27 de mai. de 2010

Bodas de Sangue


Foto: divulgação

Estréia com pontos altos


Sobre o espetáculo “Bodas de Sangue”, começo escrevendo o que disse a Luciano Alabarse, de cujo trabalho já falei terrivelmente mal (ver crítica de “Platão”) e nem por isso, talvez por já ter completado 12 anos (sic), me virou a face, me enviou emails desaforados ou promoveu campanhas infantis contra mim e minha formação. É absolutamente medíocre o pensamento de que não se deve escrever uma avaliação crítica de um espetáculo a partir de sua apresentação de estréia.

Uma vez, aqui nesse espaço, cometi o terrível engano de dizer que apresentações não oficiais deveriam acontecer na periferia da cidade. Não sendo, pareci preconceituoso e muito corretamente fui repreendido. Agora, tento me corrigir dizendo que try-outs, como os americanos chamam os Ensaios Abertos, podem acontecer em qualquer lugar, desde que sejam anunciados como tais. É pretensioso todo artista que esconde a sua obra antes de sua apresentação oficial. E repito: o público da estréia merece o mesmo bom desempenho que deve ganhar aquele que vai assistir ao espetáculo no fim de sua temporada. Se Luciano Alabarse conseguiu oferecer um ótimo espetáculo na sua premiere, os demais diretores da capital gaúcha também o podem e devem fazê-lo.

Assim, “Bodas de Sangue”, de Federico Garcia Lorca (Espanha, 1898-1936), na atualização dirigida, além de Alabarse, pelo Prof. Luiz Paulo Vasconcellos, traz ao cenário teatral da nossa cidade muitos pontos altos e alguns pontos baixos, elencados aqui, como sempre, no sentido de engrandecer essa arte milenar que deixa nossa cidade tão importante no cenário nacional. O texto, escrito em 1933, abre um trilogia que se completa com “Yerma” (1934) e “A casa de Bernarda Alba” (1936). Já foi também, em 1981, atualizado pelo cinema pelo diretor Carlos Saura, que também o utilizou para abrir a sua própria trilogia, essa composta por “Carmen” (1983) e “Amor bruxo” (1986). Conta a história de uma Noiva que, logo após o seu casamento, foge com seu antigo Noivo, esse também já casado, levando à morte os dois homens, e ao horror todo o seu vilarejo. Numa construção dramatúrgica que pré-ascende o teatro do absurdo, o poeta, que foi executado com um tiro na nuca sem ter tido um julgamento por ser “mais perigoso com a caneta do que são outros com um revólver”, tornava verso e fala o que seus amigos Dalí e Buñuel construíam também em outros campos artísticos. Em “Bodas de Sangue”, a Lua e a Morte ganham personificação num contexto em que, sob nenhum aspecto, beira-se à comédia ou a superficialização. Tampouco o drama de Lorca tende ao melodrama francês ou latino, como também se afasta do psicologismo russo. Se se pode identificar uma filiação, a tragédia clássica inspira, mas está distante pela situação primeira de grande responsabilidade dos personagens em suas próprias ações, o que diminui a intensidade do destino e das forças ocultas tão fortes nos grandes textos trágicos. A humanidade dos personagens de Lorca não encontra oposição aos seus pares divinos. Suas identidades se constroem através de suas trocas entre si e com a própria situação em que vivem. Dessa forma, pode-se dizer que o Naturalismo, entre várias estéticas, é a que menos longe fica dessa magistral herança lorquiana, embora essa escola não seja suficiente para dar conta sozinha de qualquer leitura dessa dramaturgia.

Sissi Venturin e Marcelo Adams são os pontos mais altos dessa produção. Dividem o palco em apenas duas cenas nos 120 minutos de espetáculo, mas a forma como constroem suas interpretações fisga o olhar do espectador sensível à troca de intensidades que ocorre no palco. O jogo habilmente presentificado pelos dois artistas já muitas vezes reconhecidos pelo seu talento em outros trabalhos engrandece e enche de conteúdo a versão de Alabarse e Vasconcellos. Ambos os atores são fortes sem deixarem de ser suscetíveis às propostas apresentadas pelo outro. Mantém seus corpos absolutamente dispostos e são moderados em sua expressão física, permitindo-se completar pelo trabalho em dupla. O inexperiente Fabrizio Gorziza, ao interpretar o marido abandonado, em nada, está menor do que a grande dupla que o circunda. Talvez o seu ausente domínio de cena seja o responsável pela fragilidade de seu papel: o jovem virgem e apaixonado que se enche de fúria ao ser traído. Por saber utilizar bem o que traz ao grupo, merece agradecimentos por tornar maior o trabalho coletivo.

