Bodas de Sangue
Foto: divulgação
Estréia com pontos altos
Uma vez, aqui nesse espaço, cometi o terrível engano de dizer que apresentações não oficiais deveriam acontecer na periferia da cidade. Não sendo, pareci preconceituoso e muito corretamente fui repreendido. Agora, tento me corrigir dizendo que try-outs, como os americanos chamam os Ensaios Abertos, podem acontecer em qualquer lugar, desde que sejam anunciados como tais. É pretensioso todo artista que esconde a sua obra antes de sua apresentação oficial. E repito: o público da estréia merece o mesmo bom desempenho que deve ganhar aquele que vai assistir ao espetáculo no fim de sua temporada. Se Luciano Alabarse conseguiu oferecer um ótimo espetáculo na sua premiere, os demais diretores da capital gaúcha também o podem e devem fazê-lo.
Assim, “Bodas de Sangue”, de Federico Garcia Lorca (Espanha, 1898-1936), na atualização dirigida, além de Alabarse, pelo Prof. Luiz Paulo Vasconcellos, traz ao cenário teatral da nossa cidade muitos pontos altos e alguns pontos baixos, elencados aqui, como sempre, no sentido de engrandecer essa arte milenar que deixa nossa cidade tão importante no cenário nacional. O texto, escrito em 1933, abre um trilogia que se completa com “Yerma” (1934) e “A casa de Bernarda Alba” (1936). Já foi também, em 1981, atualizado pelo cinema pelo diretor Carlos Saura, que também o utilizou para abrir a sua própria trilogia, essa composta por “Carmen” (1983) e “Amor bruxo” (1986). Conta a história de uma Noiva que, logo após o seu casamento, foge com seu antigo Noivo, esse também já casado, levando à morte os dois homens, e ao horror todo o seu vilarejo. Numa construção dramatúrgica que pré-ascende o teatro do absurdo, o poeta, que foi executado com um tiro na nuca sem ter tido um julgamento por ser “mais perigoso com a caneta do que são outros com um revólver”, tornava verso e fala o que seus amigos Dalí e Buñuel construíam também em outros campos artísticos. Em “Bodas de Sangue”, a Lua e a Morte ganham personificação num contexto em que, sob nenhum aspecto, beira-se à comédia ou a superficialização. Tampouco o drama de Lorca tende ao melodrama francês ou latino, como também se afasta do psicologismo russo. Se se pode identificar uma filiação, a tragédia clássica inspira, mas está distante pela situação primeira de grande responsabilidade dos personagens em suas próprias ações, o que diminui a intensidade do destino e das forças ocultas tão fortes nos grandes textos trágicos. A humanidade dos personagens de Lorca não encontra oposição aos seus pares divinos. Suas identidades se constroem através de suas trocas entre si e com a própria situação em que vivem. Dessa forma, pode-se dizer que o Naturalismo, entre várias estéticas, é a que menos longe fica dessa magistral herança lorquiana, embora essa escola não seja suficiente para dar conta sozinha de qualquer leitura dessa dramaturgia.
Sissi Venturin e Marcelo Adams são os pontos mais altos dessa produção. Dividem o palco em apenas duas cenas nos 120 minutos de espetáculo, mas a forma como constroem suas interpretações fisga o olhar do espectador sensível à troca de intensidades que ocorre no palco. O jogo habilmente presentificado pelos dois artistas já muitas vezes reconhecidos pelo seu talento em outros trabalhos engrandece e enche de conteúdo a versão de Alabarse e Vasconcellos. Ambos os atores são fortes sem deixarem de ser suscetíveis às propostas apresentadas pelo outro. Mantém seus corpos absolutamente dispostos e são moderados em sua expressão física, permitindo-se completar pelo trabalho em dupla. O inexperiente Fabrizio Gorziza, ao interpretar o marido abandonado, em nada, está menor do que a grande dupla que o circunda. Talvez o seu ausente domínio de cena seja o responsável pela fragilidade de seu papel: o jovem virgem e apaixonado que se enche de fúria ao ser traído. Por saber utilizar bem o que traz ao grupo, merece agradecimentos por tornar maior o trabalho coletivo.
Dois momentos são excelentes na cena de “Bodas”: a sequência do casamento e a do velório. A pujança da primeira, que começa pelo vibrante despertar da noiva e encontra seu ápice na dança flamenca, evidencia um trabalho de opção estética que é resultado de uma pesquisa a que muito temos que aplaudir. A serenidade da segunda, que começa com um canto doloroso da mãe (Sandra Dani) sobre o caixão do filho e se estende pelo embate violento entre a esposa (Venturin) e sua sogra (Dani), deixa claro que todos os minutos passados até ali se justificam.
