6 de ago. de 2016

O mal entendido (RS)

Foto: Adriana Marchiori

Fernanda Petit
Texto de Albert Camus ganha excelente versão brasileira

O excelente “O mal entendido”, um dos espetáculos de maior destaque em 2015 na capital gaúcha, está de novo em cartaz em Porto Alegre. A peça, com dramaturgia e direção de Daniel Colin, é uma adaptação do original homônimo do franco-argelino Albert Camus (1913-1960) escrito em 1943 e que ganha, com essa montagem, sua primeira versão no Brasil. Na história, um homem pretende fazer as pazes com seu passado, reencontrando-se com a mãe e a irmã com quem há muito tempo não tem contato, mas elas não o reconhecem. Por causa disso, confundido com mais um hóspede, ele acaba participando dos terríveis meios que elas encontram para alimentar o sonho de sairem dali e verem o sol. Pedro Nambuco, Carla Cassapo, Elison Couto estão no elenco, mas Gabriela Grecco e principalmente Fernanda Petit brilham em excelentes atuações. A peça pode ser vista até o dia 14 de agosto no Teatro de Arena, no alto do Viaduto da Borges de Medeiros, na zona central de Porto Alegre.

O expressionismo na direção de Daniel Colin
A história se passa em uma hospedaria abandonada em um distante lugarejo próximo a uma represa e longe do mar. A peça começa com a chegada de Jan (Elison Couto) que vem, vinte anos depois, para retomar o contato com sua Mãe (Gabriela Grecco) e com Marta, sua irmã mais nova (Fernanda Petit). O problema é que ele não é reconhecido por elas e, com medo de uma recepção negativa, posterga a apresentação de sua verdadeira identidade para o espanto de sua esposa Maria (Carla Cassapo). Ao se hospedar escondendo a verdade, acaba despertando a cobiça das duas que percebem que ele é um homem de posses.

Marta, como o irmão da parábola bíblica do filho pródigo, permaneceu com a Mãe em sua velhice, mas alimenta o desejo de partir, conhecer o mar, o amor e o sol. Para realizar esse sonho, as duas costumam assassinar os hóspedes solitários mais ricos, jogando seus corpos na represa e engordando suas economias. Jan é uma vítima em potencial, embora a Mãe, por algum motivo que ela desconhece, relute em praticar o mesmo crime tantas vezes feito anteriormente.

Escrito, no meio da ocupação nazista na França, com influências do expressionismo, o texto “Le Malentendu” recebeu, ao longo das décadas, análises que o associam ao existencialismo e ao absurdo. Além do trecho do evangelho (Lc 15, 11-32), o texto se associa às tragédias “Electra”, de Eurípedes, e “Antígona”, de Sófocles. A adaptação de Daniel Colin mudou, na dramaturgia, o ritmo das cenas, mantendo sua força positivamente.

Na direção, o encenador confortavel e de modo excelente privilegiou o tom expressionista. Desse modo, é possível perceber sua versão também a partir dos olhos de Jan: a esposa amada, a mãe e a irmã assustadoras e o criado (Pedro Nambuco) enigmático. O clima solar de onde o protagonista vem é uma referência longínqua à umidade da região onde ele se encontra. Tudo é enegrecido, podre, doente.

Ao longo da peça, o fato dos atores não sairem de cena confere à fruição o aspecto sufocante em que a fluidez do texto se pauta positivamente. O público, que tem informações privilegiadas em relação aos personagens, consegue ler, a partir disso, o todo das relações que se estalecem na narrativa. O modo como a direção de Colin organiza a estrutura da cena e a articulação dos quadros, além de oferecer belos panoramas ricos em experiências sensoriais, nutre, apresenta e defende uma estética potente ao todo.


