22 de abr. de 2011

A Paixão de Cristo (Gravataí)


Quando um ótimo espetáculo é motivo de vergonha para os governantes de uma cidade

 
Parece contraditório, mas não é. O povo da cidade de Gravataí não tem que se orgulhar do excelente espetáculo A Paixão de Cristo, mas se envergonhar, ao contrário do que disse o Diretor Presidente da Fundação Municipal de Arte Cultura, Sr. Amon da Costa, ontem ao final da última apresentação do ano. Em 1999, quando a Prefeitura Municipal, através da FUNDARC, garantiu a primeira produção da peça pela Cia. De Atores Independentes, “A Paixão de Cristo” era o primeiro espetáculo profissional produzido na história da cidade (nove anos mais velha que Porto Alegre). Hoje, na Páscoa de 2011, é o único espetáculo teatral (quem dera só profissional). Eis o motivo da vergonha.

A produção conta com 67 atores, figurinistas, cenógrafos, iluminadores, técnicos de áudio, projecionistas, cinegrafistas, profissionais de segurança, divulgadores, maquiadores, cabelereiros, coreógrafos e, o mais importante, cachês para movimentar todo esse grupo. O resultado não poderia ser outro: para o deleite de seis mil espectadores em três dias (número divulgado pelo referido Diretor-Presidente), um grande espetáculo com grandes interpretações, cenas bastante bem desenvolvidas, apelo visual, vibração. O diretor e dramaturgo Daniel Assunção, com maestria, leva a público um espetáculo que agrada grandes e pequenos, jovens e velhos, mais e menos intelectualizados. As cenas de luta do bem (branco) contra o mal (preto) atendem a uma parcela da audiência que não perde cada detalhe da coreografia de Saionara Sosa. O discurso socialista/comunista de Jesus no julgamento é direcionado a quem, de forma consciente, discute política, acompanha os movimentos sociais e viu o desaparecimento total da fraca e desorganizada oposição ao Partido dos Trabalhadores, esse, nos últimos quatorze anos, na liderança do governo da Cidade. Em 1999, no terceiro ano da administração do PT, Jesus puxava a orelha dos ex-prefeitos por não ter feito nas décadas anteriores o que Daniel Bordignon, prefeito então, havia feito em vinte e seis meses. Em 2011, as palavras soam irônicas, como também assim parecem os caros, bonitos e eficientes outdoors de divulgação do espetáculo espalhados pela cidade, o ritmo perfeito da sincronia dos diálogos ditos em cena, mas escutados pelo imenso público via playback, e a marcada movimentação do grande elenco pelo espaço e pelo suceder das cenas organizadas num misto de palco italiano com galeria, que impressiona ainda mais o público nas cenas da Santa Ceia e da Via Sacra. Tudo isso agrada artificialmente, mas incomoda quem lembra que, após o Domingo de Páscoa, vem uma segunda-feira qualquer. Para onde vão todos esses artistas quando findar a Semana Santa?

No elenco, vários rostos conhecidos. Artistas órfãos do Festival de Teatro Estudantil, do Festival Estadual e Municipal de Esquetes, do Prêmio de Incentivo à Cultura Cênica, das Oficinas da Descentralização, do Cine-Teatro Municipal, fechado há três anos. Há uma década, reclamávamos da ausência de política cultural cênica verdadeira que substituísse um cronograma de festivais e eventos que não estimulavam o desenvolvimento da arte cênica como processo e só valorizava o produto. O discurso era contra meses de ensaio para espetáculos que só se apresentavam em festivais e não cumpriam temporada por falta de espaço, de apoio e de incentivo, à guisa de eventos como o Rodeio do Mercosul e o Carnaval que, embora não precisassem de apoio público por sua capacidade de viabilização pelo setor privado, roubavam grossas fatias da verba anual da cultura. Hoje, a cidade se envergonha pelo total desmantelamento de todos os projetos culturais. Em termos de Artes Cênicas, meu assunto aqui, que o Deputado Estadual Daniel Bordignon e Sérgio Stasinski (ex-prefeitos petistas), mas principalmente Rita Sanco (a atual prefeita petista) se envergonhe porque as duas únicas iniciativas nesse sentido são do SESC (Serviço Social do Comércio, entidade mantida por empresários do comércio de bens e serviços) e do Grupo Vivências, o Grupo de Teatro da Terceira Idade que mais se apresenta no Estado há dezesseis anos e que, inacreditavelmente, precisa se ajoelhar para conseguir, lá de vez em quando, um ônibus que leve as senhoras atrizes (algumas com mais de setenta anos) para alguma apresentação mais distante. De forma individual, com produções esparsas e modestas, o ator Paulo Adriane e o professor Flávio de Ávila são os últimos remanescentes de um movimento artístico que, organizado em até mesmo uma Associação de Artistas Cênicos de Gravataí, viu um novo milênio nascer dividido em dez grupos locais atuantes e comprometidos, mas que, ao final da primeira década do mesmo milênio, não tem, que absurdo, alguém que responda pela pasta da Coordenação de Artes Cênicas. Sem dúvida, a conclusão é uma só: no seu quarto mandato consecutivo, sabemos que o PT é o pior inimigo de si mesmo.

Como aconteceu em Porto Alegre, e eu realmente espero que não aconteça no Brasil, quando o Partido dos Trabalhadores pega gosto pela governança, os problemas se multiplicam. O melhor secretário de educação que Gravataí já teve (Valter Amaral) é substituído por uma inexperiente diretora de escola (Romi Leffa Cardoso) por ser da mesma facção partidária do prefeito (Daniel Bordignon). Vice-prefeitos (Sérgio Stasinski) surgem do nada e se tornam prefeitos, conselheiros e chefes de gabinete sem nenhuma ideologia passam a dar ordens, a Fundação Municipal de Arte e Cultura passa a ser presidida por filhos de apoiadores políticos, sem qualquer outro motivo para o cargo (Daledier Ferreira, ex-diretor, é filho da vereadora Tania Ferreira. Amon Costa, o atual diretor, é filho de Rose Mary Freitas da Silva, coordenadora regional da 28ª CRE). Competência fica em terceiro plano quando o primeiro é manutenção do poder político a qualquer preço. O caos se instala numa administração em que tudo vale, menos deixar de brilhar a estrela. Gravataí que, da noite para o dia, se tornou capital das Bromélias (sem nunca ninguém ter visto uma bromélia que seja até esse dia), pode estar de parabéns pelos três dias de apresentação do valoroso espetáculo A Paixão de Cristo. Mas há que enrubescer pelo fato de que, nesses onze anos, desde a primeira edição da peça até agora, o seu sucesso artístico e social não se repita horizontal (nas várias regiões da cidade) e verticalmente (nos doze meses de cada ano) para a população que paga altíssimos impostos, a passagem de ônibus mais cara da região metropolitana e sustenta o título de uma das cidades mais violentas do estado.

