Foto: Divulgação
Uma parada na Parada
Hoje é o dia da
II Parada de Teatro. Artistas e técnicos da cidade e arredores desfilam pelas ruas da capital convidando as pessoas para pôr “mais teatro no seu cardápio”. Teatro Gaúcho, principalmente. Com isso, querem(os) chamar a atenção das pessoas para o fato de que o teatro que é feito aqui é de qualidade e, por isso, vale a pena. Questionam(os) o fato de que, no
Projeto 24 horas de Cultura da Semana de Porto Alegre, em apresentações teatrais gratuitas, cerca de 50 (cinqüenta!) pessoas foram embora por não terem conseguido assistir aos espetáculos do Centro Municipal (Teatro Renascença e Sala Álvaro Moreyra), tamanha era a super-lotação, mas que, quando o ingresso é cobrado normalmente (R$ 10 a R$20 em média), a mesma lotação não se repete. E, mais: avisam que, sendo profissionais, é da bilheteria que os atores e seus familiares vivem. Diferente do que, talvez foi um dia, o teatro não consiste nos sessenta minutos, um pouco mais, um pouco menos, de apresentação, mas, sim, na preparação, nos meses de ensaio, nas horas diárias de treinamento corporal, discussão conceitual, criação. Ações que acontecem antes, durante e depois da estréia. O Teatro Gaúcho que é hoje foco das atenções é aquele feito a partir de estudo, planejamento, dedicação total. E, nisso, o teatro daqui, final e oficialmente declara sua distância do teatro amador/estudantil em que a boa vontade era o principal numa produção cênica.
Infelizmente, isso de todo não é verdade. Apesar dos protestos da classe artística, esses feitos não com gritos ou com passeatas, mas com excelentes projetos que recheiam a grade cultural da semana e uma parada festiva anual na comemoração do Dia Internacional do Teatro (27 de março), ainda há muitas produções (disse produções, não grupos, não artistas) que parecem valorizar unicamente a boa vontade. Há blogs e mais blogs que expressam o orgulho de nunca terem estudado teatro e terem aprendido a fazer fazendo. Ou, então, o que é pior: bradam que, se o público gosta, está bom do jeito que está (figurinos compradas em lojas de fantasia, trilhas sonoras tiradas de filmes, textos sem qualquer conexão, interpretações dignas de programas de televisão (que é outro universo e, por isso, nada tem a ver com o teatro), ausência total de direção e, muito menos, concepção.). A aprendizagem que vem da prática é honrada. Mas não é suficiente. Há mais de dois mil anos se escreve sobre teoria teatral e um pouco de dedicação sobre essa literatura não faz mal a ninguém. E não se estuda durante anos sobre direção de arte e estética, interpretação e direção para uma pessoa entrar sob um foco, contar uma piada e achar que o que está fazendo é válido sócio-artisticamente.
É com essa minha participação no evento de hoje que quero falar do espetáculo “
Homem que não vive da glória do passado”, uma produção que não merece nem mesmo a gentileza de um aplauso, apesar de haver nela muito estudo envolvido, mesmo que não saibamos muito bem qual estudo é esse.
Começo por destacar a excentricidade da produção: dividida em duas partes, a divulgação informa que somente 20 pessoas podem participar da primeira parte e é preciso entrar em contato com a bilheteria para reservar seu lugar nesse prólogo. No que ele consiste? João de Ricardo, co-diretor, co-dramaturgo e ator do monólogo, pergunta se sabemos o significado do nosso nome como motivo para uma interessante discussão: “O que é que me faz homem?”. Homem, de fato, é a primeira palavra do título da peça e essa é uma forma de integrar os participantes desse prólogo. João (“Deus é bondoso”), então, muda de assunto, como fará várias vezes durante o espetáculo, contando detalhes (fictícios?) sobre a produção do espetáculo e narra o sonho de um amigo dele (Mister X) que veio ver os ensaios gerais. Somos conduzidos a um túnel escuro com luzes coloridas e onde um espelho é quebrado pelo próprio João. O túnel termina no palco do Teatro, em que as cortinas estão fechadas. Nos sentamos no chão e um debate sobre a origem da vida começa. A conversa é entremeada de luzes coloridas que Carina Sehn e o próprio João vão manipulando lindamente. Douglas Dickel conduz uma sonoplastia carregada de significados que faz desse momento inicial a única parte interessante de toda a peça (que dura mais de duas horas!). A diferença entre homens e animais é outro tema proposto que termina com João ficando nu em cena e prendendo seu órgão genital com fita adesiva. A palavra de ordem dita pelo ator é: “Esse é um espetáculo para ser sentido”. Até, então, senti curiosidade.
João de Ricardo é um dos artistas mais férteis do estado. Cada nova produção que envolve o seu nome desperta o interesse do público porque é reconhecida a sua criatividade e a sua tendência à experimentação. Dentre seus últimos trabalhos está “Teresa e o Aquário”, em que eu não consegui encostar minhas costas na guarda da poltrona tão motivante era cada signo posto ao olhar do público.
Mas signos são lidos a partir de códigos. Não havendo possibilidade de leitura de um código, os signos não são retirados da vida, não se tornam passíveis de leitura, não atingem a secundidade (Peirce), não são estruturáveis (Levi-Strauss e Greimas), não comunicam nada (Eco). Significante e significado (Saussure) são dois lados de uma mesma moeda. Não há como haver um só lado numa moeda. Ela não existe apenas com um lado. O espetáculo de João de Ricardo, até agora, não existe porque não pode ser lido e, pelo que ele mesmo informa, deve apenas ser sentido. E o que se sente é o tédio de ler um livro em japonês sem entender o que significam “aqueles desenhos que parecem letras”.