Não menos interessantes são as trocas de cenário (Sylvia Moreira), os figurinos (Rô Cortinhas) e a trilha sonora (Moysés Lopes), apesar de algumas redundâncias dessa última. Não se pode deixar de bem destacar a recepção do público que acontece sob o aquecimento dos atores numa aula de flamenco (Maria Teresa Costa de Montoya e Letícia Balle ), bem como o elogiável trabalho de Fernando Zugno e Ida Celina, respectivamente, os intérpretes dos perigosos personagens Lua e Morte. Como foi destacado no início, ambas as figuras relacionam o texto às alegorias de Dalí e outros artistas do início do século XX. Daí vem sua periculosidade: um passo em falso e a construção, de uma forma muito fácil, tornar-se-ia superficial. Não é o caso. Os dois atores não deixam a seriedade diminuir e valorizam a poética de suas funções na narrativa.
Os pontos baixos dessa montagem de “Bodas de Sangue” estão nas duas cenas iniciais em que protagonizam Sandra Dani (Mãe) e Lurdes Eloy (Vizinha). Enquanto a segunda arrasta o ritmo do diálogo, falando excessivamente de forma pausada e, por isso, também, pesada, a primeira carrega suas construções de cores que, se lhe deram sucesso em outras produções, aqui cansam o expectador que almeja um pouco mais de história e um pouco menos de reflexão. As construções das duas atrizes lembram o espectador porto-alegrense das montagens clássicas dirigidas por Alabarse, o que é um desvalor. O texto de Lorca não responsabiliza as palavras tanto quanto o texto de Eurípedes. Aqui uma fala encontra lugar na próxima enquanto lá cada frase contém seu significado plenamente estabelecido em separado. De uma forma metafórica, pode-se dizer que o excesso de cores das duas construções acaba por deixar suas participações em preto e branco.
“Bodas de Sangue” é o melhor espetáculo de Luciano Alabarse desde Medéia (2007). A direção dividida com Vasconcellos recebe sua assinatura no simétrico modo de ocupar o palco e nas minuciosas entradas e saídas de cena. São duas horas de espetáculo que engrandece a vida do teatro gaúcho e torna 2010 um ano de grandes estréias ao público sempre bem-vindo.
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Ficha Técnica:
Adaptação e Direção: Luciano Alabarse e Luís Paulo Vasconcellos
Elenco: Sandra Dani, Marcelo Adams, Sissi Venturin, Fabrizio Gorziza, Vika Schabbach, Ida Celina, Mauro Soares, Margarida Leoni Peixoto, Lurdes Eloy, Fernando Zugno, Rita Maurício, Caína Oliveira Giordani, Luísa Herter, Thales de Oliveira, Eduardo Steinmetz, Gerson de Oliveira, Maria Teresa Costa de Montoya e Letícia Balle.
Preparação de Atores: Luis Paulo Vasconcellos
Cenário: Sylvia Moreira
Figurino: Rô Cortinhas
Iluminação: Maurício Mourav e Cláudia de Bem
Direção Musical: Moysés Lopes
Coreografia: Maria Teresa Costa de Montoya e Letícia Balle
Pinturas Cenário: Adalberto Almeida
Duração: 2h
Classificação Etária: 14 anos
9 Comentários:
gostei. está reflexiva.
Depois desse banho de conhecimento e reconhecimentos, vou ver com vontade!
depois desse banho de conhecimento e reconhecimento, vou assistir com tanta vontade...
Crítica à altura do espetáculo. Registro os agradecimentos pela análise esclarecedora e producente. Certo que os pontos altos da peça estão tão mais acima dos baixos, que não nos resta outra opção além de aplaudir toda a produção.
Daniel R.
Excelente texto, de forma simples e objetiva com o que é, de fato, o espetáculo... Bodas de Sangue, no palco do Theatro São Pedro, vale a pena ser conferido sempre! Abs!
Parabéns! Excelente texto, simples e objetivo onde aborda, de fato, esse grande espetáculo... Bodas de Sangue, no palco do Theatro São Pedro, vale a pena ser assistido. Abs!
Excelente espetáculo! Cenário e movimentação cênica perfeitos. Como sempre, Alabarse superou expectativas. Parabéns! Carina Luft
Por favor. O "espetáculo" é deprimente. Produção tão megalomaníaca quanto incompetente.
Eu não entendo nada de teatro, mas sei bem que faço parte de um público seleto. Gostei do espetáculo, gostei do texto e gostei dos coadjuvantes, também acho que ele tem seus altos e baixo, mas acredito que isso não tirou o brilho do espetáculo num todo.
Muito legal teu blog Rodrigo e parabéns pelo trabalho.
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