17 de abr. de 2011

O Duplo

Foto: divulgação



Sucesso comercial e artístico de mãos dadas

O teatro só existe do ponto de vista da sua manifestação. Manifestar significa não só acontecer, mas acontecer num determinado lugar no tempo e no espaço sob determinadas condições. “O Duplo” é um ótimo exemplo de que jamais é possível dizer que um teatro é menor do que o outro. Todas as possibilidades teatrais são valorosas e podem se manifestar em plenitude. “O Duplo” acontece em meio à Mostra TragiCômica de Teatro, uma programação de dois meses que toma conta das terças, quartas e quintas do Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana, um painel das produções cênicas da Cômica Produtora Cultural. A Cômica é uma produtora que se destaca entre os seus pares na capital por não ter o pernicioso preconceito com o teatro comercial. Patsy Cecato, sua fundadora e uma das diretoras, mantém sempre um discurso fincado no profissionalismo, sem distanciar-se do artístico. Seu mérito está em produzir ora espetáculos mais comerciais, ora espetáculos mais experimentais, fazendo com que tanto num como noutro tenham os dois lados sempre contemplados em maior ou menor grau. Sucesso comercial e arte não podem ser, de fato, inimigos entre si. E “O Duplo”, repito, é bom exemplo disso.

O espetáculo foi pensado a partir de cinco contos de Machado de Assis e, por isso, um ótimo produto a ser vendido para escolas e cursos pré-vestibulares. Agrada alunos e professores pela função prática de tratar de forma inteligente e correta um dos mais importantes escritores brasileiros, mas também agrada aqueles que gostam e presam pelo teatro feito com cuidado e com responsabilidade (social).

Bastante interessante é a forma como a literatura de Machado de Assis é tratada. A cena inicial parte de um princípio bastante estudado pelas teorias da análise do discurso de Michel Pecheux: a reflexão sobre as diferentes alinhamentos, sobre a forma como as pessoas do discurso se formam numa conversação. (Discussão essa que é base para a frase inicial desse texto em que eu dizia que o teatro se manifesta e sua manifestação envolve determinadas condições que não apenas o seu acontecimento propriamente dito, mas o lugar do seu acontecimento, o tempo, etc...) Então, apresentam a noção do “Outro” na literatura machadiana e iniciam o espetáculo na hipótese de que, em Machado de Assis, há sempre uma visão do personagem sobre si mesmo. Essa é uma excelente chave para entender o discurso vertical realista e é base para fruir o realismo psicológico: os personagens sempre vistos a partir do universo construído em suas mentes. O leitor de Machado investe seu tempo numa viagem por dentro do personagem e não analisas as situações pelo contexto, mas pelo ponto de vista do seu estado mental. Daí o fascínio que esse tipo de literatura, que relacionamos a de Dostoiesvski, obteve em fins de século XIX no mundo todo.

Cinco contos recebem excelentes traduções teatrais: Sales, Capítulo dos Chapéus, A Causa Secreta, Dona Jucunda e Entre Duas Datas. Francine Kliemann, Leonardo Barison, Nina Eick e Rafael Régoli interpretam os personagens dos contos, mas também atores que intepretam esses personagens, contadores das histórias dispostas literariamente nos contos. Ao conceber o espetáculo, Patsy Cecato não dispensou o livro e pôs o objeto na mão dos atores que, em várias passagens, lêem o texto. Em nenhum desses momentos, o teatro perde espaço. Assim como os signos musicais e plásticos são usados no teatro na escolha da trilha sonora e dos efeitos de sonoplastia ou, ainda, na definição da paleta de cores que norteia, por exemplo, as decisões acerca do figurino, a literatura foi usada no seu jeito mais nobre: abrir um livro e ler. Talvez esse seja o diferencial do teatro: não há nele um signo que seja só seu. O teatro rouba de todos os outros sistemas algo que lhes é próprio e torna seu a partir da forma como os relaciona (o processo da teatralidade). Os atores de “O Duplo” fazem acontecer o teatro no ritmo pulsante da literatura Machadiana: sóbria na escolha vocabular, mas instintiva e quase selvagem nas ações que levam os personagens a fazer escolhas sobre suas próprias vidas.

Para falar da interpretação dos atores e enaltecer a importância de todas as condições relacionadas e dispostas com vistas ao sucesso do todo, escolhi um exemplo. Lá pelas tantas, o ator Leonardo Barison diz a seguinte frase (ou uma bem próxima dessa):

- Eu amava deveras aquela mulher.

Barison é um ator conhecido em Porto Alegre pelos seus personagens cômicos. O linguajar rebuscado na boca desse ator correu o risco de virar comédia. Não virou. Por que? Porque toda a situação de fruição foi muito bem organizada pela produção (produção no sentido de dar viabilidade para o acontecimento teatral também do ponto de vista da constituição do sentido) a ponto de um riso ali parecer sem motivo. Ninguém ri. Todos estão concentrados na história. Em outras palavras, a assistência “comprou” as ideias da concepção, essas bem vendidas por sua vez. Quando isso acontece, qualquer lingüista dirá: “A mensagem foi passada de forma clara e recebida pelo receptor de forma eficiente.” Uma análise de um espetáculo cênico trará a conclusão: o sentido se estabeleceu plenamente se considerarmos os signos dispostos. Perfeito: ponto para a produção e para o ator, ou seja, para quem dispôs os signos. Ponto também para quem descodificou os signos dispostos, fruiu.

“O Duplo” mantém, ao longo de sua manifestação, um ritmo ágil, boas interpretações, movimentos adequados e faz perceber escolhas estéticas simples, mas ao mesmo tempo potentes. Não tem figurinos, cenários e trilha sonora originais, mas oferece um roll plástico que atende às necessidades de maneira eficaz. Sua qualidade, quando avaliada a partir de suas condições, é alta e sugere uma assistência interessada em conhecer, sim, um pouco mais da obra de Machado de Assis, mas, sem dúvida, também em divertir-se com um tipo de entretenimento que em tudo contribui: às artes literárias e cênicas, à produção teatral local e ao fazer artístico dos envolvidos.

Fica, por fim, o alerta: a intensidade positiva de palmas a esse tipo de produção é a mesma no “puxão de orelha” à coordenação da Casa de Cultura Mario Quintana. Nada mais anti-profissional e ofensivo do que dois elevadores sem funcionamento até dez minutos antes do espetáculo começar. Trata-se de uma vergonha para os gaúchos e, sobretudo, para a memória do grande Mario Quintana!

*

Ficha técnica:
Pesquisa, Dramaturgia e Direção: Patsy Cecato
Direção técnica (criação de som e luz): Gabriel Lagoas

Elenco:
Francine Kliemann
Leonardo Barison
Nina Eick
Rafael Régoli

Produção e Realização: Comica Cultural
Duração: 70 min.
Classificação: Livre

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