21 de jun. de 2009

Desvario


Foto: Elisa Viali


Viagem

Em alguns momentos da minha vida em que ou enlouqueci ou somente pareci que estava enlouquecendo, ouvi uma frase bem comum do linguajar de hoje: “Rodrigo, você está viajando!”

Viajar é sair do lugar onde mora e ir para outro lugar por um tempo. Viajar não é mudar-se para outro lugar. É ficar temporariamente num espaço incerto. A incerteza pode ser boa ou pode ser ruim. A viagem pode ser boa ou pode ser ruim. A loucura pode ser boa ou pode ser ruim. Fins, às vezes justificam. Comos, às vezes justificam. Com quens, às vezes justificam. E, às vezes, nada justifica porque também, às vezes, justificativas não são necessárias. Importa ainda dizer que já me arrependi de ter viajado. Mas também já me arrependi de não ter viajado. Acho que a loucura é válida porque a volta dela é sempre revigorante. Negativamente ou não.

Talvez seja por isso que um aeroporto seja o lugar onde Desvario, texto escrito pelo argentino-chileno Jorge Diaz (1930-2007), começa. Um homem com malas. Uma esteira com malas. Uma voz de aeroporto e um carrinho para malas. Mas o aeroporto se desfaz. Os atores o chamam de casa. Casa? Sim. Casa.

Os personagens não sabem quem são. Não sabem se vieram ou se vão. Se é dia ou noite. Se se conhecem ou se nunca foram apresentados. Chamam-se de marido e esposa, mas não lembram-se de si mesmos e, muito menos, do alheio. Discute-se a relação. Mas antes dessa acontecer com o outro, fala-se desse acontecimento consigo mesmos. A sós, eles não sabem quem são. E é no outro que, talvez, essa resposta seja encontrada. A viagem começa.

A peça muito bem dirigida por Tainah Dadda fala sobre solidão. A solidão de quem se sente só consigo mesmo. E eu que penso que teatro do absurdo hoje é, antes de tudo, um exercício museológico de fazer teatro (lembrar que houve um dia que autores resolveram se rebelar contra o realismo alienante e criaram um outro tipo de dramaturgia não-dramática, não pós-dramática, mas justamente não-dramática) me surpreendi quando li que o texto é de 2002. De fato, o texto de Diaz é tão atual quanto o Orkut (meu profile Chernobyl é de 2004!).

O protagonista, vulgo “Pastel”, interpretado pelo excelente Leandro Leffa, não gosta do outro personagem masculino, o fortão, interpretado pelo não menos excelente Lucas Sampaio. Um pensa que o outro é amante de sua mulher, mas um dos dois, afinal, é casado? E quem aqui que não se enciumou de alguém cuja relação não estava acertada que comente no espaço para isso dedicado (mas, por favor, identifique-se porque essa história de ir lá e me esculhambar sem se identifcar já é meio piada...).

Falando em piada, “Desvario” é feito para pensar que estamos vendo uma comédia. Leffa é um comediante perfeito: sutil, sensível e bastante longe de qualquer estereótipo. Sampaio, por outro lado, joga com o que tem de melhor: um ar de ingenuidade versus uma figura cênica grande em relação ao de seu colega de cena. Mas os diálogos não são sempre cômicos, como quase nunca são as situações. É fato o que a limpa produção, de Airton de Oliveira e Maura Sobrosa, informa no programa: “Está claro que Jorge Diaz não é um ator para dias de leveza e de festa.”

Nessa loucura toda há lampejos de consciência: “Eu não consigo entender, afinal, o que diabos vocês ainda fazem aqui?!” nos pergunta o protagonista e, nas minhas viagens, tive saudade da minha casa, da minha claridade, da segurança da porta do meu quarto. E uma nova personagem surge. Elisa Volpatto entra em cena como uma cantora lírica que diz ser, na verdade, um ex-caminhoneiro que descobriu-se como alguém muito feio e que queria ser melhor. O lindo corpo feminino que vemos seria, na verdade, de um homem barrigudo acostumado à churrascarias de postos de gasolina? Os cabelos são mentira: a cantora, como a de Ionesco, é careca. E cega. Engoliu as lentes e, agora, pode enxergar muito melhor seu eu interior. Será que se eu engolir meus óculos teria a mesma visão sobre mim mesmo?
Ursula Collischonn interpreta a dona de casa que mora no espaço que, para nós, continua a se parecer bem mais com um aeroporto. Seus ombros estão enrijecidos e seus cabelos muito bem penteados. A personagem é a exata esposa perfeita para o personagem de Leffa e torcemos para que, seja lá quando acontecer a auto-consciência e o fim da viagem, os dois possam ficar juntos. Os figurinos são bons e o cenário é funcional e esteticamente adequado. A luz deixa o proscênio às escuras em alguns momentos e é falha também em outros. A trilha é sempre muito bem posta. E o todo é um arranjo com um só nó. “Se Deus existisse, tudo faria sentido.”

Fiquei pensando que a peça é longa e que uns bons pares de minutos a menos ajudaria. Mas, ao olhar o relógio, vi que não é nem de Diaz, nem de Dadda, nem de Oliveira ou de Sabrosa a culpa. Quando se viaja, por melhor que seja a viagem, chega-se num instante de pensar na volta. Talvez o mundo real, o mundo além é que seja uma grande loucura, um grande absurdo que nos faz ficar fartos. Olhar o Jornal Nacional, às vezes, me faz pensar que sim.

Nesse emaranhado de palavras em situações nonsense, pegamos aqui e ali uma que outra coisa de nós mesmos e saímos, apenas uma hora depois, com a missão de nos desapegar das coisas sem sentido da nossa própria vida. Sim, aparte a TV, o jornal, os relacionamentos, elas existem!

*

Elenco: Elisa Volpatto, Leandro Lefa, Lucas Sampaio, Ursula Collischonn e Joana Vieira.
Preparação corporal: Moira Stein
Cenografia: Airton de Oliveira e Marcos Buffon
Iluminação: Nara Maia
Figurinos: Maiguida
Trilha Sonora: Arthur Barbosa
Programação visual: Ingo Wilges e Lucas Sampaio
Produção executiva: Airton de Oliveira e Maura Sobrosa
Direção de produção: Airton de Oliveira e Tainah Dadda
Realização: Telúrica Produções

2 Comentários:

Anônimo disse...

Oi Rodrigo, gostariamos de agradecer a crítica e fazer uma correção na ficha técnica, ao invés de Geraldine de La Mata quem interpreta a aeromoça é a atriz Joana Vieira.
Abraços, Desvairados.

Unknown disse...

Oi Rodrigo!
Concordo com os teus comentário a respeito da direção, realmente está justíssima.
Os atores também cumprem seu papel, mas devo confessar que a atriz Elisa Volpatto me impressionou positivamente. Ela rouba a cena, apesar de estarem todos bem em cena.
Só discordo de ti no que diz respeito à arte do espetáculo: eu investiria mais nos figurinos, criando uma linguagem tão original quanto o ótimo texto. Entende? Algo mais elaborado... Estilo cartoon. Por aí.
O espetáculo ganharia muito!
Abração.

Dani.

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