1 de ago. de 2011

Breves Entrevistas com Homens Hediondos


Foto: Marina Fujiname


Quando Daniel Colin protagoniza

Breves Entrevistas com Homens Hediondos” é a nova produção do Grupo Sarcáustico, companhia responsável por “Wonderland e o que M. Jackson encontrou por lá”, espetáculo vencedor de cinco indicações e quatro troféus Açorianos, entre eles, o de Melhor Espetáculo de 2010. A peça é uma adaptação de Daniel Colin e de Felipe Vieira de Galisteo, com direção geral do primeiro, da coletânea homônima de contos de David Foster Wallace (1962-2008). A produção, conseqüência do Prêmio de Incentivo à Pesquisa Teatral no Teatro de Arena 2011, apresenta-se como resultado de um trabalho em conjunto de direção. Nos diferentes quadros, o papel de diretor se alterna de forma que os quatro atores – Daniel Colin, Guadalupe Casal, Ricardo Zigomático e Rossendo Rodrigues – são ora atores, ora diretores. Trata-se, assim, de uma sucessão de quadros que respeita o universo do contista. Dos oito quadros, três se destacam positivamente.

“Como conseguir uma xoxota em 5 estágios”
Sob a direção de Daniel Colin, Rossendo Rodrigues inicia o teatro em “Breves Entrevistas” com a elogiável interpretação de um homem que seduz mulheres chamando a atenção para uma deficiência física: ele não tem um dos antebraços. Ao narrar seus “truques” para conseguir sexo, o ator, que simplesmente mantém suas mãos postas sobre os joelhos, seduz a plateia que, facilmente, cai em seus “encantos”. Rodrigues está, durante todo o período da encenação, sentado e pouco se mexe. É na voz e no jogo de tons que ele atinge o seu objetivo, sucesso esse que coloca essa cena entre um dos melhores acontecimentos da noite. A luz sobre ele, igualmente muito positiva, junto das grades ao fundo, constrói um universo de submundo que acabará por ser muito interessante ao longo de todo o espetáculo. Com essa cena, o espectador entra no clima sombrio e sórdido, preparado para encontrar-se com “homens hediondos”.

“A Mulher Pós-Feminista”
Sucedendo o início do espetáculo, algumas cenas (cujos nomes eu não consegui localizar no programa) construídas a partir de cansativos textos sobre sexo, relações sexuais, poder, machismo x feminismo, fazem “Breves Entrevistas” cheirar a espetáculos comerciais de baixa qualidade e valor estético duvidoso. Entre elas, a proposta do Grupo Sarcáustico de promover um espetáculo interativo em que o público escolhe uma entre duas cenas que deseja ver.
Na crítica de outros espetáculos da mesma companhia, eu já havia apontado um traço negativamente característico de suas produções: um desapego marcado entre a forma e o conteúdo. Aqui, a proposta de interatividade é mais um exemplo. “Breves Entrevistas com Homens Hediondos” não tem absolutamente nenhuma relação com a interatividade, com participação, com o clima leve e democrático necessário para o adequado estabelecimento desse tipo de exercício narrativo/fruitivo. Ao contrário, cena após cena, entrevista após entrevista, com o público, se consolida a ideia naturalista de sufocamento, como se os homens fossem comparados aos animais, em que o predomínio do instinto esbarra com a racionalidade civilizada do mundo sociável. Os personagens, afinal, não são sociáveis, não são respeitosos, não são democráticos. A interatividade é, assim, mais um resultado de uma vontade do grupo em construir um espetáculo com esse tipo de característica sem que haja ou, pelo menos, fique visível, a relação entre ela e o que a peça está realmente querendo dizer. Em outras palavras, porque escrever bem não é simplesmente justapor palavras quaisquer, acho difícil um bom espetáculo partir de exercícios quaisquer como é o caso da proposta desse jogo que, afinal, se perde.
Mas eis que Guadalupe Casal entra em cena diante desse marasmo estético e inicia um discurso tedioso sobre o feminismo, as vontades das mulheres, seus desejos em relação os homens e às relações. Aos seus pés, um pouco mais distantes, estabelecendo uma relação triangular, estão Daniel Colin e Ricardo Zigomático. É, então, que, dirigidos por Rossendo Rodrigues, os dois atores estabelecem um jogo de oposição entre si em relação à atriz, situação essa que é rica e, por isso, bastante interessante.
A cena é simples: os dois homens brigam pela mulher. Ou melhor: dois machos brigam pela fêmea. O animalismo irracional retorna à cena e é construído a partir do teatro. Os atores brigam, disputam, correm, se batem, duelam pela atriz que, em sua personagem, os domina quase sempre, excetuando as vezes em que se deixa levar por si própria e por eles. Texto e atitudes se opõem, concordam, se equiparam. A cena tem ritmo, tem força, movimenta a roda da narrativa e o faz de forma convergente.A crítica, a força do texto de Wallace aparece novamente.