Aos artistas cênicos de Gravataí, fica a lembrança dos primeiros anos da década de 90. Ainda sem GM e com o José Mota (PDT) e Edir Oliveira (PMDB) no governo, à população da cidade tinha encontros estaduais de coral, uma orquestra de câmara, meia dúzia de grupos de teatro e oficinas gratuitas. Quem viveu naquela época nunca imaginou que, um dia, saudades seriam sentidas.

*

Ficha técnica:

Texto e direção: Daniel Assunção
Assistentes de direção: Glau Barros e Vitor Santantônio
Direção e concepção musical: Everton Rodrigues
Coreografia: Saionara Sosa
Cenografia e acessórios: Israel Quadros
Figurino: Glau Barros e Scheila Gomes
Assistentes de figurino:Luana Zinn, Patricia Maciel e Patricia Martins
Caracterização: Elario Kasper
Maquiagem: Daniel Borges e equipe
Criação e operação de luz: Anilton Souza
Operação de som: Luciano Mazzin
Gravação: Estúdio Mídia
Assessoria de imprensa: Sivia Abreu Comunicação e Marketing
Locução: Claudio Benevenga e Glau Barros
Produção executiva: Libra Produções
Direção e coordenação geral: Paulo Adriane

ELENCO

Jesus...........Paulo Adriane
Maria...........Miriam Benigna
Pilatos.........Pablo Capalonga
Zebedeu.......Wagner Padilha
Madalena.....Marlise Dami
Lúcifer..........Vanessa Greff
Barrabás......Silvio Ramão
Verônica.......Edel Ramos
Lázaro..........Diou Santiago
Marta........... Karine Rocha
Cega............Scheila Gomes
Vera.............Lissa Medeiros
Raquel..........Mariele Moraes
Solista..........Márcia Campos

APÓSTOLOS
Judas............Vitor Santantônio
Pedro............Alexandre Malta
André............Fabiano Hanauer
Mateus..........Diego Farias
Bartolomeu....Henrique Guedez
Tiago maior....Marcello Lukas
Tomé.............Juliano Cardoso
Felipe........... Robson Souza
Tadeu............Dilnei de Jesus
Simão............Ney Marques
Tiago menor...Raonis Jardim
João..............Douglas Cruz

GUARDAS
Evandro Fernandes, Juliano Bitencourt, Rodrigo Neto e Sharlon Gusmão

ESPECTROS
Drica Nunes, Kaleb Borges, Líria Freitas e Rodrigo Müller

ANJOS/DANÇA
Celícia Santos, Jéssica Karasek, Mariana Ceccon e Tais dos Santos

SINEDRISTAS
Cássio Quadros, Fernando Michel, João Wagner, Rose Luz, Tom Padilha e Vanessa Cassali

POVO
Aline Rosa, Cris Clezar, Esmélia Rodrigues, Eugenia Ferreira, Felipe Jardim, Jakinha Santarém, Laura dos Santos, Leni Borges, Paula Thainá e Raquel Reck

CRIANÇAS
Gabriela Monteiro, Giulia Assunção, Hanna Clezar, Jean Clezar, Maria Luiza Daitx, Pedro e Téo Almeida

18 de abr. de 2011

Dramalhão e os Fossa 7


Foto: DuR Maciel

A pequena parte teatral no grande show musical


“Dramalhão e os Fossa 7” é um show musical cujo repertório é composto por músicas de temática “Fossa”. Todas as letras trazem em sua organização um personagem que sofre por um amor que terminou. Escolhidas após muita pesquisa, as canções fazem um retrato da música brega do último século. Vingança, Demais, Luz Negra, Sufoco, Ninguém me Ama, Lama, Eu não Sou cachorro não, Se eu te agarro com outro te mato, Maldita Cocaína e Mano a Mano, numa tradução inédita de Artur de Faria, são alguns dos títulos interpretados por Zé Adão Barbosa e os Fossa 7. Quatro músicos (Edinho Espíndola, Marcão Acosta, Luciano Mello e Paulo Inchauspe) e três cantoras (Vanessa Garcia, Tainá Galo e Manu Meneses) somam os sete que acompanham Zé Adão no palco.

O que um texto sobre um show musical faz num blog de críticas teatrais? O teatro é um sistema de unidades heterogêneas, cujos significados podem ser (e geralmente são) direcionados de forma homogênea. Isto é, música, artes plásticas, cinema, literatura, culinária, geologia, política, todos os sistemas culturais mantidos pelas diversas sociedades emprestam suas unidades ao teatro que os ressignifica e os torna teatrais. No caso de “Dramalhão e os Fossa 7”, o processo é inverso. É o teatro quem empresta unidades geralmente suas para o show musical. Tratam-se dos movimentos e da organização sistêmica na composição de um todo significativo. Essa análise assim será tão parcial quanto é a utilização do teatro no referido show. Ninguém vai assistir a um espetáculo como esse para ver como os músicos se movimentam ou como tudo faz sentido, mas, essencialmente, para ouvi-los tocar e cantar. Edith Piaf, por exemplo, não tinha banda ou orquestra atrás de si na maior parte de suas apresentações e quase não me mexia. Do ponto de vista teatral, Piaf era um fracasso. Mas alguém poderá dizer que não era e não é um grande prazer ouvi-la?

Uma análise teatral pouco tem a considerar sobre Zé Adão Barbosa, protagonista do show, que pouco se movimenta em cena e quando faz faz de forma a engrandecer o seu trabalho enquanto músico e intérprete das canções e dos poemas que diz. Sobre o seu dizer, Zé Adão tem uma dicção perfeita e uma entonação que eleva os valores das letras escolhidas, fazendo a assistência sorrir de identificação diante da profunda dor dos seus autores. O mesmo resultado positivo, no entanto, não se encontra no que diz respeito às cantoras, as backing vocals, que acompanham o cantor. Em primeiro lugar, elas estão posicionadas num lugar equivocado. Exatamente atrás de Zé, elas concorrem com o protagonista e atrapalham nossa visão sobre o cantor, a grande estrela da noite. Em segundo lugar, o grande excesso de movimentos suja a cena e leva o repertório para estruturas significativas que parecem ter sido dispensadas pelo diretor na ocasião da escolha do repertório. Em forma de pergunta: se as músicas são sobre dor e tristeza, por que as três cantoras sorriem o tempo todo, dançam alegremente e balançam as mãos quase em toda a extensão do show sem unidade? Enquanto Zé dá uma unidade para as canções, com poemas, frases e a própria interpretação das músicas, suas acompanhantes agem em sentido oposto: falta coreografia, falta discrição, falta concentração.

