10 de out. de 2009

Frida Kahlo, à revolução

Foto: Nina Zagonel

Expressar é começar a libertar-se.

Às vezes, é uma pena quando um espetáculo termina. As luzes vão se apagando lentamente, a voz da atriz ou do ator fica silenciosa, a música chega ao fim. Diferente do cinema, em que a platéia acende de repente, os créditos sobem e todo mundo se levanta apressado, uma peça de teatro, que pode acabar de diversos modos, chega ao fim com um grande respeito. Não sei se é um gesto em favor da história e dos personagens, como que se nos despedíssemos deles uma vez que sabe-deus-quando-eles-voltarão-a-habitar-entre-nós. Talvez um respeito pelas lembranças e emoções que vieram à tona, ou pelas reflexões e pelos prazeres sensoriais que a fruição proporcionou. Quem sabe até pelo espaço, pelo teatro construção iluminado, preparado especialmente para aquela ocasião que agora chega ao fim. Com ou sem gritos, os aplausos (mornos ou febris) sempre vêm, nem que sejam em agradecimento por finalmente ter terminado. Juçara Gaspar, através de sua Frida Kahlo, diz: “Expressar-se é começar a libertar-se.” Para mim, e sou gratíssimo à atriz por essa oportunidade, sinto que escrever sobre uma peça é um meio de eu me libertar dela.

Já me perguntaram por que me exponho tanto nas críticas, por que falo tanto de mim e do meu passado. Por que não vou direto ao assunto e apenas analiso à peça a que assisti? A resposta é muito simples: não me sinto capaz de analisar peça alguma. E acho que ninguém é. Porque a peça, o espetáculo, é inatingível em sua totalidade, como nos ensina Peirce. O mundo também o é. Com três mil ou apenas dez pessoas, cada um da platéia viu/sentiu coisas diferentes da mesma fruição. E quem norteia essas diferenças são as próprias histórias de vida que são diferentes. Algumas pessoas dar-se-ão conta de detalhes só horas ou dias depois da assistência porque é assim que é a sua percepção. Há quem precise ver mais de uma vez. Outras assistem várias apresentações porque gostam de rever e reencontrar-se naquele momento único. O que disponho, exponho e analiso nos meus textos é sempre a minha impressão, aquelas emoções, lembranças, questionamentos, decisões, propostas que em mim se despertaram a partir da motivação cênica. Seja boa ou má a minha impressão (notem que não falei da peça, e, quando falo dela, leia-se sempre minha impressão sobre ela), aplaudo compartilhando, na escrita, o que chegou a mim. Daí não haver notas, bonequinhos que aplaudem, mãozinhas com polegares para cima ou para baixo, etc. Uma impressão não se manifesta assim, ou, pelo menos, não consigo fazê-lo, tão simplesmente.

A motivação para esse texto veio através do monólogo “Frida Kahlo, à revolução” dirigido por Daniel Colin. É (e, como sempre, leia-se: “para mim, é”...) um espetáculo teatral que conta a vida da artista plástica mexicana que viveu na primeira metade do século passado e cujos quadros expressam a força da dor. A dramaturgia se organiza (a impressão que eu tenho dela é que ela assim se organiza...), o que é uma pena, do jeito tradicional começando pelo início da vida da pintora e culminando com momentos antes de sua morte. Disse que era uma pena porque, quando isso acontece, nossa mente calcula sem falha que, se começou na infância, vai terminar na morte. O assistir se torna esperar, o que é frustrante de um modo geral. Kahlo, devo dizer, não é uma personagem fácil de ser interpretada. Com isso não quero dizer que há personagens fáceis, mas preciso comentar o fato de que há caracteres que, por sustentarem emoções nada comuns, exigem representações mais complexas. Pelos quadros podemos visualizar a extensão da dor, mas me é impossível identificar que dor é essa tamanhas foram dificuldades que enfrentou essa mulher em sua vida. Juçara Gaspar, em termos de força, deixa sua composição a desejar em vários momentos, superficializando passagens. Movimentos, danças, gestos disfarçam as sensações que ansiamos por sentir pelas indicações que trazemos e pelas propostas apresentadas pela direção. Não senti isso sempre porém. Em vários momentos, Gaspar se relacionou com o público tão bem, sentindo-se tão a vontade com o personagem que nos fez esquecer da linha biográfica e da espera.

A música ao vivo de Luciano Alves preenche as sensações que nos faltam no texto, esse nem sempre esclarecedor, o que, em se tratando de uma artista tão profunda como Kahlo, é bom. O músico, no entanto, não participa da narrativa, embora esteja no palco sob um foco de luz. Fora isso, todos os elementos dispostos por essa concepção são ricamente aproveitados e nos conduzem a uma relação com essa personagem de uma forma muito humana e viva. É interessante ver como a atriz vai nos conquistando aos poucos. E aqui preciso comentar o título do espetáculo.

“Frida Kahlo, à revolução” é um título com dois sentidos: um lido, outro falado. O primeiro nos dá a ver a crase e, antes, o vocativo. “Frida Kahlo” é um chamamento. Convocamos Kahlo a ir para a revolução, para que ela vá à revolução. O segundo, que dispensa a escrita, usa a segunda parte da frase como aposto. É como se “a revolução” (sem o sinal somente gráfico e não sonoro que é a crase) fosse uma explicação de “Frida Kahlo”, a primeira parte da frase. “Frida Kahlo” é “a revolução”. Sendo um monólogo em que vemos, ouvimos e sentimos a história de uma única personagem ser contada, nossa identificação se dá focadamente. Frida conduz a história, a sua própria história e, vendo, ela vê por nós. Somos a revolução e nos convidamos para tal. Daí a sensação de humanidade que o grupo conseguiu fazer despertar em mim, eu que, felizmente até hoje, não cheguei perto de vivenciar sofrimentos tão brutais como sabemos que a pintora teve.

Poderia encerrar dizendo que há mais que humanidade no universo de Frida Kahlo como, por exemplo, o amor ao México e seu vínculo político com o comunismo e o anarquismo, entre outros. Ainda que tenham sidos citados, esses níveis não foram tão plenamente contemplados.

Ou será que essa foi apenas a minha impressão?

Que venha a revolução!

*

Ficha Técnica

Pesquisa e atuação: Juçara Gaspar

Direção: Daniel Colin
Trilha Original: Luciano Alves
Iluminação: Felipe de Galisteo
Cenário: Lara Coletti
Preparação Corporal e Coreográfica: Daniele Zill
Músico Convidado: Luciano Alves

2 Comentários:

Rodrigo Monteiro disse...

"O que o homem contempla no teatro é o que ele próprio furtou, é a sua essência, tornada estrangeira, retomada contra ele, organizada de um modo coletivo cuja realidade é a despossessão."

O espectador emancipado, Jacques Rancière

Una cuate disse...

É um ganho pra um trabalhador reler impressões sobre o que têm feito de seu trabalho. Mesmo agora, pós temporada do PVA, quase dois anos depois, sinto aflições e alegrias extremas com nossa Frida que aquecem ainda mais essa relação e a percepção de que a coisa nunca pára. Pode pausar, mas não se esgota. O poço é profundo.
Obrigada por participar dessa história, já que o texto vira documento, expressa pertinência e por ser assim, é parte de um processo.

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