26 de out. de 2009

Filhote de cruz credo

foto: Marcelo Nunez

Cruz credo!


Meu nome não é Fabrício, mas é Rodrigo. Quanto à beleza, a única coisa que me faz lembrar com prazer da minha infância é de que ela já passou e hoje eu sou menos feio do que era quando criança. Tive, além e por causa disso, dezenas de apelidos. Quando bem pequeno, morava na Paulista e estudava no Ibirapuera, ou seja, nem um pouco perto de nenhum coleguinha/amigo meu. Depois, fui morar na Represa do Guarapiranga, na saída de São Paulo, mais longe ainda de tudo e de todos, o que me fez crescer bastante sozinho. Quando achei que teria vida social, minha família me trouxe para o interior de Gravataí. Tudo ótimo, não fosse o fato de que o único esporte que eu praticava bem dependia de uma piscina que só fui ter dois anos depois no fundo do pátio. Sempre odiei futebol e sempre gostei de ler e de assistir a “teatrinho” e era, nos finais de semana, coroinha na igreja do bairro. Tudo isso junto às minhas excelentes notas no colégio não faziam de mim um cara muito popular... O pior mesmo era o sotaque, pelo qual levava tapas dos meus meio-irmãos sempre que eles vinham me visitar. Enfim, achei que ia gostar muito de “Filhote de cruz credo”, direção de Bob Bahlis, por ser potencialmente um espetáculo que me faria lembrar dos dissabores da infância que graças a deus já passou. Mas não foi o caso.

Me tornei professor aos dezessete anos e, até os vinte e cinco, sempre dei aula para crianças do pré à quarta série, além dos maiores algumas vezes. Considerando o fato de fazer trinta em janeiro, esse período não é muito distante de agora. E fiquei assustado com a imagem que o grupo apresenta da infância. Espetáculo infantil, de um modo geral, é sempre bastante complicado como conversávamos no interessantíssimo Bate Papo com Orlando Miranda no Teatro São Pedro, que infelizmente teve um público bastante reduzido. O problema maior dessas concepções é que são embasadas sempre numa criança imaginária. A criança é, sem exceção, uma construção de um adulto. Fica-se sempre no tentar imaginar como uma criança veria a obra. O mesmo não acontece com um espetáculo adulto, quando o grupo produz aquilo que quer e que gosta. Pois fiquei com medo da criança imaginária de Bahlis e seu grupo. Cruz credo!

O cerne do problema está no julgamento. A infância, mesmo que cada vez menor, sendo engolida pela adolescência como também tem sido a adultez, continua como sempre: desprovida de capacidade de julgar. A criança descobre, não julga. Ela experimenta, sente, vive. O adolescente de dez anos de hoje também não julga: ele forma grupo. O bullying, que é mais utilizado como chamariz pro espetáculo (mal comercial) do que proposta de reflexão, não acontece na infância como acontece entre os jovens. Uma criança não chama outra com apelidos ofensivos porque realmente acha o colega feio, efeminado, ou burro. Faz isso porque 1) quer saber (descobrir) como é a reação do outro e como ele mesmo reage ao pronunciar a ofensa; e 2) quer acompanhar os demais colegas, formar grupo, assumir a liderança. Não se trata de maldade, porque também não se trata de bondade. Um aluno das séries iniciais não traz maçãs e flores para o professor porque é querido e bonzinho. Não elogia ninguém para agradar. Assim, como não é mal, também não é bom. É apenas criança.

A paleta de cores é horrivelmente escura: cinza e preto até no vestido da professora. O irmão mais velho do protagonista, o personagem Rodrigo (Marcelo Naz) traz a camisa aberta até o meio do peito numa estética que é de terrível mal gosto. O mesmo se dá com o cenário que nunca se modifica composto de espelhos quebrados, com a trilha musical dublada pelos atores, e com a iluminação que muito mais prejudica do que ilumina.

