Platão Dois em Um - Górgias ou o Discurso da Retórica
Sugestão ao Professor de Matemática*
Geralmente demoro de um inverno ao outro para fazer uma manta de tricô. Não que eu seja ruim, mas é que trabalho não é uma das idéias pertencentes ao meu “sistema tricô”. Dentro dele, está também frio, vontade de não pensar, filme dublado, novela, papo furado, algo quente para beber, insônia. Não sei muitos pontos, então, preciosismo é outra coisa que não está nesse meu sistema. As mantas que eu faço geralmente são cheias de erros que eu não desfaço porque sinto que, assim, o negócio fica “bem do meu jeitão”. Meu “Sistema Tricô” compreende, assim, pontos errados, buracos, falhas.
Qualquer sistema pode ser atualizado. Pierre Levy nos leva a saber que atualizar é mais do que adaptar: é utilizar-se das condições existentes no sistema objetivo, considerando a instabilidade desse sistema nos fatores tempo, espaço e demais idiossincrasias, como forma de re-hierarquizar o sistema fonte. Eu posso, por exemplo, fazer uma peça de teatro sobre tricô. Para tanto, irei rever tudo aquilo que pertence ao sistema tricô e redistribuir, excluir, incluir, modificar coisas a partir do que me oferece o teatro enquanto condição discursiva. O teatro, ao longo dos milênios, acumulou um universo bastante grande de possibilidades. Um universo finito no entanto.
Poderia colocar dois atores vestidos de agulhas a se enroscar em um grande fio de lã. Seria uma coreografia. Ao fundo, poderia ter uma lareira crepitando. Seria lindo. Lindo por apenas alguns minutos. Duas agulhas se enroscando exige muita paciência do espectador. O único conflito é chegar até o fim da carreira e começar uma nova trocando de lado. Sem falar que muito provavelmente só quem sabe fazer tricô é que vai compreender bem isso e até achar engraçado em alguns momentos. A grande maioria vai dormir com o barulhinho do fogo no sétimo minuto. Fazer isso seria o jeito menos aproveitável de atualizar o “Sistema Tricô” para o palco.
Mas tricotar é relacionar. Você, com a ajuda da agulha, relaciona o ponto que está fazendo com o ponto origem e o ponto da carreira de baixo. Disso, nasce o ponto destino que, tão logo é feito, já é origem de outro também. Você, na falta de algo melhor, começa a dar aula em uma escola pública e não ganha tão bem quanto acha que merece. Um dia, numa reunião de organização da Gincana Junina, você fica no turno da tarde e conhece a professora gostosona da terceira série. No recreio, rola um bate papo e você fica sabendo que, na escola privada onde ela trabalha, estão precisando urgente de um professor de matemática. Você é professor de matemática. Pega o email dela, manda o currículo e ainda aproveita para marcar uma ida ao teatro no final de semana. A escola origem faz nascer uma oportunidade destino. As agulhas se relacionam. O ponto nasce. E você não dorme na platéia. Sucesso!
Luciano Alabarse não aproveitou as possibilidades que o teatro oferece ao sistema “Diálogos de Platão”. Todo o palavrório filosófico que funciona muito bem no preto e branco do livro fica muito chato no palco. No teatro, você não pode voltar e reler, há dezenas de outras informações além do texto e, inevitavelmente, você fica tentando unir um ao outro porque é justamente essa a diferença do signo lingüístico e do signo teatral. O texto dito pelos onze atores vira música de lareira e, no sétimo minuto, já não lembramos mais o que foi dito no terceiro e nos preparamos para não ter tempo para pensar na próxima hora e meia. E nos concentramos na imagem e no movimento.