É muito interessante notar o sentido transformacional da dor em “Dramalhão e os Fossa 7”. As primeiras canções são bastante sofridas e todo o grupo de músicos estão organizados para esse fim. As letras, no entanto, vão se transformando de forma que as últimas dão um tom de “sim, eu sofri, mas agora eu já me recuperei.” Nesse sentido, a ordem de execução das músicas está posta de forma elogiável, embora pudesse estar ainda melhor se fosse acompanhada por um figurino que realçasse ainda mais o clima noir das primeiras canções. Os chapéus dos músicos, os vestidos longos das cantoras e a roupa discreta de Zé Adão estão muito adequadas e informam indiretamente sobre o que é o espetáculo, mas vale dizer que poderiam estar acompanhadas de outras ratificações que essa análise não pretende sugerir.

Ao dirigir esse show, Arthur de Faria oferece um excelente material para uma reflexão sobre a parte mais importante de seu objeto: a música. Essa análise, infelizmente, se esquiva de dar algum parecer sobre a afinação dos instrumentos e a qualidade dos cantores, embora afirme que a assistência foi um excelente divertimento, uma noite e uma temporada a qual Porto Alegre deve acorrer, saudar e valorizar. Fica o convite para os críticos de música escrever sobre esse espetáculo, investindo na ilusão de que é possível eterniza-lo.

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Ficha técnica:

Direção musical – Arthur de Faria
Interpretação: Zé Adão Barbosa
Vocais – Marcelo Delacroix
Músicos: Edinho Espíndola, Marcão Acosta, Luciano Mello e Paulo Inchauspe.
Back Vocals: Vanessa Garcia, Thainá Gallo e Manu Menezes
Iluminação: Marguinha
Vídeos: Daniel Jainechine
Fotos: DuR Maciel
Divulgação: Camila Ali
Figurinos: Fabrizio Rodrigues
Produção: Luccas Gonçalves e André Oliveira
Realização: Casa de Teatro de Porto Alegre

17 de abr. de 2011

O Duplo

Foto: divulgação



Sucesso comercial e artístico de mãos dadas

O teatro só existe do ponto de vista da sua manifestação. Manifestar significa não só acontecer, mas acontecer num determinado lugar no tempo e no espaço sob determinadas condições. “O Duplo” é um ótimo exemplo de que jamais é possível dizer que um teatro é menor do que o outro. Todas as possibilidades teatrais são valorosas e podem se manifestar em plenitude. “O Duplo” acontece em meio à Mostra TragiCômica de Teatro, uma programação de dois meses que toma conta das terças, quartas e quintas do Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana, um painel das produções cênicas da Cômica Produtora Cultural. A Cômica é uma produtora que se destaca entre os seus pares na capital por não ter o pernicioso preconceito com o teatro comercial. Patsy Cecato, sua fundadora e uma das diretoras, mantém sempre um discurso fincado no profissionalismo, sem distanciar-se do artístico. Seu mérito está em produzir ora espetáculos mais comerciais, ora espetáculos mais experimentais, fazendo com que tanto num como noutro tenham os dois lados sempre contemplados em maior ou menor grau. Sucesso comercial e arte não podem ser, de fato, inimigos entre si. E “O Duplo”, repito, é bom exemplo disso.

O espetáculo foi pensado a partir de cinco contos de Machado de Assis e, por isso, um ótimo produto a ser vendido para escolas e cursos pré-vestibulares. Agrada alunos e professores pela função prática de tratar de forma inteligente e correta um dos mais importantes escritores brasileiros, mas também agrada aqueles que gostam e presam pelo teatro feito com cuidado e com responsabilidade (social).

Bastante interessante é a forma como a literatura de Machado de Assis é tratada. A cena inicial parte de um princípio bastante estudado pelas teorias da análise do discurso de Michel Pecheux: a reflexão sobre as diferentes alinhamentos, sobre a forma como as pessoas do discurso se formam numa conversação. (Discussão essa que é base para a frase inicial desse texto em que eu dizia que o teatro se manifesta e sua manifestação envolve determinadas condições que não apenas o seu acontecimento propriamente dito, mas o lugar do seu acontecimento, o tempo, etc...) Então, apresentam a noção do “Outro” na literatura machadiana e iniciam o espetáculo na hipótese de que, em Machado de Assis, há sempre uma visão do personagem sobre si mesmo. Essa é uma excelente chave para entender o discurso vertical realista e é base para fruir o realismo psicológico: os personagens sempre vistos a partir do universo construído em suas mentes. O leitor de Machado investe seu tempo numa viagem por dentro do personagem e não analisas as situações pelo contexto, mas pelo ponto de vista do seu estado mental. Daí o fascínio que esse tipo de literatura, que relacionamos a de Dostoiesvski, obteve em fins de século XIX no mundo todo.

Cinco contos recebem excelentes traduções teatrais: Sales, Capítulo dos Chapéus, A Causa Secreta, Dona Jucunda e Entre Duas Datas. Francine Kliemann, Leonardo Barison, Nina Eick e Rafael Régoli interpretam os personagens dos contos, mas também atores que intepretam esses personagens, contadores das histórias dispostas literariamente nos contos. Ao conceber o espetáculo, Patsy Cecato não dispensou o livro e pôs o objeto na mão dos atores que, em várias passagens, lêem o texto. Em nenhum desses momentos, o teatro perde espaço. Assim como os signos musicais e plásticos são usados no teatro na escolha da trilha sonora e dos efeitos de sonoplastia ou, ainda, na definição da paleta de cores que norteia, por exemplo, as decisões acerca do figurino, a literatura foi usada no seu jeito mais nobre: abrir um livro e ler. Talvez esse seja o diferencial do teatro: não há nele um signo que seja só seu. O teatro rouba de todos os outros sistemas algo que lhes é próprio e torna seu a partir da forma como os relaciona (o processo da teatralidade). Os atores de “O Duplo” fazem acontecer o teatro no ritmo pulsante da literatura Machadiana: sóbria na escolha vocabular, mas instintiva e quase selvagem nas ações que levam os personagens a fazer escolhas sobre suas próprias vidas.

Para falar da interpretação dos atores e enaltecer a importância de todas as condições relacionadas e dispostas com vistas ao sucesso do todo, escolhi um exemplo. Lá pelas tantas, o ator Leonardo Barison diz a seguinte frase (ou uma bem próxima dessa):

- Eu amava deveras aquela mulher.