Olhando para as interpretações, esquecendo por hora a dramaturgia, vamos encontrar, se fecharmos os ouvidos para a imensa e inútil quantidade de cacos inadequados enfiados no texto, construções superficiais que não chegam a desagradar. Fabrício e Alice (Guto Szuster e Rafaela Cassol) são os que obtém o melhor resultado pela força que têm seus personagens: o protagonista e a antagonista que, depois, vira musa. Ambos conquistam o público, o que não deixa de acontecer também com a mãe/ professora e com a narradora (Laura Medina e Daniele Fogliatto), o que é bastante bem-vindo e grato. Marcelo Naz, no entanto, presta um desserviço à obra, e ao teatro infantil, pelo excesso de ironia e histrionice.

O pior de tudo está no texto e na paupérrima construção coreográfica. Vi três meninas conversando sobre o espetáculo na saída e resolvi parar e apostar no que eu tinha percebido. Confirmei: não se entende, ou não se quer entender, a que o espetáculo vem. Refletiam as meninas: “a peça quer dizer que Fabrício se achava feio, mas que, no fundo, não é”. Errado, avalio eu, que perdôo as meninas por considerar difícil de aceitar a realidade. Na concepção dramatúrgica apresentada, Fabrício é mesmo feio, ele não só se acha. E essa é justamente a frase da última música do espetáculo: “Fabrício é feio!”

Sem pensar em Fabrício Carpinejar, autor do livro que foi inspiração para o espetáculo cênico e a forma como o poeta tratou sua própria infância na literatura (que eu não li e nem fiquei com vontade de ler), quero lembrar o que disse no início. A frase “Fabrício é feio!” só pode ser considerada em seu sentido denotativo como uma fala de adulto. Uma criança só é realmente feia aos olhos de quem tem senso crítico para julgar. Tanto a criança como o pré-adolescente, me repetindo, só usaria uma expressão como essa pela forma, pelo efeito e, impossivelmente, pelo conteúdo. Minha mãe gorda e o fusca do meu pai sempre, durante toda a minha infância, foram melhores do que qualquer mãe e qualquer carro de pai! Assim, “Filhote de cruz credo” teria outra recepção no horário da noite, entre os espetáculos adultos e longe dessa proposta dema-pedagógica que entristece, empobrece e prejudica o teatro infantil gaúcho.

E aqui estou falando de adulto para adultos.

De novo: cruz credo!

*

Ficha técnica:

Direção e adaptação: Bob Bahlis
Peça adaptada do livro de Fabrício Carpinejar: Filhote deCruz-Credo: A Triste Historia Alegre de Meus Apelidos

Elenco:
Gutto Szuster
Laura Medina
Daniele Fogliatto
Marcelo Naz
Rafaela Cassol

Direção Musical: Bruno Suman
Figurinos: Rô Cortinhas
Cenário: Marco Francoviaki
Produção: Beto Mônaco e Bob Bahlis
Iluminação: Marga Ferreira e Carol Zimerman


3 Comentários:

Platero disse...

Oi Rodrigo
Fiquei super a fim de ver depois de ler o que escreveste!!!
Mas só quero que penses numa cousa: talvez a concepção de infância (hj podemos pensar me muuuitas formas de se viver infânciaS) que tu estas levantando seja um pouco "romântica". Criança julga sim. Criança é/está boa ou má, sim. Não de forma imanente, transcendental, mas são formas de nos constituirmos socialmente.
Só para pensar!
Bjs e foi bom ler!!!

Anônimo disse...

Sim, concordo com o Platero que criança é boa/má. No entanto, o fato de discordar totalmente do Rodrigo, achei interessante argumentação. E, claro, fiquei com ainda mais vontade de assistir depois dessa crítica.

Rodrigo Monteiro disse...

O mais importante desse espaço é: ESTIMULAR PARA AS PESSOAS IREM AO TEATRO.

E o grupo dessa peça é muito sério, com profissionais que merecem platéias cheias!

Fico muuuito feliz com esses dois comentários.

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