Dois momentos são excelentes na cena de “Bodas”: a sequência do casamento e a do velório. A pujança da primeira, que começa pelo vibrante despertar da noiva e encontra seu ápice na dança flamenca, evidencia um trabalho de opção estética que é resultado de uma pesquisa a que muito temos que aplaudir. A serenidade da segunda, que começa com um canto doloroso da mãe (Sandra Dani) sobre o caixão do filho e se estende pelo embate violento entre a esposa (Venturin) e sua sogra (Dani), deixa claro que todos os minutos passados até ali se justificam.

Não menos interessantes são as trocas de cenário (Sylvia Moreira), os figurinos (Rô Cortinhas) e a trilha sonora (Moysés Lopes), apesar de algumas redundâncias dessa última. Não se pode deixar de bem destacar a recepção do público que acontece sob o aquecimento dos atores numa aula de flamenco (Maria Teresa Costa de Montoya e Letícia Balle ), bem como o elogiável trabalho de Fernando Zugno e Ida Celina, respectivamente, os intérpretes dos perigosos personagens Lua e Morte. Como foi destacado no início, ambas as figuras relacionam o texto às alegorias de Dalí e outros artistas do início do século XX. Daí vem sua periculosidade: um passo em falso e a construção, de uma forma muito fácil, tornar-se-ia superficial. Não é o caso. Os dois atores não deixam a seriedade diminuir e valorizam a poética de suas funções na narrativa.

Os pontos baixos dessa montagem de “Bodas de Sangue” estão nas duas cenas iniciais em que protagonizam Sandra Dani (Mãe) e Lurdes Eloy (Vizinha). Enquanto a segunda arrasta o ritmo do diálogo, falando excessivamente de forma pausada e, por isso, também, pesada, a primeira carrega suas construções de cores que, se lhe deram sucesso em outras produções, aqui cansam o expectador que almeja um pouco mais de história e um pouco menos de reflexão. As construções das duas atrizes lembram o espectador porto-alegrense das montagens clássicas dirigidas por Alabarse, o que é um desvalor. O texto de Lorca não responsabiliza as palavras tanto quanto o texto de Eurípedes. Aqui uma fala encontra lugar na próxima enquanto lá cada frase contém seu significado plenamente estabelecido em separado. De uma forma metafórica, pode-se dizer que o excesso de cores das duas construções acaba por deixar suas participações em preto e branco.

“Bodas de Sangue” é o melhor espetáculo de Luciano Alabarse desde Medéia (2007). A direção dividida com Vasconcellos recebe sua assinatura no simétrico modo de ocupar o palco e nas minuciosas entradas e saídas de cena. São duas horas de espetáculo que engrandece a vida do teatro gaúcho e torna 2010 um ano de grandes estréias ao público sempre bem-vindo.

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Ficha Técnica:
Adaptação e Direção: Luciano Alabarse e Luís Paulo Vasconcellos

Elenco: Sandra Dani, Marcelo Adams, Sissi Venturin, Fabrizio Gorziza, Vika Schabbach, Ida Celina, Mauro Soares, Margarida Leoni Peixoto, Lurdes Eloy, Fernando Zugno, Rita Maurício, Caína Oliveira Giordani, Luísa Herter, Thales de Oliveira, Eduardo Steinmetz, Gerson de Oliveira, Maria Teresa Costa de Montoya e Letícia Balle.

Preparação de Atores: Luis Paulo Vasconcellos
Cenário: Sylvia Moreira
Figurino: Rô Cortinhas
Iluminação: Maurício Mourav e Cláudia de Bem
Direção Musical: Moysés Lopes
Coreografia: Maria Teresa Costa de Montoya e Letícia Balle
Pinturas Cenário: Adalberto Almeida

Duração: 2h
Classificação Etária: 14 anos

24 de mai. de 2010

Na solidão

Foto: Marina Fujiname

Intervalo

A diferença entre uma cachoeira sobre nossas cabeças e um dia de sol é a chuva. E só é a chuva porque ela é feita de pingos. A gota é uma reação a sua própria ausência, o intervalo entre a cachoeira e o sol. E é preciso perceber a força dos intervalos como momento de pulsão.

