24 de mai. de 2010

Na solidão

Foto: Marina Fujiname

Intervalo

A diferença entre uma cachoeira sobre nossas cabeças e um dia de sol é a chuva. E só é a chuva porque ela é feita de pingos. A gota é uma reação a sua própria ausência, o intervalo entre a cachoeira e o sol. E é preciso perceber a força dos intervalos como momento de pulsão.

O movimento dramático de “Na solidão dos campos de algodão”, de “Bernard-Marie Koltès (1948-1989), se fundamenta na força dos intervalos. É como se todo o texto fosse uma linha única recordada em duas partes: metade se ouve, metade é silêncio. E o que se ouve é dito por dois personagens ou, talvez, dois lados de um só. No silêncio, assim, se diz muito. Se poupa voz para o dizer, se pensa para o dizer. E, no dito, se prepara o ouvido para ouvir, se gasta energia que precisará ser, no fim da palavra, revigorada. E será no então logo após.

É extremamente feliz, e bem-vinda, a atualização do diálogo na situação de dança proposta por Giuli Lacorte, para mim, um dos melhores bailarinos de Porto Alegre no momento. Se o intervalo, cerne do encontro entre o Dealer e o Cliente, personagens do texto, é o mais importante na dramaturgia de Koltès, ele está presente de forma bastante visível na dramaturgia do projeto em questão que ganhou o título de “Na solidão”.

Não sabemos de onde vêm e para onde vão os personagens. O texto se baseia em potências, em possibilidades de vir a ser, em algo que existe antes da existência: pode haver uma cantada num olhar fugidio, por haver a idéia de uma viagem num bilhete de passagem, pode ter havido fome num sanduíche pela metade. Não interessa, nesse contexto, o que havia e o que foi feito com o que havia, mas quais são as possibilidades existentes. E a cena inicial em que os bailarinos Giuli Lacorte e Letícia Paranhos movimentam a cena nela mesma deixa ver essas dúvidas: quem propõe os movimentos, para quê eles servem, o que significam? No ato, se encontram possibilidades de outros atos. Um encontro subjetivo, não menos do que isso.

Há movimentos e paradas: há a preservação do tempo e do espaço como níveis que se encontram no plano abstrato. Alguém vai de um ponto a outro, mas, no meio, há um gesto que quebra a linearidade: o intervalo na dança, a pausa na intenção, o ruído na coreografia, sem deixar de sê-la. Um personagem vê TV e come pipoca. Outro assiste alguém que vê TV e come pipoca. Movimentos começam em sentidos circulares, terminando na visão por sobre a TV, que, no fim, não passa imagem nenhuma.TV e sofá são retirados de cena sendo puxados por cordas pelos atores. Não sabemos quem resiste a quem: o móvel ou o bailarino. Quem propõe? Quem é o Dealer? O que assistem na TV? Nada disso interessa. Importa a potência que a imagem guarda em si. E tudo é muito limpo, detalhisticamente bem cuidado sem ser apolíneo. A produção como um todo, com isso, deixa ver o respeito para quem lhes assiste. Nada é desperdiçado, nem mesmo o que poderia ser um intervalo de sentido.

O ritmo cresce no diálogo dançado entre os bailarinos no banco, caindo logo após o fim da cena. Felizmente, a direção consegue resgatar o espectador para a cena final na escada em que a perseguição sem perseguidor prossegue. O texto de Koltès nada mais privilegia do que uma viagem por dentro de nós mesmos, num encontro entre mim e meu discurso, entre mim e a parte disso que vai para o mundo, que me persegue e que eu persigo. Em “Na solidão”, o epílogo utiliza da dança para expressar essa imagem. E o faz na criação de um movimento cheio de potencialidades, força e mérito.

A parte negativa do espetáculo está no que é dito. Giuli Larcorte e Letícia Paranhos desequilibram a cena quando falam, tão motivados estão para o falar com o corpo. O signo (vocal) lingüístico exige uma série de outros esquemas de representação para dialogar com o corpo. Os melhores momentos desse encontro são aqueles em que a palavra deixa de ser palavra e é apenas som. O sistema volta a funcionar sem entraves, livre, disposto às interpretações que lhe encontrarem como possível. As interpretações são, quem sabe, os campos de algodão que faltam no título.
*

Ficha Técnica:

Direção e coreografia: Giuli Lacorte
Elenco: Giuli Lacorte e Letícia Paranhos
Iluminação: Lucca Simas
Produção de palco: Pablo Damian
Fotos: Caroline Bicocchi
Oreintação: Suzane Werber

1 Comentário:

Giuli Lacorte disse...

Oi Rodrigo! Obrigado pela crítica! Gostaria de te pedir pra arrumar os créditos da foto, a fotografa é a Marina Fujiname. Valeu querido!

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