19 de nov. de 2009

Lady Day


Foto: La Photo

Sapatos na porta

Eu gosto de teatro por causa de sensações como a que vivencio ao assistir espetáculos como “Lady Day”.

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Outro dia estava lendo sobre o costume oriental de tirar os sapatos antes de se entrar na casa alheia. Lembro que, quando me mudei para o Rio Grande do Sul, achava muito interessante os sapatos do lado de fora da porta, deixados por quem não queria manchar os pisos encerados das casas de madeira. Várias famílias de colegas meus mantinham pares de feltros a disposição dos visitantes para que andassem de meias sem sujá-las. Eu e minha mãe, paulistas, resistíamos a esse hábito: nossa casa é toda com piso de cerâmica. Mas dizia o texto que o costume de entrar descalço é um sinal de aceite da hospitalidade. É dizer “É com muito respeito que eu piso descalço nesse chão que foi limpo para me receber”. O anfitrião oferece. Com humildade, o visitante usufrui.

Melissa Arievo não só entra descalça no piso vermelho do cenário, mas joga-se nele. Serve-se dele. Com muito respeito, usufrui. Vestimos uma roupa legal, nos dirigimos ao teatro, sentamos e esperamos a luz apagar. Limpamos a casa, enceramos o chão. Ela é bem-vinda.

Interessante, e difícil, reconhecer como se dá a construção dessa relação com a atriz. Geralmente, são os atores que preparam o teatro para o público. De alguma forma, os espectadores é que se sentem bem vindos. Em “Lady Day”, fico pensando naquilo que faz com que a tradição se inverta. Talvez porque Melissa Arievo seja uma atriz jovem com uma força que me faz lembrar (e muito) de Evelyn Ligocki em “Borboletas de Sol de Asas Magoadas”. Talvez porque seja negra, como Billie Holiday. Talvez porque seja linda e provida de uma voz também naturalmente linda e tecnicamente bela. Talvez porque “Lady Day” seja um monólogo e todos sabemos da dificuldade que é fazer (bem) um. Na mesma busca, fico me perguntando se não será pelo vermelho do palco, pela música, pelo espaço que já é aconchegantemente livre, libertador e libertário. O bom de escrever uma crítica é o desafio de, na busca aos porquês, chegar perto do prazer vivido como forma de pedir que fique mais um pouco.

A dramaturgia começa por uma não-dramaturgia, se é que isso é possível sob um refletor. Melissa se apresenta e nos toca pela relação dela com a personagem. Então, abaixa-se e, ao subir, estamos com Billie Holiday (1915-1959), ou Lady Day, a maior cantora de jazz da história. Com isso, entendemos que não importa se Melissa não tenha a idade de Billie, se conserve suas próprias reações (sorriso largo, olhos ágeis, corpo ereto) não se mascarando com supostos movimentos colhidos em vídeos tardios da cantora personagem, ou se nunca tenha sido mãe, não seja cantora profissional e nunca tenha sentido preconceito. O que vale é que, em retribuição à acolhida, Arievo nos faz conhecer sua relação de amizade com essa senhora, cujo nome verdadeiro nem se conhece. Amizade sua, mas também da equipe, essa brilhantemente dirigida por Marco Mafra: mão forte em acariciar cada cena desse monólogo tão repleto de boas qualidades. Como quem não se sente dado à falta de hospitalidade, recebemos o que a visitante nos traz com um sorriso e outras provas de efeto. Gratos pela visita e, depois, pelo que isso nos trouxe.

Figurino e luz solicitam nossa abertura de olhos a fim de registrar o momento, mas é na ação que se encontra o teatro. Vestir-se, cantar, sentar e fumar são gestos cuja mediocridade foi muito bem escondida pelo grupo. É com dor que Melissa se desveste, é com prazer que ela se senta e seu fumar num contra-luz laranja surpreende, ratifica, e concorda como se não houvesse aí uma contradição. Todos os usos são ricos e potentes.

Em se tratando de um monólogo sobre uma cantora da primeira metade do século XX, era de se supor que o microfone antigo exposto desde o início fosse cansativamente usado. Não é. O detalhe é que cada signo teatral é resgatado apenas num único momento, naquele que é seu. É nesse sentido que se encontra a carícia do diretor, o valor da dramaturgia, a inteligência dessa equipe. Se por aí dizem que são fracos os sensíveis, há que se forte para manipular os sentimentos próprios e, quem sabe, os alheios.

Mas por mais que eu tenha me empenhado em pedir que Melissa e Billie fiquem um pouco mais, a luz se apaga. Seus sapatos estão na porta. E ela se vai.

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Direção: Marco Mafra
Atuação: Melissa Arievo
Iluminação: Mariana Terra

Concepção Sonora: André Paz
Maquiagem: Sibele Garroni
Fotos: Studio La Photo - Produção Ângela Martins
Produção: Marco Mafra e Melissa Arievo

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