Exercício sobre a cegueira
O simples complicado
“Exercício sobre a cegueira” não tem relação direta com o “Ensaio sobre a cegueira”, conhecido romance de José Saramago, recentemente levado às telas. A nova produção da Cia. Teatro Face & Carretos é uma versão adaptada do texto “Os Cegos”, do belga Michel de Ghelderode (1898-1962), quase desconhecido no Brasil. Atualizando o tom sombrio, moralista e misterioso presente nos mais de sessenta textos desse autor, a parábola foi inspirada nos quadros do pintor seiscentista Pieter Bruegel, o Velho, em especial “Parábola dos Cegos”, de 1568. Três cegos estão a caminho de Roma. Depois de semanas caminhando, já cansados, acham que estão próximos do Vaticano, onde esperam ver o Santo Padre que irá curá-los. Um homem caolho, que os vê dar voltas sem sair do lugar, adverte-os da triste realidade. As máximas “Pior cego é aquele que não quer ver” e “Em terra de cegos, quem tem um olho é Rei” são os fios condutores dessa história. No Evangelho de Lucas, consta outra máxima provavelmente útil ao dramaturgo e ao diretor: “Jesus contou uma parábola aos discípulos: Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?” (Lc 6,39)
O espetáculo dirigido por Camilo de Lélis surge a partir de um curso de direção ministrado em 2010, segundo consta no programa entregue na entrada do teatro. A inexperiência de três dos quatro atores do elenco, no entanto, é negativamente visível, independente dessa informação. Leandro Schimitt, Paulo Resendez e Davi Borba executam as marcações perfeitamente, dizem o texto sem errar as falas e exploram os diferentes níveis do espaço, conferindo mérito ao experiente diretor, responsável pelo desenho da cena. Apesar disso, durante todo o tempo da representação, não vemos suas ações sendo corporalizadas, as interpretações não são críveis e, por vezes, elas exibem um histrionismo exagerado que se torna inadequado sobretudo quando se pautam por referências à sexo. A sensação que o espectador sente de que o ator está “fazendo de conta” que está sentindo algo que, na verdade, não sente vem do excesso de gestos, da força manifesta em despertar o riso, do emprego de ações que “puxem o foco”. O distanciamento visível entre o ator e o personagem é bem vindo em alguns gêneros narrativos. Esse, no entanto, não é o caso da parábola, sistema que precisa da catarse para se estabelecer. Se o espectador não acredita nos personagens, não consegue se desvencilhar momentaneamente de si. A reflexão proposta só acontecerá quando o espectador retorna não seu ponto de vista de origem com a nova informação. Em “Exercício sobre a cegueira”, são poucos os momentos em que há o convite para deixarmos de ver teatro no teatro.
Os melhores momentos da peça estão nos solos de João França, ator que interpreta o “Caolho”. As palavras soam naturais na assistência, o discurso se estabelece em vários elementos (tom da voz, pausas, ritmo, gestos), de forma que é possível acreditar-lhe. Não se pode deixar de destacar também o interessante uso que se faz da trilha sonora. A bela canção “Michael row the boat ashore”, registrada pela primeira vez na guerra civil americana (1861-1865), que, no Brasil, é cantada pelos católicos à refeição (“Ao Senhor oferecemos/agradecemos, Aleluia, o alimento que teremos/tivemos, Aleluia!”), torna-se ferramenta útil para expressar: a) a religiosidade dos personagens que querem ser curados, e, talvez, sua cegueira não-física; b) o movimento de dar voltas e mais voltas no mesmo lugar sem nunca se afastar muito do ponto de origem. Ainda, entre os aspectos positivos, deve ser citada a criação de luz de Maurício Moura que, num espaço não cenografado, adquire importância e responsabilidade ainda maiores. Moura produz uma ambientação pontual que, pelo jogo, dá ritmo à narrativa de Camilo de Lélis e seus atores.
“Exercício sobre a cegueira” é um espetáculo simples que parece ter sido complicado negativamente pelo acréscimo de comédia e pelo aparente rebuscamento das interpretações. A opção por figurinos contemporâneos, à guisa das roupas em estilo medieval, mais comuns em outras montagens desse texto, é, de forma positiva, uma atitude no sentido de preencher de possibilidades significativas o texto literário. Assim, a Cia. Teatral Face & Carretos, um dos grupos mais importantes da história do teatro gaúcho, reafirma a sua volta, mas também seu empenho em propor produções cuja qualidade é inegável.
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Ficha técnica:
Direção, adaptação, figurinos e adereços: Camilo de Lélis
Elenco:
Leandro Schimitt
Rodrigo “Kão” Rocha
Davi Borba
João França
Paulo Resendez (stand by)
Criação de Luz: Maurício Moura
Efeitos Sonoros: João França
Estágio em direção: Cléia Bertinetti e Bernardo Vieira
Realização: Cia Teatral Face & Carretos
Produção: Gemini Tauros Produções Artísticas
2 Comentários:
Insisto: Deves assistir com o elenco completo: fica a dica > curta temporada na Casa de Cultura. Abraço!
Valeu, Ro, vc é muito generoso em tuas colocações, principalmente comigo e com o França. Escrevo a vc e aos leitores de teu blog, com carinho, as seguintes colocações:
a)A peça não é mais do Gelderode,tornou-se minha.b)Minha reflexão com ela visa a que, através dela (a peça), se veja que a evolução humana (Darwin) é um desenho animado com final exlosivo. Uma fábula infantil sobre adultos idiotas.c)Uma peça nunca está pronta, estamos no caminho, por isso os 3 ratinhos cegos pedem desculpas aos stanilawiskianos, por estarem tão artificiais em sua paródia à falsa humildade cristã, e prometem mais verdade nas referências à interdição ao sexo dentro da mesma familia...Dom Camilo.
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