Nada combina. Marcelo Adams, que diz o texto muito bem, está com o cabelo emplastado de algo que tende a deixá-lo grisalho. E aí lembramos de Luiz Paulo Vasconcelos, Mauro Soares e José Baldissera e pensamos, por que o Marcelo Adams e não um deles? Os dez alunos da “Escolinha do Professor Sócrates”, com toda a superficialidade das interpretações, sem nada da profundidade da comédia, são de ruins a péssimos em suas construções. Dá pena de ver Vinícius Meneguzzi fazer uma bichinha afetada e Lutti Pereira repetir seu Tirésias. É constrangedor ver Marcos Contreiras fazer uma bicha velha e chamar Sócrates de “gordinho” para fazer a platéia sonolenta acordar, rir e dormir de novo, talvez consciente de que o que o ator está fazendo é vergonhoso. E o exemplo dado acontece em quase todas as interpretações. Nenhum personagem foi construído para além de um nome e de um texto decorado. Há um bêbado, um irritado, um sonolento... E todos comem, comem e comem... Beber não bebem porque o que o garçom serve, e vemos isso, não encheria uma só colher de vinho.
Sim, há um garçom vestido de terno e gravata borboleta. E não se faz a menor idéia do porquê ele está vestido assim uma vez que todos vestem vestidos tal qual nos quadros que vemos de Sócrates, Platão e a Academia. Roupas brancas que chegam a reluzir de tão limpinhas: um figurino que é não só para o público e para os atores, mas também parece ser falso para os próprios personagens.
Na parede do fundo do palco, grita a frase: “Conhece-te a ti mesmo”. E, nos perguntamos, como Luciano Alabarse, líder de uma grande equipe de artistas e técnicos, coordenador do Porto Alegre em Cena e homem respeitabilíssimo por tudo o que fez nas artes cênicas, pode deixar que isso saísse da sala de ensaios?
Fica o conselho a você, professor de matemática que marcou uma ida ao teatro com a professora da terceira série: prefira “O Exterminador do Futuro”. Por pior que seja, o diretor do filme conseguiu aproveitar bem o que o cinema lhe dispunha.
* Crítica também publicada na Revista Informe C3 #5.
Geralmente demoro de um inverno ao outro para fazer uma manta de tricô. Não que eu seja ruim, mas é que trabalho não é uma das idéias pertencentes ao meu “sistema tricô”. Dentro dele, está também frio, vontade de não pensar, filme dublado, novela, papo furado, algo quente para beber, insônia. Não sei muitos pontos, então, preciosismo é outra coisa que não está nesse meu sistema. As mantas que eu faço geralmente são cheias de erros que eu não desfaço porque sinto que, assim, o negócio fica “bem do meu jeitão”. Meu “Sistema Tricô” compreende, assim, pontos errados, buracos, falhas.
Qualquer sistema pode ser atualizado. Pierre Levy nos leva a saber que atualizar é mais do que adaptar: é utilizar-se das condições existentes no sistema objetivo, considerando a instabilidade desse sistema nos fatores tempo, espaço e demais idiossincrasias, como forma de re-hierarquizar o sistema fonte. Eu posso, por exemplo, fazer uma peça de teatro sobre tricô. Para tanto, irei rever tudo aquilo que pertence ao sistema tricô e redistribuir, excluir, incluir, modificar coisas a partir do que me oferece o teatro enquanto condição discursiva. O teatro, ao longo dos milênios, acumulou um universo bastante grande de possibilidades. Um universo finito no entanto.
Poderia colocar dois atores vestidos de agulhas a se enroscar em um grande fio de lã. Seria uma coreografia. Ao fundo, poderia ter uma lareira crepitando. Seria lindo. Lindo por apenas alguns minutos. Duas agulhas se enroscando exige muita paciência do espectador. O único conflito é chegar até o fim da carreira e começar uma nova trocando de lado. Sem falar que muito provavelmente só quem sabe fazer tricô é que vai compreender bem isso e até achar engraçado em alguns momentos. A grande maioria vai dormir com o barulhinho do fogo no sétimo minuto. Fazer isso seria o jeito menos aproveitável de atualizar o “Sistema Tricô” para o palco.
