Descrição de uma imagem
Foto: Kiran Prem
Imaginemos a cena: eu mais dois amigos. Peço que um deles feche os olhos. Tiro minhas chaves do bolso sem fazer barulho e coloco no outro bolso. Então, peço que meu amigo abra os olhos e me diga se eu mudei. Ele responde que não. Então, o amigo que permaneceu com os olhos abertos e viu o que eu fiz diz que sim, que eu mudei as chaves de lugar. Se a minha imagem era aparentemente a mesma, por que para um eu era o mesmo e para o outro eu era diferente? A resposta está nos olhos abertos ou fechados, no acesso perceptivo e no desacesso. “Descrição de uma imagem”, espetáculo do Grupo Barraquatro, é um tratado de semiótica escrito pelo alemão Heiner Müller (1929-1995) em 1986. A encenação, dirigida por Júlia Rodrigues (Projeto 1: Picasso e Desejo) é o resultado do projeto vencedor da 2ª edição do Concurso de Montagem Teatral para novos diretores, realizado pela Coordenação de Artes Cênicas da Secretaria Municipal da Cultura em parceria com o Instituto Goethe de Porto Alegre.
Completamente desprovido de linha dramática, a dramaturgia se estrutura em cima dos diferentes acessos e desacessos que nós, o público, temos de todas as imagens que os atores vão construindo verbal ou não-verbalmente em cena. Alguns de nós “vimos os atores esconderem a chave”, outros não. Em outras palavras, as imagens dizem algo para mim, outro algo para a pessoa que está ao meu lado. O diferencial disso em relação a qualquer outra peça teatral é que esse jogo é o mais importante aqui, na fruição desse espetáculo. Para outras produções, por exemplo, é muito importante que todos tenham uma base comum de interpretação farta para entender a peça. Em “Descrição de uma imagem”, o prazer é o não entendimento. E como funciona esse prazer?
O amigo que não fechou os olhos viu que eu troquei as chaves de bolso. Essa imagem é propriedade dele e é o diferencial dele em relação ao amigo que fechou os olhos. O interessante do espetáculo protagonizado por Thiago Pirajira e Kayane Rodrigues é saber que eu tenho informações que o espectador ao meu lado não tem. A nuvem, a estrutura da nuvem, a cicatriz, o beijo, a mesa, o bloco, todos os signos da cena são dispostos a convidar quem tem acesso perceptivo a eles a interpretá-los como quiser. Nesse sentido, é extremamente positiva a forma como Júlia Rodrigues dirigiu a construção dos personagens pelos seus atores. Thiago e Kayane, exatamente como fizeram nos outros espetáculos do mesmo grupo, interpretam figuras bastante próximas da neutralidade possível. Ambos são instrumentos da palavra e do gesto, executando movimentos que se misturam com os poucos objetos cênicos quase em mesmo nível hierárquico, o que deixa para o espectador a tarefa de dar maior importância para isso ou para aquilo segundo a sua própria vontade.
Os figurinos são belos na sua busca pela neutralidade concordante com a interpretação. A iluminação de Bathista Freire ratifica a fama de um dos melhores iluminadores desse estado que tem o seu artista. A trilha sonora, parcialmente interpretada ao vivo por Ricardo Pavão, é um dos pontos mais altos da produção que tem o seu lugar no cenário teatral gaúcho por explorar , utilizando o texto de Müller, unicamente o teatro naquilo que lhe é mais essencial: o ator e o movimento. “Descrição de uma imagem” olha para algumas produções locais e pergunta: o vídeo é mesmo insubstituível?