Barison é um ator conhecido em Porto Alegre pelos seus personagens cômicos. O linguajar rebuscado na boca desse ator correu o risco de virar comédia. Não virou. Por que? Porque toda a situação de fruição foi muito bem organizada pela produção (produção no sentido de dar viabilidade para o acontecimento teatral também do ponto de vista da constituição do sentido) a ponto de um riso ali parecer sem motivo. Ninguém ri. Todos estão concentrados na história. Em outras palavras, a assistência “comprou” as ideias da concepção, essas bem vendidas por sua vez. Quando isso acontece, qualquer lingüista dirá: “A mensagem foi passada de forma clara e recebida pelo receptor de forma eficiente.” Uma análise de um espetáculo cênico trará a conclusão: o sentido se estabeleceu plenamente se considerarmos os signos dispostos. Perfeito: ponto para a produção e para o ator, ou seja, para quem dispôs os signos. Ponto também para quem descodificou os signos dispostos, fruiu.

“O Duplo” mantém, ao longo de sua manifestação, um ritmo ágil, boas interpretações, movimentos adequados e faz perceber escolhas estéticas simples, mas ao mesmo tempo potentes. Não tem figurinos, cenários e trilha sonora originais, mas oferece um roll plástico que atende às necessidades de maneira eficaz. Sua qualidade, quando avaliada a partir de suas condições, é alta e sugere uma assistência interessada em conhecer, sim, um pouco mais da obra de Machado de Assis, mas, sem dúvida, também em divertir-se com um tipo de entretenimento que em tudo contribui: às artes literárias e cênicas, à produção teatral local e ao fazer artístico dos envolvidos.

Fica, por fim, o alerta: a intensidade positiva de palmas a esse tipo de produção é a mesma no “puxão de orelha” à coordenação da Casa de Cultura Mario Quintana. Nada mais anti-profissional e ofensivo do que dois elevadores sem funcionamento até dez minutos antes do espetáculo começar. Trata-se de uma vergonha para os gaúchos e, sobretudo, para a memória do grande Mario Quintana!

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Ficha técnica:
Pesquisa, Dramaturgia e Direção: Patsy Cecato
Direção técnica (criação de som e luz): Gabriel Lagoas

Elenco:
Francine Kliemann
Leonardo Barison
Nina Eick
Rafael Régoli

Produção e Realização: Comica Cultural
Duração: 70 min.
Classificação: Livre

16 de abr. de 2011

A História da Tigresa


Foto: divulgação

A Tragédia Grega do Stand Up Comedy (e de qualquer gênero teatral)

Escrito pelo Nobel de Literatura (1997), o italiano Dario Fo (1926), Storia della tigre e altre storie (The tale of Tiger / La historia del tigre) é, quem diria, a tragédia grega do Stand Up Comedy. E o primeiro trabalho da Companhia Teatral Destemperados. Escrito em 1978 e apresentado nos anos seguintes pelo próprio autor, consiste num monólogo em que o Contador conta uma história de quando, como ainda um soldado chinês, distanciou-se de sua tropa por diversos motivos alheios a sua vontade e viu-se totalmente abandonado à sorte. Depois de muito sofrer as intempéries do tempo e do espaço (tempestades, avalanches, montanhas...), encontra abrigo numa caverna em meio a uma enorme Tigresa e seu filhote. Prestes a morrer pelo excesso de leite materno, a Tigresa é salva pelo soldado que mama. Por sua vez, a Tigresa, com sua saliva milagrosa, salva também o soldado vítima de gangrena devido às anteriores adversidades. A narrativa evolui a um terceiro ato em que, na história e no ato de narrar, há espaço para a exploração da relação entre os animais e os seres humanos, os valores em período de guerra, o entendimento sobre si e sua relação com o outro. O jeito de contar essa história poderia ser, em se tratando apenas de teatro, realista (grandes cenários que abrigariam a narrativa e profundas discussões acerca dos acontecimentos), um musical (em que a Tigresa ganharia um solo e um corpo de baile), uma alegoria, uma farsa, uma comédia e assim por diante. A opção utilizada pelo autor e reconstituída pela produção dirigida por Arlete Cunha foi a de manter o ator-contador, Anderson Balheiro, livre de qualquer cenário ou adereço; com um figurino potente, mas discreto; com iluminação e maquiagem quase estritamente funcional e uma trilha sonora um pouco menos que isso. O ator está, assim, sem nenhum outro recurso que não si mesmo durante todo o tempo da narrativa. Tudo parte e se estabelece apenas da relação entre o corpo do ator e corpo de espectadores. Nada mais. (No Stand Up Comedy tradicional, há um microfone.)

Um espetáculo produzido nos moldes de “A História da Tigresa” tem vários desafios e posso citar alguns: a história precisa ser contada do ponto de vista da ação a fim de prender a atenção do público na sucessão de ganchos que desenlaçam um dado e, ao mesmo, tempo amarra outro. O ator precisa ter excelente dicção de forma que as palavras não se percam, é preciso ritmo no contar de jeito que o tédio imanente resista a sua própria instauração, os movimentos gestuais e cinéticos precisam ser precisos e ágeis exibindo uma disposição do contador em mudar tudo a qualquer momento, outro meio de fazer a assistência não desviar o olhar. A sala em que a história é contada precisa ser confortável, permitindo ao espectador sentir prazer na mesma medida em que identifica prazer similar no ator que narra. Nem todos esses requisitos se cumprem adequadamente, mas o fato de boa parte ter atingido um bom nível faz com que “A História da Tigresa” entre no grupo dos espetáculos mais interessantes da temporada e, talvez, um dos melhores.

O que falta?

Balheiro não é nem tão ágil, nem tão carismático e nem tão criativo no primeiro ato, quando se situa o soltado e se explica como ele se afastou do seu grupo, como o é nos dois últimos. Felizmente, o movimento é crescente, o que causa uma boa impressão na hora de ir embora. A sucessão de atos não tem amarrações muito precisas e algumas situações se repetem mais do que o necessário. No segundo ato (quando o soldado convive com a tigresa e seu filhote), já não se tem presente boa parte do que aconteceu na abertura da história. Além disso, por concentrar-se na caverna a parte mais interessante da história, o terceiro ato (o soldado na cidade próxima à caverna) parece mais longo que os demais, mesmo que não seja. Por fim, faz calor na Sala Álvaro Moreyra e não há motivos para estarmos em formação italiana (sala dividida em dois lados: uma do ator e outra do público), o que faz a assistência encontrar barreiras na sua aproximação com o ator.