Mas tricotar é relacionar. Você, com a ajuda da agulha, relaciona o ponto que está fazendo com o ponto origem e o ponto da carreira de baixo. Disso, nasce o ponto destino que, tão logo é feito, já é origem de outro também. Você, na falta de algo melhor, começa a dar aula em uma escola pública e não ganha tão bem quanto acha que merece. Um dia, numa reunião de organização da Gincana Junina, você fica no turno da tarde e conhece a professora gostosona da terceira série. No recreio, rola um bate papo e você fica sabendo que, na escola privada onde ela trabalha, estão precisando urgente de um professor de matemática. Você é professor de matemática. Pega o email dela, manda o currículo e ainda aproveita para marcar uma ida ao teatro no final de semana. A escola origem faz nascer uma oportunidade destino. As agulhas se relacionam. O ponto nasce. E você não dorme na platéia. Sucesso!
Luciano Alabarse não aproveitou as possibilidades que o teatro oferece ao sistema “Diálogos de Platão”. Todo o palavrório filosófico que funciona muito bem no preto e branco do livro fica muito chato no palco. No teatro, você não pode voltar e reler, há dezenas de outras informações além do texto e, inevitavelmente, você fica tentando unir um ao outro porque é justamente essa a diferença do signo lingüístico e do signo teatral. O texto dito pelos onze atores vira música de lareira e, no sétimo minuto, já não lembramos mais o que foi dito no terceiro e nos preparamos para não ter tempo para pensar na próxima hora e meia. E nos concentramos na imagem e no movimento.
Nada combina. Marcelo Adams, que diz o texto muito bem, está com o cabelo emplastado de algo que tende a deixá-lo grisalho. E aí lembramos de Luiz Paulo Vasconcelos, Mauro Soares e José Baldissera e pensamos, por que o Marcelo Adams e não um deles? Os dez alunos da “Escolinha do Professor Sócrates”, com toda a superficialidade das interpretações, sem nada da profundidade da comédia, são de ruins a péssimos em suas construções. Dá pena de ver Vinícius Meneguzzi fazer uma bichinha afetada e Lutti Pereira repetir seu Tirésias. É constrangedor ver Marcos Contreiras fazer uma bicha velha e chamar Sócrates de “gordinho” para fazer a platéia sonolenta acordar, rir e dormir de novo, talvez consciente de que o que o ator está fazendo é vergonhoso. E o exemplo dado acontece em quase todas as interpretações. Nenhum personagem foi construído para além de um nome e de um texto decorado. Há um bêbado, um irritado, um sonolento... E todos comem, comem e comem... Beber não bebem porque o que o garçom serve, e vemos isso, não encheria uma só colher de vinho.
Sim, há um garçom vestido de terno e gravata borboleta. E não se faz a menor idéia do porquê ele está vestido assim uma vez que todos vestem vestidos tal qual nos quadros que vemos de Sócrates, Platão e a Academia. Roupas brancas que chegam a reluzir de tão limpinhas: um figurino que é não só para o público e para os atores, mas também parece ser falso para os próprios personagens.
Na parede do fundo do palco, grita a frase: “Conhece-te a ti mesmo”. E, nos perguntamos, como Luciano Alabarse, líder de uma grande equipe de artistas e técnicos, coordenador do Porto Alegre em Cena e homem respeitabilíssimo por tudo o que fez nas artes cênicas, pode deixar que isso saísse da sala de ensaios?
Fica o conselho a você, professor de matemática que marcou uma ida ao teatro com a professora da terceira série: prefira “O Exterminador do Futuro”. Por pior que seja, o diretor do filme conseguiu aproveitar bem o que o cinema lhe dispunha.
* Crítica também publicada na Revista Informe C3 #5.
2 Comentários:
Ei, eu vi o Exterminador do Futuro e achei bem legal... Hehehehe. Platão Dois em Um eu não vou ver, Alabarse não é McG.
Abraço meu velho.
Talvez, com todo esse teu "pedantismo" e a tua "erudição", tu consigas montar algum espetáculo mais atraente para o "teu" GENIAL professor de matemática. Eu, ator, estarei na primeira fila assistindo. Um beijo de língua na tua boca erudita. Me excito com gentalha afiada pseudo-intelectual!!!
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