Vestida do avesso
Café com a professora
Finalmente saio de uma peça de Pedro Delgado sem pensar: “Graças a Deus que terminou!” “Vestida do avesso” foi uma grande surpresa para mim e, tenho certeza (de que vai ser), para todo mundo que foi (for) aplaudir esse ator tão importante na nossa capital. Desde “A pior peça de teatro do mundo” (2002, Dir. P. R. Berton), o ator não aparecia tão bem num personagem: comedido e, ao mesmo tempo, rico, explorando sem pausa, e nos convidando para, um universo bastante profundo e complexo. Berna Herculine, quem conduz o monólogo, é uma professora transexual entre sessenta e setenta anos que recebe os pais de seus alunos para uma reunião crucial. Ao final, cafezinhos serão servidos.
O autor Pedro Delgado cria um ambiente que remete muito ao realismo psicológico de Edward Albee (A história do parque zoológico, Quem tem medo de Virgínia Woolf?, Três mulheres altas). Estamos, porque somos os pais dos alunos, vivendo uma situação cujo término depende apenas de que a porta se abra e fujamos dali. Não há nada que nos obrigue, ou que obrigue os personagens a participar, mas, mesmo assim, eles participam. Inexplicavelmente, os pais todos comparecem à reunião e, longe de haver uma pauta, ouve-se o desabafo da professora idosa entrecruzado por repetidas pausas para altas doses de comprimidos sem identificação. A noite avança.
O público, interlocutor de Herculine, é representado no palco por pequenos bonecos sentados em cadeiras. A professora nunca olha, nesse primeiro ato, para o público presente, mas para o boneco. E a interpretação de Delgado dá a ver uma personagem de alma extremamente tímida, reforçada por uma postura que não nos olha, mas encara quem nos representa. Suas mãos tremem, sua voz é baixa, seu corpo é lento. E o figurino grita. As cores fortes, a imensa quantidade de detalhes que não fazem ver um vestido virado do avesso (ainda bem!), como diz o título, mas tecidos que saem das roupas como se fugissem delas. As roupas e o cuidado com a maquiagem de Herculine faz o que ela não consegue fazer, mas que promete tentar na noite de hoje: falar sobre si. Felizmente longe do hasteamento das velhas bandeiras sociais de igualdade e de respeito às diferenças que caracterizam outros textos desse autor, “Vestida do avesso” não fala de qualquer transexual, de qualquer diferente. Na noite de hoje, estamos apenas com Herculine e só ela nos interessa. O seu discurso é terno e nos toca. Fale, professora.
Se o primeiro ambiente não é identificável, sobre o segundo somos informados de que é uma sala de aula. A sala de aula de nossos filhos, alunos de Herculine. Já não há bonecos que nos representam. Chegamos até aqui. Já conhecemos o passado e algumas das dores desse ser humano que nos tem algo a dizer e pelo qual esperamos. Já podemos nos olhar nos olhos. E ela nos olha. E nos mostra as janelas, narrando o que há lá fora. A iluminação pontual de Leandro Gass ratifica o ritmo onírico do texto de Delgado, interpretado pelo mesmo. O crescente se dá quase sem que notamos, de uma forma muito sutil e delicada, até que chegamos no final, mais do que previsto, mas nem um pouco tedioso. A mensagem está dada por Herculine. Podemos (?) ir embora e encarar novamente os filhos que deixamos a nos esperar. Todos eles terão uma nova professora a partir de amanhã. Mas terão novos pais?
A produção do Grupo de Teatro Cacimba, no entanto, carece de um diretor que esteja à altura desse texto e dessa interpretação de Delgado. Como diretor, Pedro errou em dois aspectos fundamentais: uso de elementos e cenografia. E, quando digo errou, uso, como parâmetro avaliativo, o que o próprio espetáculo oferece: uma obra teatral é sempre parâmetro único de si mesmo. O cenário e o uso que Delgado faz de vários signos teatrais são incoerentes com o texto, com o clima e com a interpretação.
Malas espalhadas pelo palco, mesa e cadeiras todas fortemente estilizadas a repetir as informações já dadas pelo figurino nada acrescentam ao universo proposto. Os usos também não. Colocar uma mala sobre a outra, mudar cadeiras de lugar, recriando ambientes e, sobretudo, fazer vir do alto um cabideiro nada discreto produz, no espectador, uma quantidade muito grande de impulsos significativos. As intenções fortes da dramaturgia se perdem no picadeiro em que se transforma o palco cada vez que algo sai do lugar e adquire, assim, nova função estética. A linguagem alternativa que se utiliza para os elementos cênicos não é a mesma utilizada na voz mestra de Herculine. A cena final, quase alegórica, também borra as cores sutis empregadas até então. Faltou limites a essa direção que poderia ter usado com sucesso um campo ao invés de se aventurar num segundo desnecessário.
Mas já está tarde e é hora de ir embora. O café estava, contudo, gostoso.
*
Ficha técnica
Texto e concepção: Pedro Delgado
Trilha sonora, Concepção e execução: Luis Eduardo Britto
Cenário: Pedro Delgado e Jorge Gil
Figurino: Maria Cristina Chika e Eloá Lacerda
Assistente de direção: Jorge Gil
Luz: criação e execução: Leandro Gass
Atuação e direção geral: Pedro Delgado
Produção: Reluz Produção e Marketing Cultural
Realização: Grupo de Teatro Cacimba
Finalmente saio de uma peça de Pedro Delgado sem pensar: “Graças a Deus que terminou!” “Vestida do avesso” foi uma grande surpresa para mim e, tenho certeza (de que vai ser), para todo mundo que foi (for) aplaudir esse ator tão importante na nossa capital. Desde “A pior peça de teatro do mundo” (2002, Dir. P. R. Berton), o ator não aparecia tão bem num personagem: comedido e, ao mesmo tempo, rico, explorando sem pausa, e nos convidando para, um universo bastante profundo e complexo. Berna Herculine, quem conduz o monólogo, é uma professora transexual entre sessenta e setenta anos que recebe os pais de seus alunos para uma reunião crucial. Ao final, cafezinhos serão servidos.