O movimento dramático de “Na solidão dos campos de algodão”, de “Bernard-Marie Koltès (1948-1989), se fundamenta na força dos intervalos. É como se todo o texto fosse uma linha única recordada em duas partes: metade se ouve, metade é silêncio. E o que se ouve é dito por dois personagens ou, talvez, dois lados de um só. No silêncio, assim, se diz muito. Se poupa voz para o dizer, se pensa para o dizer. E, no dito, se prepara o ouvido para ouvir, se gasta energia que precisará ser, no fim da palavra, revigorada. E será no então logo após.

É extremamente feliz, e bem-vinda, a atualização do diálogo na situação de dança proposta por Giuli Lacorte, para mim, um dos melhores bailarinos de Porto Alegre no momento. Se o intervalo, cerne do encontro entre o Dealer e o Cliente, personagens do texto, é o mais importante na dramaturgia de Koltès, ele está presente de forma bastante visível na dramaturgia do projeto em questão que ganhou o título de “Na solidão”.

Não sabemos de onde vêm e para onde vão os personagens. O texto se baseia em potências, em possibilidades de vir a ser, em algo que existe antes da existência: pode haver uma cantada num olhar fugidio, por haver a idéia de uma viagem num bilhete de passagem, pode ter havido fome num sanduíche pela metade. Não interessa, nesse contexto, o que havia e o que foi feito com o que havia, mas quais são as possibilidades existentes. E a cena inicial em que os bailarinos Giuli Lacorte e Letícia Paranhos movimentam a cena nela mesma deixa ver essas dúvidas: quem propõe os movimentos, para quê eles servem, o que significam? No ato, se encontram possibilidades de outros atos. Um encontro subjetivo, não menos do que isso.

Há movimentos e paradas: há a preservação do tempo e do espaço como níveis que se encontram no plano abstrato. Alguém vai de um ponto a outro, mas, no meio, há um gesto que quebra a linearidade: o intervalo na dança, a pausa na intenção, o ruído na coreografia, sem deixar de sê-la. Um personagem vê TV e come pipoca. Outro assiste alguém que vê TV e come pipoca. Movimentos começam em sentidos circulares, terminando na visão por sobre a TV, que, no fim, não passa imagem nenhuma.TV e sofá são retirados de cena sendo puxados por cordas pelos atores. Não sabemos quem resiste a quem: o móvel ou o bailarino. Quem propõe? Quem é o Dealer? O que assistem na TV? Nada disso interessa. Importa a potência que a imagem guarda em si. E tudo é muito limpo, detalhisticamente bem cuidado sem ser apolíneo. A produção como um todo, com isso, deixa ver o respeito para quem lhes assiste. Nada é desperdiçado, nem mesmo o que poderia ser um intervalo de sentido.

O ritmo cresce no diálogo dançado entre os bailarinos no banco, caindo logo após o fim da cena. Felizmente, a direção consegue resgatar o espectador para a cena final na escada em que a perseguição sem perseguidor prossegue. O texto de Koltès nada mais privilegia do que uma viagem por dentro de nós mesmos, num encontro entre mim e meu discurso, entre mim e a parte disso que vai para o mundo, que me persegue e que eu persigo. Em “Na solidão”, o epílogo utiliza da dança para expressar essa imagem. E o faz na criação de um movimento cheio de potencialidades, força e mérito.

A parte negativa do espetáculo está no que é dito. Giuli Larcorte e Letícia Paranhos desequilibram a cena quando falam, tão motivados estão para o falar com o corpo. O signo (vocal) lingüístico exige uma série de outros esquemas de representação para dialogar com o corpo. Os melhores momentos desse encontro são aqueles em que a palavra deixa de ser palavra e é apenas som. O sistema volta a funcionar sem entraves, livre, disposto às interpretações que lhe encontrarem como possível. As interpretações são, quem sabe, os campos de algodão que faltam no título.
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Ficha Técnica:

Direção e coreografia: Giuli Lacorte
Elenco: Giuli Lacorte e Letícia Paranhos
Iluminação: Lucca Simas
Produção de palco: Pablo Damian
Fotos: Caroline Bicocchi
Oreintação: Suzane Werber

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