Em cena, felizmente, fica um ator cheio de talento a exibir a técnica conquistada na sua carreira de longos anos, essa exposta de forma tranqüila e natural, simples e agradável. Também fica uma história inusitada e que faz pensar sobre as relações humanas. Sobretudo, temos aí uma produção despojada, extremamente cuidadosa nos detalhes menores: o figurino, a luz, a trilha e a maquiagem não erram um só passo além do adequado e, por isso, positivo. Para quem gosta de teatro, “A História da Tigresa” é um jeito interessante de ver como a arte nasceu e no que ela se resume, afinal, em todas as suas manifestações.

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Ficha técnica

Texto: História da tigresa
Autor: Dario Fo
Atuação: Anderson Balhero
Direção: Arlete Cunha
Iluminação: Bathista freire
Operação de luz: Bathista Freire
Figurino: Daniel Lion
Produção executiva: Anderson Balhero
Fotografia: Vilmar Carvalho e Tiemy Sato
Duração do espetáculo: 1 hora
Classificação etária: 12 anos

13 de abr. de 2011

A Caravana da Fantasia conta O Patinho Feio

Foto: Lisa Roos


Sem direção

“Caravana da Fantasia conta O Patinho Feio” irá decepcionar aqueles acostumados com as boas e as ótimas produções da Cia. Teatro Novo, como Peter Pan e Menina das Estrelas (e trago presente essas análises uma vez que as críticas positivas fazem menos sucesso que as negativas infelizmente). O fato é que a produção não diz a que veio e quero crer que ela tenha vindo para ocupar um lugar na grade de horário (às 15horas) diferenciado e, assim, atender a uma demanda do normal grande público da Sala Carmen Silva que completa dez anos de bom funcionamento. O problema principal do espetáculo é: não tem direção. Em vários aspectos, que serão tratados a seguir, isso fica claro para o espectador.

Cada ator manifesta uma construção de personagem baseada em linhas interpretativas diferentes.Em Ana Paula Schneider, é possível ler vários signos do clown: a falsa inoscência, a pré-disposição constante, o sempre retorno à neutralidade facial quebrada por expressões rápidas, o corpo que parte de uma posição inicial neutra e retorna a ela sempre que possível... Em Guega Peixoto, é possível ler signos do teatro dramático tão facilmente encontrados nos melodramas, comédias de costumes e teatro realista. A atriz mantém uma energia focada em si e na sua partitura, pouco pré-disposta às improvisações. Reissoli Moreira, Daniel Barcellos e Leonardo Dias aproximam-se da farsa, isto é, sempre valorizando as ironias tanto no discurso verbal (o texto) como no discurso imagético (o desenho de movimentos). Individualmente, não é possível dizer que um ator está melhor do que o outro em cena, mas destacar a ausência de uma figura que dê coerência para as construções que se vê.

A dramaturgia se mostra bastante pobre se considerarmos os grandes espetáculos, dois já citados, da Cia. Teatro Novo. Em linhas gerais, “A Caravana da Fantasia” se trata um grupo de atores que contam histórias. Em questão, se resolve contar a história de “O Patinho Feio”. Pela forma como os textos estão postos, é fácil de identificar o gênero farsa: os personagens debocham um dos outros, colocam piadas relacionadas com o mundo do teatro (piadas internas da classe artística), estruturam a cena em vários níveis de identificação e parecem improvisar, usando acessórios e objetos para manifestar os personagens e os lugares onde as ações ocorrem. Além disso, tem o público como fator considerável desde o ínicio até o fim, olhando para ele, estimulando a sua participação, “jogando” com ele. O personagem de Moreira, por exemplo, é um pescador que narra a história dentro da história, ou seja, há um ator que interpreta um ator que interpreta um ou vários personagens. E todos os personagens fazem isso totalmente direcionado para o público. Do ponto de vista da forma, não há nenhum problema com isso, mas, do ponto de vista do conteúdo, não se pode dizer o mesmo. Há uma sucessão de piadas que, embora, como tais, sejam soltas, são ditas em contextos presos. É como um piadista envergonhado: por mais que seja interessante o que ele diz, não conseguimos desviar a atenção de sua cara vermelha e sua testa molhada de suor. E, como esse piadista emenda uma piada na outra, o tédio aparece e pouco sobra além da simpatia que os atores despertam.

O espetáculo é simpático pelo jeito como explora as cores e a musicalidade. Tudo é muito colorido e de várias texturas e modelos. E os efeitos sonoros são produzidos em cena aberta o que é muito interessante para quem vê. Mas, em meio a esses elogios, há que se dizer que a música de abertura, que é a mesma do encerramento, para ser melhor executada, carece de uma preparação vocal mais condizente com quem canta ou, então, uma reformulação no seu arranjo.

Deixando a desejar em vários aspectos, mas felizmente não em todos, destaca-se o carisma de Reissoli Moreira, uma das poucas boas lembranças que essa produção deixará.

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Ficha técnica:

De: Hans Christian Andersen
Adaptação: Ronald Radde e Reissoli Moreira
Direção: Karen Radde
Direção de Produção: Ellen D’Ávila
Assistente de Produção: Caroline Copette
Gerente Administrativo: Hamilton Dias
Música “Patinho Feio”: Álvaro RosaCosta
Música “Borboleta”: Rui Vanti
Música “Caravana”: Leonel Radde e Alhybia Borges
Trilha incidental e arranjos: Leonardo Dias
Preparação Vocal: Letícia Paranhos
Coreografias: Saionara Sosa
Figurinos: Titi Lopes e Ellen D”Ávila (concepção)
Adereços: Elenco Caravana
Cenografia: Ronald Radde e Reissoli Moreira
Execução e Apoio: Elenco Caravana
Criação de Luz: Osmar Montiel
Operação de Luz: José Hildemar Cavalheiro / Marcial Perez (ship)
Programação gráfica: Rogério Araujo
Fotos: Lisa Roos
Assessoria de Imprensa: Phosphoros Novas Ideias
Webdesigner: Rosana Almendares
Projeto A Escola Vai ao Teatro: Ane Marie Kraner

Elenco:
Ana Paula Scheneider
Daniel Barcellos
Leonardo Dias
Guega Peixoto
Reissoli Moreira

10 de abr. de 2011

Dois de paus


Foto: du.r Maciel

O novo bom espetáculo da Cia Halarde

Dois de paus é o quarto texto de Arthur Curado, dramaturgo brasiliense, também ator na primeira encenação do espetáculo ocorrida em 2005. A produção gaúcha, dirigida por Paulo Guerra, acontece em paralelo a outras produções do mesmo texto no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, sendo que nesses últimos seis anos, em especial graças ao Projeto Palco Giratório do SESC, a história já viajou todo o país incluindo Porto Alegre no roteiro em maio de 2006. Produzido pela Cia Halarde, muito conhecida pelo espetáculo Dona Gorda, além de outros, Dois de paus conta a história de dois homossexuais que se conhecem pela internet e iniciam um relacionamento. Os espectadores acompanham, de forma não linear, as diferentes fases pelas quais os personagens Alex e Júlio passam: primeiro encontro, namoro, casamento... No elenco, estão os estreantes no teatro profissional porto-alegrense Dionatan Rosa e Guilherme Ferrêra.