O autor Pedro Delgado cria um ambiente que remete muito ao realismo psicológico de Edward Albee (A história do parque zoológico, Quem tem medo de Virgínia Woolf?, Três mulheres altas). Estamos, porque somos os pais dos alunos, vivendo uma situação cujo término depende apenas de que a porta se abra e fujamos dali. Não há nada que nos obrigue, ou que obrigue os personagens a participar, mas, mesmo assim, eles participam. Inexplicavelmente, os pais todos comparecem à reunião e, longe de haver uma pauta, ouve-se o desabafo da professora idosa entrecruzado por repetidas pausas para altas doses de comprimidos sem identificação. A noite avança.
O público, interlocutor de Herculine, é representado no palco por pequenos bonecos sentados em cadeiras. A professora nunca olha, nesse primeiro ato, para o público presente, mas para o boneco. E a interpretação de Delgado dá a ver uma personagem de alma extremamente tímida, reforçada por uma postura que não nos olha, mas encara quem nos representa. Suas mãos tremem, sua voz é baixa, seu corpo é lento. E o figurino grita. As cores fortes, a imensa quantidade de detalhes que não fazem ver um vestido virado do avesso (ainda bem!), como diz o título, mas tecidos que saem das roupas como se fugissem delas. As roupas e o cuidado com a maquiagem de Herculine faz o que ela não consegue fazer, mas que promete tentar na noite de hoje: falar sobre si. Felizmente longe do hasteamento das velhas bandeiras sociais de igualdade e de respeito às diferenças que caracterizam outros textos desse autor, “Vestida do avesso” não fala de qualquer transexual, de qualquer diferente. Na noite de hoje, estamos apenas com Herculine e só ela nos interessa. O seu discurso é terno e nos toca. Fale, professora.
Se o primeiro ambiente não é identificável, sobre o segundo somos informados de que é uma sala de aula. A sala de aula de nossos filhos, alunos de Herculine. Já não há bonecos que nos representam. Chegamos até aqui. Já conhecemos o passado e algumas das dores desse ser humano que nos tem algo a dizer e pelo qual esperamos. Já podemos nos olhar nos olhos. E ela nos olha. E nos mostra as janelas, narrando o que há lá fora. A iluminação pontual de Leandro Gass ratifica o ritmo onírico do texto de Delgado, interpretado pelo mesmo. O crescente se dá quase sem que notamos, de uma forma muito sutil e delicada, até que chegamos no final, mais do que previsto, mas nem um pouco tedioso. A mensagem está dada por Herculine. Podemos (?) ir embora e encarar novamente os filhos que deixamos a nos esperar. Todos eles terão uma nova professora a partir de amanhã. Mas terão novos pais?
A produção do Grupo de Teatro Cacimba, no entanto, carece de um diretor que esteja à altura desse texto e dessa interpretação de Delgado. Como diretor, Pedro errou em dois aspectos fundamentais: uso de elementos e cenografia. E, quando digo errou, uso, como parâmetro avaliativo, o que o próprio espetáculo oferece: uma obra teatral é sempre parâmetro único de si mesmo. O cenário e o uso que Delgado faz de vários signos teatrais são incoerentes com o texto, com o clima e com a interpretação.
Malas espalhadas pelo palco, mesa e cadeiras todas fortemente estilizadas a repetir as informações já dadas pelo figurino nada acrescentam ao universo proposto. Os usos também não. Colocar uma mala sobre a outra, mudar cadeiras de lugar, recriando ambientes e, sobretudo, fazer vir do alto um cabideiro nada discreto produz, no espectador, uma quantidade muito grande de impulsos significativos. As intenções fortes da dramaturgia se perdem no picadeiro em que se transforma o palco cada vez que algo sai do lugar e adquire, assim, nova função estética. A linguagem alternativa que se utiliza para os elementos cênicos não é a mesma utilizada na voz mestra de Herculine. A cena final, quase alegórica, também borra as cores sutis empregadas até então. Faltou limites a essa direção que poderia ter usado com sucesso um campo ao invés de se aventurar num segundo desnecessário.
Mas já está tarde e é hora de ir embora. O café estava, contudo, gostoso.
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Ficha técnica
Texto e concepção: Pedro Delgado
Trilha sonora, Concepção e execução: Luis Eduardo Britto
Cenário: Pedro Delgado e Jorge Gil
Figurino: Maria Cristina Chika e Eloá Lacerda
Assistente de direção: Jorge Gil
Luz: criação e execução: Leandro Gass
Atuação e direção geral: Pedro Delgado
Produção: Reluz Produção e Marketing Cultural
Realização: Grupo de Teatro Cacimba
3 Comentários:
A tua crítica é quase uma parapsicologia.
Bjs!
Jeffie
Rodrigo, apesar de tu citares o Correio do Povo, o jornal está errado. A peça que Pedro fez em 2002, com direção do P. R. Berton, chamava-se "A pior peça DE TEATRO do mundo". Sei com certeza porque o projeto de montar esse texto de John von Düffel surgiu em 1998, dentro do DAD, e eu fazia parte do elenco. Naquela ocasião a montagem não saiu, só quatro anos depois.
Sua critica nos faz viajar pelo unverso maravilhoso da arte de atuar.
Bjks
Daniela Lima
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