensar que Lacorte não inicia a história, mas termina um processo, um ciclo anterior que precisou terminar para outro acontecer. Outro com novidades, novas sensações, novos personagens, vozes, palavras. Lendo sobre a peça para escrever esse texto, descobri a inspiração em Fernando Pessoa e cheguei a pensar que as palavras ditas e o movimento com os livros, assim como o diálogo com os ursinhos, são tentativas de referenciação à obra poética do autor português. Na platéia, ainda bem, o uso desses objetos só me pareceram dizer que aquilo era pra ser algo. E algo outro que, de repente, não se tinha visto, não se tinha aproximado. Eram símbolos da busca pelo sossego, antagonista das cenas. O equilibrado sossego vai aparecendo aos poucos na medida em que o desa rareia. Mariano Neto, cujos movimentos são precisos e belos, engrandecendo ainda mais a obra dirigida por Ivan Motta, junto com outros personagens, constrói, sob uma luz muito pontual, o ritmo desse novo processo. Letícia Paranhos e Didi Pedone, em separado, me fazem ver o alcance do objetivo, esse, de forma muito interessante, observado, medido, invejado talvez por olhos mais experientes. No palco, esses olhos perscrutadores somos nós com o privilégio de sentir de perto o calor dos corpos que vibram ao som da música, embaixo de roupas elásticas. Ivan Motta, e a Companhia H, esquematiza cada milímetro desse aproximar do equilíbrio como um movimento cheio de rimas, sílabas que se aproximam, mas não se repetem. Sem pensar naquilo que inspirou a Companhia H, senti o “Diário” como o registro de uma trajetória. E não era mesmo isso?

Talvez porque não goste de ausência de conflitos, senti o ritmo cair com o estabelecimento de coreografias que me levaram a sentir a tranqüilidade: Paranhos e Roberto Volkmann. Mas o processo é pulsante e Lacorte reaparece porque esse ciclo também está para encerrar. Afinal, outro precisa começar e o sossego é tão importante quanto desassossego, ambos apenas momentos.

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Você não consegue parar de sofrer quando vê, pela janela, a roseira presente do seu antigo amor. E não tem forças para ir até ela e cortá-la para sempre. Então, descobre a cortina e simplesmente a fecha. Sem o olhar do dono, crescem ervas daninhas em volta da roseira. Cresce. Cresce. Cresce. Um dia, já mais forte, você toma coragem e abre novamente a cortina. O mato tomou conta. A roseira desapareceu. Você não sabe se ela morreu, se ela está florida, se ainda está lá. Você apenas não a vê mais e respira aliviado. Antes de se afastar da janela, porém, seus olhos baixam.

Não é que flores do campo nascem em campos descuidados?


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FICHA TÉCNICA

Direção e Coreografia: Ivan Motta

Elenco:
Didi Pedone
Cristiano Carvalho
Giuli Lacorte
Roberto Volkmann
Mariano Neto
Rossana Scorza
Letícia Paranhos

Produção geral - Companhia H
Assistente de produção - Luka Ibarra
Projeto Gráfico - Agência de Arte
Iluminação - Taylor Araújo
Figurinos - Atelier Alfa

1 Comentário:

margarida leoni peixoto disse...

oi Rodrigo, que linda, delicada e poética a tua análise sobre o epetáculo. Ela cria um desejo imediato de assistir o espetáculo.
Beijocas e até qualquer hora. Por aí.
Margarida leoni peixoto

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