Talvez a questão primeira mais importante a ser tratada seja o gênero. Porque se trata de dois personagens gays, o primeiro impulso é categorizar (para assim entender) como peça “gay”. Observar Dois de paus sob a ótica das cores, das dublagens, das comédias, da iconografia gay, elementos presentes em outros espetáculos que, por causa deles, facilmente poderiam ser assim classificados, faz com que a atenção se desvie bastante do objeto. Nele, nesse espetáculo, não há cores, tudo é preto, branco ou cinza (com exceção do peixe, que é vermelho). Também não há dublagens e nenhum ícone estético gay aparece ou é citado. Em termos de dramaturgia, nem exageros são passíveis de ser identificados. Assim, Dois de paus funciona melhor enquanto sistema narrativo se analisado como uma história dramática em que duas pessoas se conhecem e começam a namorar e conviver, sendo esse encontro o espaço para o aparecimento de conflitos humanos tão acessíveis ao mundo além da narrativa. Há aí uma questão: se, ao invés de dois gays, houvesse um homem e uma mulher, a peça teria feito e faria tanto sucesso como é o caso? A resposta é não. Todas as ações são simples e, por isso, dizem pouco ou nada enquanto tais. A história se perderia no marasmo de tantas outras milhares de narrativas que, ou vão para a questão da auto-ajuda nos relacionamentos contemporâneos, ou se tornam comédias românticas, essas, sim, sempre com um ponto original relevante capaz de interessar o espectador que já vivenciou (ou testemunhou) na sua vida uma historia parecida, mas nunca pensou nela sob esse determinado aspecto. Ou seja, se o fato de os dois personagens serem gays não interfere na obra na questão do conteúdo, com certeza esse é fator fundamental na viabilidade da produção. Ultrapassada essa reflexão inicial, falta evidenciar as conseqüências desse ponto de vista nas observações sobre alguns dos elementos do espetáculo que são fundantes para a fruição dele.

Dionatan Rosa (Alex) e Guilherme Ferrêra (Júlio) trazem bons valores à obra. Os dois personagens foram construídos de forma bastante próxima da realidade além da narrativa, isto é, foram contemplados os resultados de uma pesquisa não sobre um determinado grupo de gays, mas sobre a generalidade. Não há, assim, a exibição de um personagem afetado, tão comum nos estereótipos, mas também não há a fuga da afetação, o que consistiria num desvínculo com o ambiente da fruição. (O segredo de Brokeback Mountain, o filme, por exemplo, situa os dois personagens protagonistas num universo bastante longe da fruição, o mundo dos másculos cowboys, um lugar idealizado coerente com a altura das montanhas.) Alex e Júlio estabelecem uma relação romantizada, mas são, antes de tudo, personagens verticais, realistas. Um é fisioterapeuta e o outro é publicitário. Ambos têm mais ou menos a mesma idade. Um é geminiano e o outro é escorpionino. Um já assumiu-se como gay para para a família e o outro ainda não. Ou seja, Alex e Julio têm forte relação com os Rodrigos, os Marcelos, os Renatos, os Lucianos que são comuns de se encontrarem por aí. O que eles dizem, no entanto, é raro.

O discurso de Dois de paus é o lugar onde está a idealização ou o romantismo. As frases são bem construídas, as imagens são belas, as palavras são fortes e colocadas nos seus lugares depois de um prévio estudo de recepção. Ao escrever o texto, Curado não toca em ferida nenhuma, mas dá o beijo que leva à cura. E Guerra não mexeu nisso. Mais uma vez dando um exemplo de sua grande habilidade como diretor meticuloso que é, construiu personagens reais para dizer coisas irreais. O amor que os dois sentem um pelo outro poderia, sim, ser manifestado como está na peça por duas mulheres ou por um casal heterossexual. Mas a construção daqueles que dizem nos faz refletir sobre uma minoria da população mundial que se relaciona há muito tempo na marginalidade conseqüente do preconceito contra a livre orientação sexual. O beijo gay é igual ao beijo hétero, mas o fato de ser gay tem a força do desvelar de uma relação rara em sua exposição infelizmente. Assim, o que seria clichê na boca de dois personagens heterossexuais tem um sabor diferente na boca de dois personagens gays. E o fato das construções terem se mantido sem a força do idealismo, mas com o vínculo com o real faz com que a coragem de assumir quem é antes de assumir o que sente dê novas cores as onze situações que se sucedem na contagem da história.

Ainda sobre a dramaturgia e sua leitura pela direção cênica, é interessante notar como o jogo acontece. Na primeira cena, abrindo a peça já numa briga, o que é bastante delicado (e perigoso), os personagens discutem acerca de uma traição. Moralistas que somos, o traidor sempre é tido como vilão. Durante o espetáculo, no entanto, o jogo se inverte. Sem um final revelador, mas um arranjo finalizador que, de uma forma bastante inteligente (e contemporânea), convida o público para concluir a história, Dois de paus oferece uma bela reflexão tanto em sua semente literária, o texto de Curado, como na sua manisfestação cênica, a peça da Cia. Halarde.

Dois de paus tem dois problemas graves: Paulo Guerra erra a mão quando aparece mais que Curado nas concepções de cenário e de trilha sonora. O troca-troca de cenário, num colocar os praticáveis aqui e depois lá e depois acolá sem fim só não é mais irritante do que o abre e fecha de cortinas e abre e fecha de araras. Em alguns momentos, como na primeira cena, fica bastante claro que aquilo só está sendo feito para que algo esteja sendo feito em cena. Sim, teatro é ação. Drama é sinônimo de ação. Mas ações mais intimistas, mais discretas, menores, talvez ofereçam resultados mais coerentes que esses escolhidos pela direção. O mesmo se pode dizer da trilha sonora. Cheia de inserts, repetições de frases ditas nas cenas e coloridos, a trilha também não permite que o espectador se envolva com os personagens plenamente. Faltam silêncios, faltam espaços vazios em Dois de paus: lugares no tempo e no espaço em que quem assiste irá se colocar.