Fazemos a passagem e, finalmente, ouço um resquício de tudo o que sempre admirei no trabalho desse encenador. O nome de todos os presentes é pronunciado. “Rodriga Monteiro, nascida em 15/01/80 e morta em 27/03/2010.” 1) Saímos do palco e vamos para a platéia. Essa é a passagem de uma vida para outra. Até aqui participamos da encenação. Agora a assistiremos. Qual é a relação entre as duas e a questão vida/morte? 2) Os nomes dos homens são transformados em substantivos femininos. Os nomes das mulheres permanecem como estão. Será a vida uma energia feminina? As respostas não interessam. O que sempre interessou a João foram as perguntas.
Na platéia, no entanto, o que vemos é desolador. O ator, de terno e gravata, corre, faz gracinhas, anda e continua mexendo com luminárias. Sua performance, nesse segundo momento, para a qual não apenas 20 pessoas são chamadas mas todo o público em geral, continua ou é uma infinidade de coisas sem ser nenhuma. Há a proposta de uma dramaturgia e de um personagem. Bruno Gularte Barreto, co-diretor e co-dramaturgo, apresenta o seguinte mote: Um mundo em que todas as mulheres morreram e só há homens. E o personagem: Um homem de 32 anos, que se chama João de Ricardo, que teve uma ou duas experiências sexuais até hoje, que não sai do apartamento a não ser para fazer um estoque de miojo, e a última fez foi há cinco semanas, que usa drogas e vê muita TV. O interesse do mote se dá a partir de seu possível desenrolar (que, de fato, não se desenrola). O que aconteceria num mundo assim? Quanto ao personagem, o interesse vem pela problematização dele, esse um ser que, diferente do que se vende na publicidade do espetáculo, tem pouca relação com o homem moderno comum. A solidão contemporânea, tema já outras vezes tratados em outros espetáculos da Cia. Espaço em Branco, aqui é tratada de forma caricata. Não há sustentação dramatúrgica para o personagem, esse que se mistura com o encenador por terem ambos o mesmo nome e a mesma idade. A solidão vivida pelo homem contemporâneo é interna. O homem se sente só entre muitas pessoas. Alguém que não sai de casa, que não faz sexo e que só come miojo e vê TV em nada se parece comum e que, por isso, para ser um personagem e não apenas a proposta de, precisa de um contexto que dê a ele chance de se estabelecer enquanto elemento de uma narrativa.
A narrativa não acontece apesar de vários elementos serem postos em cena. Imagens belíssimas são dispostas. Um trabalho de luz e uma trilha sonora dignas de elogios efusivos. Mas, em nada um elemento se relaciona com o outro e aqui voltamos à parte em que tratamos sobre a ausência de um código. O Apocalipse, último livro da bíblia e o mais imagético dos 72 (ou 73 dependendo se ela for católica ou protestante), é citado, talvez, como desculpa para a bagunça conceitual ou ausência de conceito. Mas é importante destacar que a carnavalização de Nietzsche e também estudada por Bakhtin nada tem com isso. Lá não há assistência e só participação. Aqui há o histrionismo de um ator e também de seu grupo querendo utilizar elementos da performance art e dos usos de som e de vídeo (já cansados de serem usados lá nos anos 70) para discutir um tema batido e que, podendo como todos ser trazido ao palco de forma inteligente, não é feito nem de forma inteligível.
O pior de toda essa produção é o fato de, em cena aberta, João se desculpar tomando leite no gargalo da caixinha, voltando a solicitar a participação do público inerte, sugerindo que nunca ousem dirigir e atuar no mesmo espetáculo. E a peça termina da forma mais clichê possível, contrariando todos os anos de trabalho interessante que a
Cia Espaço em Branco construiu: uma família mascarada sentada num sofá vendo TV, enquanto João fica procurando nervosa e pateticamente a tomada entre um emaranhado sujo de fios e mais fios para desligar uma a uma as fontes de luz da cena.
“Homem que não vive da glória do passado” traz, apesar de tudo, uma coisa boa para o teatro num dia tão especial como o de hoje. É a prova de que não importam os anos de experiência, os títulos que você acumule, as críticas elogiosas e os prêmios recebidos. Ninguém está livre de, um dia, produzir um fracasso.
Mas, sinceramente, eu espero que fracassos como esse não sejam produzidos com o importante e valiosíssimo
Prêmio Funarte Myriam Muniz. Porque desperdício de dinheiro público, assim, não merece, como eu disse, nem mesmo a gentileza de um aplauso.
Feliz Dia Internacional de Teatro. Boa Parada a todos!
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Um espetáculo da Cia Espaço em Branco
Criação e Performance: Bruno Gularte Barreto, Douglas Dickel, Carina Sehn, João de Ricardo e Pedro Karam
Direção e Vídeos: Bruno Gularte Barreto e João de Ricardo
Dramaturgia: Bruno Gularte Barreto e João de Ricardo, baseados no conto original de Bruno Gularte Barreto
Iluminação: Carina Sehn
Sonoplastia: Douglas Dickel
Câmera, Assistência geral e de multimídia: Pedro Karam
Assistência e finalização de vídeos: Caroline Barrueco
Produção e Assistência de Direção: Sissi Venturin
Design Gráfico: João Paulo Tiago e Bruno Gularte barreto
Figurinos: Spirito Santo e Azul Cobalto
Iluminação: Carina Sehn