Gabriela Grecco
O brilho de Gabriela Grecco e de Fernanda Petit
Carla Cassapo, apresentando a Esposa Maria, consegue alguns méritos no pouco espaço possível no contexto narrativo positivamente. Ela representa o presente de Jan e serve, em termos de função na dramaturgia, para questioná-lo sobre os motivos que o levam a se esconder da própria família. Elison Couto, com melhores oportunidades no início da peça, permite-se sucumbir ao protagonismo de Marta durante o desenvolvimento da história. Em outras palavras, a narrativa começa em Jan, mas não é nele que está seu melhor. Com afinco e dedicação, o intérprete mobiliza um conjunto de expressões sutis que oferecem profundidade ao todo, sem se opor à hierarquia dos sentidos, o que é elogiável. Pedro Nambuco, no seu Criado quase silencioso, defende com ótima participação a figura forte de seu pequeno personagem.

Gabriela Grecco, em mais um belíssimo trabalho de interpretação, oferece um conjunto enorme de níveis diversos à personagem da Mãe. Em excelentes contracenas, com presença fulgurante nos silêncios e voz imponente nos diálogos, sua colaboração assina boa parte dos melhores méritos da produção. Um a um, os desafios são ultrapassados com galhardia em um quadro cheio de méritos.

Fernanda Petit, de novo, está excelente! Como Grecco, mas com maior número de desafios devido ao protagonismo de sua personagem, vê-se, em seu trabalho aqui, nobre pesquisa no interior de cada intenção, resposta e movimento. Suas expressões, nesse sentido, são claras, mas não óbvias, em tempos inteligentes e fortes. O melhor é reparar o jeito como sua Marta, de vilã, assume o precioso aspecto humano que é capaz de manter as narrativas trágicas e o conceito expressionista próximos da contemporaneidade. Isso sem falar na importância do personagem do irmão na parábola do Filho Pródigo, através do qual, toda a história faz sentido há dois mil anos. Uma performance destacável!

Montagem exuberante que merece viajar pelo país
“O mal entendido” tem ótimas colaborações do cenário de Marco Fronckowiak e de Rodrigo Souto Lopes, da luz de Carlos Azevedo, da trilha sonora de Beto Chedid, do figurino de Antônio Rabadan e do visagismo de Elison Couto. Ao longo da apresentação, o palco vai sendo inundado por água que banha os intérpretes, afogando os personagens em suas buscas pelo passado (Jan) e pelo futuro (Marta). O feito, tecnicamente complicado e em ótimo uso aqui, além de ser visualmente impactante, é, na ordem do conteúdo, bastante inteligente. Mãe e Marta se distanciam de Jan e Maria quanto ao guarda-roupa, oferecendo, com brilhantismo ao panorama, espaço fértil para o reconhecer das relações além do que já faz a dramaturgia. Tons mais escuros de verde e de vermelho oferecem respiro enquanto as lentes de contato e os cabelos prendem a atenção. A iluminação de Carlos Azevedo e a trilha sonora de Beto Chedid ampliam as possibilidades do espaço cênico, alargando a experiência estética com diagonais e fontes espalhadas de som. 

A produção brasileira de “O mal entendido” ganhou dez indicações em nove categorias do Troféu Açorianos de Teatro Gaúcho de 2015, vencendo nas de Melhor Iluminação, Cenário, Atriz Coadjuvante (Carla Cassapo) e de Atriz (Gabriela Grecco). Trata-se de uma montagem exuberante a qual se deseja que viaje para outras regiões do país a fim de que outros públicos, e não só os gaúchos, tenham acesso à sua enorme qualidade estética. Aplausos!

*

Ficha técnica:
Texto: Albert Camus
Dramaturgia e Direção: Daniel Colin
Atuação: Fernanda Petit, Gabriela Greco, Elison Couto, Carla Cassapo e Pedro Nambuco
Iluminação: Carlos Azevedo
Trilha sonora: Beto Chedid
Figurinos: Antonio Rabadan
Maquiagem e Cabelos: Elison Couto
Cenário: Marco Fronckowiak e Rodrigo Souto Lopes
Registro fotográfico: Jorge Scherer e Adriana Marchiori
Produção: Fernanda Petit

1 Comentário:

do avesso disse...

Deu vontade de assistir. De quem são as fotos? São indas!

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