*
Ficha técnica
Direção: Júlia Rodrigues
Atuação: Thiago Pirajira, Kayane Rodrigues e Kyky Rodrigues
Figurinos: Letícia Pinheiro
Cenário: Elcio Rossini
Iluminação: Bathista Freire
Trilha Sonora: Ricardo Pavão
Preparação Corporal: Dagmar Dornelles
Produção: Daniela Dutra
Realização: Grupo Barraquatro
Tratado de Semiótica
Imaginemos a cena: eu mais dois amigos. Peço que um deles feche os olhos. Tiro minhas chaves do bolso sem fazer barulho e coloco no outro bolso. Então, peço que meu amigo abra os olhos e me diga se eu mudei. Ele responde que não. Então, o amigo que permaneceu com os olhos abertos e viu o que eu fiz diz que sim, que eu mudei as chaves de lugar. Se a minha imagem era aparentemente a mesma, por que para um eu era o mesmo e para o outro eu era diferente? A resposta está nos olhos abertos ou fechados, no acesso perceptivo e no desacesso. “Descrição de uma imagem”, espetáculo do Grupo Barraquatro, é um tratado de semiótica escrito pelo alemão Heiner Müller (1929-1995) em 1986. A encenação, dirigida por Júlia Rodrigues (Projeto 1: Picasso e Desejo) é o resultado do projeto vencedor da 2ª edição do Concurso de Montagem Teatral para novos diretores, realizado pela Coordenação de Artes Cênicas da Secretaria Municipal da Cultura em parceria com o Instituto Goethe de Porto Alegre.
Completamente desprovido de linha dramática, a dramaturgia se estrutura em cima dos diferentes acessos e desacessos que nós, o público, temos de todas as imagens que os atores vão construindo verbal ou não-verbalmente em cena. Alguns de nós “vimos os atores esconderem a chave”, outros não. Em outras palavras, as imagens dizem algo para mim, outro algo para a pessoa que está ao meu lado. O diferencial disso em relação a qualquer outra peça teatral é que esse jogo é o mais importante aqui, na fruição desse espetáculo. Para outras produções, por exemplo, é muito importante que todos tenham uma base comum de interpretação farta para entender a peça. Em “Descrição de uma imagem”, o prazer é o não entendimento. E como funciona esse prazer?
O amigo que não fechou os olhos viu que eu troquei as chaves de bolso. Essa imagem é propriedade dele e é o diferencial dele em relação ao amigo que fechou os olhos. O interessante do espetáculo protagonizado por Thiago Pirajira e Kayane Rodrigues é saber que eu tenho informações que o espectador ao meu lado não tem. A nuvem, a estrutura da nuvem, a cicatriz, o beijo, a mesa, o bloco, todos os signos da cena são dispostos a convidar quem tem acesso perceptivo a eles a interpretá-los como quiser. Nesse sentido, é extremamente positiva a forma como Júlia Rodrigues dirigiu a construção dos personagens pelos seus atores. Thiago e Kayane, exatamente como fizeram nos outros espetáculos do mesmo grupo, interpretam figuras bastante próximas da neutralidade possível. Ambos são instrumentos da palavra e do gesto, executando movimentos que se misturam com os poucos objetos cênicos quase em mesmo nível hierárquico, o que deixa para o espectador a tarefa de dar maior importância para isso ou para aquilo segundo a sua própria vontade.
Os figurinos são belos na sua busca pela neutralidade concordante com a interpretação. A iluminação de Bathista Freire ratifica a fama de um dos melhores iluminadores desse estado que tem o seu artista. A trilha sonora, parcialmente interpretada ao vivo por Ricardo Pavão, é um dos pontos mais altos da produção que tem o seu lugar no cenário teatral gaúcho por explorar , utilizando o texto de Müller, unicamente o teatro naquilo que lhe é mais essencial: o ator e o movimento. “Descrição de uma imagem” olha para algumas produções locais e pergunta: o vídeo é mesmo insubstituível?
*
Ficha técnica
Direção: Júlia Rodrigues
Atuação: Thiago Pirajira, Kayane Rodrigues e Kyky Rodrigues
Figurinos: Letícia Pinheiro
Cenário: Elcio Rossini
Iluminação: Bathista Freire
Trilha Sonora: Ricardo Pavão
Preparação Corporal: Dagmar Dornelles
Produção: Daniela Dutra
Realização: Grupo Barraquatro
1 Comentário:
Acredito que o texto não seje totalmente desprovido de uma história.... Apesar de tudo. conta a historia de um assassinato seguido de ressureição ( tentando explicar de maneira breve.
E isso, foi algo completamente ignorado pela montagem... O texto foi praticamente deixado de lado
Postar um comentário