A expressão dois de paus vem do jogo de baralho, nomeando uma carta que, por ter um baixo valor, fica na mão do jogador ou na mesa sem ação, à espera de que algo aconteça. Há, no entanto, dois possibilidades de visão sobre quem está parado. Um deles, o que nos interessa, faz refletir sobre a imanência, a potência, a força acumulada esperando o start. O que vem a seguir é a ação. E ação aqui é parabenizar e aplaudir.

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Ficha técnica:

Texto: Arthur Tadeu Curado
Direção: Paulo Guerra

Elenco:
Dionatan Rosa
Guilherme Ferrêra

Cenário e Figurino: Cláudio Benevenga
Trilha Sonora: Jean Presser
Iluminação: Anilton Souza
Design: Sandro Ka

9 de abr. de 2011

Cãofusão

 Foto: Marcelo Andrade

Lúcia Bendati, Fernanda Petit e Cassiano Fraga: Cãofusão é um sucesso facilmente explicável

Não se trata de apenas dizer que Cãofusão é uma produção bem sucedida. O importante é ressaltar que é bem sucedida a cidade que tem, em sua grade de programação teatral, um espetáculo como Cãofusão. Aqueles que não gostam de teatro infantil, aqueles que não gostam de teatro musical, aqueles que não gostam de teatro com mais de uma hora de duração, aqueles que não gostam de assistir a espetáculos em início de primeira temporada hão de concordar comigo: aqui temos um belíssimo exemplar de teatro bem feito. Isso, sim, antes de tudo, agrada a todos que, como eu, gostam de assistir a teatro. Eu, que gosto de teatro infantil (ou para crianças), de teatro musical e não me importo com o tempo de duração, desde que bem utilizado, tenho quase que apenas elogios à produção dirigida por Lúcia Bendati e protagonizada por Fernanda Petit, com músicas originais compostas por Álvaro RosaCosta.

Fernanda Petit e Cassiano Fraga obtém resultados excelentes em cena. Nas suas performances enquanto Lady (personagem protagonista) e Moela/Paco (personagens coadjuvantes), ao espectador é servido um arsenal de talento e técnica, ambos muito bem desenvolvidos. A dupla canta, dança e representa apenas agregando valores à produção, ao espetáculo, ao teatro que constroem. Não há uma só momento em que, em cena, não sentimos vontade de alargar o tempo, estar um pouco mais com eles, vivenciar com eles as histórias que contam através da voz, do corpo e do movimento. Atrás deles e com eles um grupo de atores também cheio de virtudes: Daniel Colin e Letícia Paranhos, em personagens menores (Boris e Crista), provam que personagens menores também são “presentes” de seus criadores aos intérpretes uma vez que os realmente bons conseguem fazê-los crescer. Ricardo Zigomático (o protagonista Malandro) e Denis Gosch (o personagem Iago), ainda que não atinjam a excelência dos demais, não deixam de acrescentar à obra, em vários momentos, aspectos que a tornam tão grande quanto ela é. De um modo geral, está de parabéns a equipe técnica que, em primeiro lugar, reuniu esse elenco que, estivéssemos em Los Angeles não teríamos medo de exagerar ao dizer “estrelar”, e, em segundo lugar, preparou essa turma nas diferentes potencialidades exigidas pelos signos textuais e musicais a se estabelecer enquanto tais: a música, a dança, a interpretação teatral.

Ainda na parte do elenco, mas de olho na obra como um todo, preciso ressaltar uma questão fundamental em Cãofusão: a ausência de microfones. Nesse ponto, há que se aplaudir a produção efusivamente. É ponto pacífico: o uso de microfones em teatro é sempre um problema. Embora passível de serem contornadas, as dificuldades trazidas pela ampliação artificial da voz do ator quase em sua totalidade traz prejuízos ao espectador e à produção. Em Cãofusão, a barreira da possível incompreensão do texto e das letras das canções foi solucinada na construção do espetáculo: 1) escolheram bons atores e bons cantores para atuar na peça e não atores-amigos ou cantores-amigos; 2) houve um excelente preparo de voz enaltecendo as vozes mais privilegiadas (Petit e Fraga) e ajustando às canções aqueles menos favorecidos nesse quesito (Zigomático) de forma que o espectador só tivesse a ganhar e, nisso, também o artista, claro. Ou seja, em se tratando de teatro, ratifica-se o tantas vezes dito: podendo construir a peça essencialmente com base no elenco, não é só a arte quem ganha, mas também o público. Recursos artísticos externos ao ator são bem vindos quando necessários. Em Cãofusão, houve deles a dispensa. Bom para o teatro!

Quanto à dramaturgia, Marcelo Adams está de parabéns pelo trato com o tema de forma tão singular. Há que se perceber a dificuldade que o dramaturgo tinha em mãos ao escrever essa história. Cãofusão é, sim, em suma, a história de uma cachorrinha de raça que se apaixona por cachorro vira-latas. À princípio, nenhuma dificuldade há nisso nos últimos milênios de narrativa escrita. Mas há que se dar um segundo passo e evidenciar a complexidade em questão. Considerando o fato do grupo divulgar que apóia várias ONGs de adoção de animais, como resolver a questão que se coloca na evolução do drama? Lady se tornará uma cachorrinha de rua como o é o Malandro, o que seria uma saída poética linda, trazendo todos os signos da noite, da rua, da liberdade? Ou Malandro será adotado pelos donos de Lady, o que se seria uma saída politicamente correta? Aqui não vou dizer como a história termina, nem mesmo dizer que as opções consideradas são apenas essas duas, mas reforço o dito anteriormente: Cãofusão foi vista pelo seu dramaturgo em sua complexidade e fugir do superficial e do clichê, mesmo no teatro infantil e no teatro musical é sempre algo merecedor de nota.

Dramaturgia e direção se encontram numa produção que se divide em dois atos, em dois climaxes: o beijo de Lady e Malandro ao anoitecer e o final. Uma avaliação criteriosa há que apontar, entre tantos aspectos positivos, a perda do ritmo momentos antes do primeiro clímax, que carece de um pouco mais de emoção, e a não recuperação do excelente ritmo inicial nas cenas finais do espetáculo. Em outras palavras, as cenas vibrantes do início não encontram par nas mais próximas do final, o que é uma pena, se esquecermos o que foi dito na abertura dessa análise: trata-se de um excelente espetáculo. A cena das “Donas” é o primeiro momento em que o ritmo cai. E o mesmo se repete quando os personagens coadjuvantes, bela e ricamente apresentados no início da contagem, ganham novamente momentos especiais. Trata-se de refletir sobre uma questão: qual é a história que queremos ouvir? Para mim, as simpáticas presenças dos personagens outros não se equiparam com as decisivas vidas de Lady e de Malandro. Daí que o grande tempo destinado aos momentos finais de coadjuvância pode ser motivo concreto para a sutil perda de ritmo aqui apontada.

