22 de ago. de 2011

Um verdadeiro cowboy


Foto: Kiran
Para quem não conhece Roberto Oliveira

Texto vencedor do Prêmio Carlos Carvalho de Dramaturgia em 2006 (2º lugar), a montagem de “Um verdadeiro cowboy”, da paulista radicada na Espanha Marilia Samper, não ganhou o Prêmio Auxílio Montagem do Júri indicado pela Coordenação de Artes Cênicas da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. A produção marca os 35 anos de carreira de Roberto Oliveira e os 15 anos do Depósito de Teatro, um dos grupos mais importantes da capital gaúcha. Nada disso precisa saber, no entanto, quem entra no teatro e vê o ator sentado sob o refletor com o controle remoto em mãos e o volume da TV bastante alto. Não há nada externo ao espetáculo que o espectador precisa conhecer para ser “pego” por ele quando ele é bom. A análise a seguir se sustenta apenas nos elementos internos à obra. Informações adicionais são meros souvenirs para quem não está envolvido com produção teatral, ou seja, o grande púbico.

O texto é simples e expressa uma situação dramática previsível, o que nos leva a entender que a importância não está na narrativa, mas nas relações que se estabelecem entre os personagens. As figuras de “Um verdadeiro cowboy” se modificam de acordo com quem está com elas na cena, como um espelho que tem a aparência de quem olha para ele. E como se houvesse várias versões diferentes do personagem Pai: um diante da Filha, outra diante do Cowboy, outra diante de Marilyn, outra diante do Médico e outra diante da Esposa. Com a personagem da Filha, acontece o mesmo: há uma diante do Pai e outra diante do Médico, o que nos permite pensar que toda a encenação dirigida por Liane Venturella pode ser lida a partir desse princípio lúdico de identificação: se um personagem é A, o outro é B, de forma que, por princípio, não há construções inteiramente fixas.

Roberto Oliveira providencia ao seu público um momento raro e, por isso, precioso de excelência em interpretação. Com coragem, o ator enfrenta o estereótipo do idoso sem medo. Esse Pai, sim, se arrasta, fala com chiados e tem movimentos lentos e trêmulos, elementos esses muitas vezes sugeridos pelo código já fixado. O particular está no uso desses elementos pelo espetáculo: o olhar de Oliveira que investe a plateia de responsabilidades, o lábio inferior projetado para a frente, que garante fisicamente uma justificativa para o falar característico são dois entre muitos exemplos. O ritmo da respiração explica a lentidão dos passos. Em cada detalhe, Oliveira inscreve uma nova afirmação sobre o seu personagem, ato esse que confere ao todo a prazerosa segurança de que o público precisa para reconhecer suas nuances no desenrolar das cenas. O senhor cansado e depressivo com a Filha, não é o mesmo senhor vibrante e infantil com o Cowboy. A situação de inferioridade no primeiro caso é uma reação à superioridade oposta. A igualdade no segundo momento vem do ambiente alegre assim sugerido. De forma aparentemente natural, o espectador se deixa levar por esses jogos e se encanta, em catarse, com a capacidade inevitável do homem de se multiplicar em si mesmo.

Marcelo Johann e Elisa Heidrich interpretam o Cowboy John Wayne e a Filha respectivamente. Com funções coadjuvantes, ambos atores têm, por isso, menos oportunidades que Roberto Oliveira na peça para mostrar sua técnica e seu talento. Os resultados que conseguem, no entanto, não são um pouco que seja menos positivos.

Johann interpreta um personagem hollywoodiano bastante forte no imaginário coletivo. Como Oliveira, o jovem ator tem em mãos um estereótipo para vencer como desafio nesse trabalho. Mas, também dirigido por Venturella, investe, avança e nos proporciona grandes momentos. Seus ombros sempre em diagonal, o quadril para a frente, o olhar calculado de quem sabe para onde está olhando porque planejou esse olhar: o Cowboy é campo livre e tranqüilo onde todos nós podemos deixar nossa imaginação fluir, o que também acontece quando na entrada da personagem Marilyn Monroe, construção de Heidrich, cuja qualidade da voz surpreende e encanta. São nesses Oásis em que o Pai, protagonista, irá se aventurar, nos divertir e nos fazer enternercer.

A personagem Filha aparece como o exato oposto dessas duas últimas construções: ela é nervosa, instável e pesada. Seus movimentos são imprecisos, sua voz é cortante, seu olhar é inquisitivo. Num determinado momento, o texto traz a palavra “estorvo”. A morte, a doença, a sujeira são os estorvos da vida dessa mulher, construída pela atriz Elisa Heidrich, que vê nessa situação a resposta contrária ao que tinha planejado para si. Sua presença em cena é como o sino que anuncia que o recreio acabou, cumprindo, assim, exata e perfeitamente o seu papel na narrativa, que se mostra como apontado no início voltada mais pela configuração dos personagens do que pela história que conta.

“Um verdadeiro cowboy”, ao tratar do abandono, da velhice, da morte, das relações familiares e do prazer em viver, emociona o seu público, agrada os entendidos, surpreende os ingênuos. A todos deixa o direito de pensar sobre si e sobre a vida e seus personagens que nela habitam, usando, para isso, uma história simples, três figuras simples, elementos visuais simples. O aplauso é um dever que se cumpre como quem goza um direito.

*

FICHA TÉCNICA

Texto: Marília Samper
Direção: Liane Venturella

Elenco: Roberto Oliveira, Elisa Heidrich e Marcelo Johann

Figurinos: Liane Venturella
Edição de som e imagem: Álvaro RosaCosta
Produção: Francine Kliemann

1 Comentário:

Delva disse...

Desde Sevilha, Espanha, meus aplausos para esta crítica. Creio ser a fan nº 1 desta obra porque assisti o seu parto.

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