Figurino e Maquiagem são dois elementos cênicos que nos fazem ainda mais reconhecer Cãofusão como um dos melhores espetáculos da temporada. Sobretudo, são sinal de que entre nós havia uma grande diretora e produtora semi-escondida atrás de uma grande atriz: Lúcia Bendati. Saúda-se a nova peça e, sobretudo, a cidade que acorre ao que é bem feito e faz grandes filas para aplaudir. Não menos e talvez mais que todos, saúda-se também os apoiadores todos, mas, em especial, a Secretaria Municipal de Cultura e o Prêmio Fumproarte, que garantiram a viabilização desse projeto por mãos tão talentosas e eficientes.


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Ficha Técnica:

TEXTO:  Marcelo Adams
DIREÇÃO: Lúcia Bendati
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO: Larissa Sanguiné

ELENCO:
Cassiano Fraga
Daniel Colin
Denis Gosch
Fernanda Petit
Leticia Paranhos
Patrícia Soso
Ricardo Zigomático

TRILHA SONORA ORIGINAL E DIREÇÃO MUSICAL: Alvaro RosaCosta
ARRANJOS: Alvaro RosaCosta e Cau Netto
PREPARAÇÃO MUSICAL: Simone Rasslan
CRIAÇÃO COREOGRÁFICA: Larissa Sanguiné
PREPARAÇÃO CORPORAL: Denis Gosch
CRIAÇÃO DE CENÁRIO: Zoé Degani
PRODUÇÃO E CENOTÉCNICA DE CENÁRIO: Lindsay Gianoukas, Gerson Marques, Karine Capiotti e
Marcelo Mértins
CRIAÇÃO DE FIGURINOS: Claudio Benevenga e Zélia Mariah
CRIAÇÃO DE MAQUIAGEM: Claudio Benevenga e Lúcia Bendati
CARACTERIZAÇÃO: Elison Couto e Thippos Hair
CRIAÇÃO E OPERAÇÃO DE LUZ: Fernando Ochôa
OPERAÇÃO DE SOM: Alvaro RosaCosta e Rubia Esmeris
CRIAÇÃO GRÁFICA: Marina Fujiname
FOTOS: Marcelo Andrade
FOTOS PRÉ-PRODUÇÃO: Marina Fujiname
FILMAGEM: Filipe Severo Videojornalismo
CAPTAÇÃO DE APOIOS: Lucas Gonçalves
DIVULGAÇÃO: Bebê Baumgartem
PRODUÇÃO: Rodrigo Ruiz

3 de abr. de 2011

Descrição de uma imagem

Foto: Kiran Prem



Tratado de Semiótica

Imaginemos a cena: eu mais dois amigos. Peço que um deles feche os olhos. Tiro minhas chaves do bolso sem fazer barulho e coloco no outro bolso. Então, peço que meu amigo abra os olhos e me diga se eu mudei. Ele responde que não. Então, o amigo que permaneceu com os olhos abertos e viu o que eu fiz diz que sim, que eu mudei as chaves de lugar. Se a minha imagem era aparentemente a mesma, por que para um eu era o mesmo e para o outro eu era diferente? A resposta está nos olhos abertos ou fechados, no acesso perceptivo e no desacesso. “Descrição de uma imagem”, espetáculo do Grupo Barraquatro, é um tratado de semiótica escrito pelo alemão Heiner Müller (1929-1995) em 1986. A encenação, dirigida por Júlia Rodrigues (Projeto 1: Picasso e Desejo) é o resultado do projeto vencedor da 2ª edição do Concurso de Montagem Teatral para novos diretores, realizado pela Coordenação de Artes Cênicas da Secretaria Municipal da Cultura em parceria com o Instituto Goethe de Porto Alegre.

Completamente desprovido de linha dramática, a dramaturgia se estrutura em cima dos diferentes acessos e desacessos que nós, o público, temos de todas as imagens que os atores vão construindo verbal ou não-verbalmente em cena. Alguns de nós “vimos os atores esconderem a chave”, outros não. Em outras palavras, as imagens dizem algo para mim, outro algo para a pessoa que está ao meu lado. O diferencial disso em relação a qualquer outra peça teatral é que esse jogo é o mais importante aqui, na fruição desse espetáculo. Para outras produções, por exemplo, é muito importante que todos tenham uma base comum de interpretação farta para entender a peça. Em “Descrição de uma imagem”, o prazer é o não entendimento. E como funciona esse prazer?

O amigo que não fechou os olhos viu que eu troquei as chaves de bolso. Essa imagem é propriedade dele e é o diferencial dele em relação ao amigo que fechou os olhos. O interessante do espetáculo protagonizado por Thiago Pirajira e Kayane Rodrigues é saber que eu tenho informações que o espectador ao meu lado não tem. A nuvem, a estrutura da nuvem, a cicatriz, o beijo, a mesa, o bloco, todos os signos da cena são dispostos a convidar quem tem acesso perceptivo a eles a interpretá-los como quiser. Nesse sentido, é extremamente positiva a forma como Júlia Rodrigues dirigiu a construção dos personagens pelos seus atores. Thiago e Kayane, exatamente como fizeram nos outros espetáculos do mesmo grupo, interpretam figuras bastante próximas da neutralidade possível. Ambos são instrumentos da palavra e do gesto, executando movimentos que se misturam com os poucos objetos cênicos quase em mesmo nível hierárquico, o que deixa para o espectador a tarefa de dar maior importância para isso ou para aquilo segundo a sua própria vontade.

Os figurinos são belos na sua busca pela neutralidade concordante com a interpretação. A iluminação de Bathista Freire ratifica a fama de um dos melhores iluminadores desse estado que tem o seu artista. A trilha sonora, parcialmente interpretada ao vivo por Ricardo Pavão, é um dos pontos mais altos da produção que tem o seu lugar no cenário teatral gaúcho por explorar , utilizando o texto de Müller, unicamente o teatro naquilo que lhe é mais essencial: o ator e o movimento. “Descrição de uma imagem” olha para algumas produções locais e pergunta: o vídeo é mesmo insubstituível?



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Ficha técnica

Direção: Júlia Rodrigues
Atuação: Thiago Pirajira, Kayane Rodrigues e Kyky Rodrigues
Figurinos: Letícia Pinheiro
Cenário: Elcio Rossini
Iluminação: Bathista Freire
Trilha Sonora: Ricardo Pavão
Preparação Corporal: Dagmar Dornelles
Produção: Daniela Dutra
Realização: Grupo Barraquatro

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