“Um Homem em Busca de Sentido”
“Incomunicabilissimamente” (direção de Ricardo Zigomático, com Guadalupe Casal e Rossendo Rodrigues) e “Vitória para as Forças da Liberdade Democrática” (direção de Daniel Colin, com Rossendo Rodrigues) são duas cenas que acontecem em momentos mais próximos do fim de “Breves Entrevistas com Homens Hediondos”. Entremeadas por novas e prejudiciais sequências desprovidas de ação e cheias de teses sobre a relação entre homem e mulher, essas duas em destaque, num curto espaço de tempo, trazem o espectador de volta aos bons motivos que o Grupo Sarcáustico podem oferecer ao seu público. Na primeira, Rodrigues e Casal interpretam dois personagens falando um em inglês e a outra em espanhol. Eles dançam, seduzem-se. A relação evolui, se modifica, se enriquece, se critica. Na segunda, Rodrigues interpreta um homem com dificuldades de se concentrar na hora do sexo. Ele está dentro de uma gaiola, de forma que o cenário corrobora com a situação dramática, tornando potente o significado. A comunicação com o outro e consigo próprio, num ambiente individualista e de solidão, concorda com o espetáculo cujos personagens centrais parecem estar desamparados em meio às próprias situações. Alguns momentos de escape se mostram falsos e, por isso, cruéis com esses “homens” que, devido a sua humanidade, essa friamente exposta, acabam por não parecer tão hediondos. Uma dúvida paira no ar. E, então, o espetáculo chega ao seu final.
Em “Um Homem em Busca de Sentido”, Daniel Colin se mostra como um excelente ator, um dos melhores do nosso estado. Na cena, ele está sozinho, único e, por isso, encontra-se pleno para mostrar a sua técnica e o seu talento. Depois de tantas vezes assisti-lo e, em várias ocasiões, ter me dedicado a escrever sobre ele, percebo, a partir desses outros trabalhos, mas, sobretudo, por sua atuação em “Breves Entrevistas”, que Colin mostra dificuldades em ser um personagem coadjuvante, “puxando o foco” constantemente para si, tornando difícil para o espectador prestar a atenção no protagonista da cena quando ele está próximo. Na última cena, no entanto, isso não acontece porque ele é o protagonista. Nesse caso, quem ganha somos nós.
O texto de Wallace traz um novo ponto de vista sobre fatos tidos como dogmáticos. O holocausto é um exemplo. Seria possível pensá-lo positivamente? Quando o personagem interpretado por Daniel Colin, na cena dirigida por Guadalupe Casal, começa a investir nesse questionamento e em outros similares ou, talvez, mais profundos, o espectador é convidado a voltar para o submundo que, talvez por um certo cansaço, abandonou logo depois da cena inicial. Há, finalmente, conteúdo “dos bons” sendo tratado, em detrimento das mornas discussões sobre sexo, sobre homem e sobre mulher e suas relações. É, também, nessa cena que David Foster Wallace, até então mostrado quase que apenas pela sua capacidade de escrever palavrões e por pôr seus personagens em situações sombrias (como tantos outros já o fizeram), é apresentado em profundidade. Colin, em sua belíssima interpretação, não nos deixa tempo para pensar em nós, não nos dá chances para lembrar de Wallace e nem mesmo permite que lembremos do teatro. Com olhar a girar sobre a audiência e sobre si próprio, o ator prende a nossa atenção e faz com que nos doemos mais rapidamente do que ele próprio se doa. Por ter ficado imanente qualquer reflexão sobre nós próprios, sobre Wallace e sobre o teatro, é que, finda a cena, a avalanche catártica ganha lugar e força. Colin varia as tensões, percorre o espaço que, nesse momento, é reconstruído de forma a expressar plasticamente a desconstrução do mundo de que o personagem fala em sua entrevista. Sobre tudo, a cena desconstrói o horror que sobrou nos personagens que vieram antes do de Colin, mesmo que eles só tenham ficado nas intenções. A entrevista está para terminar e muito ficou para ser dito.
Não há jeito de fazer com que um significante fique sem significado. Uma vez significante, sempre haverá para ele um significado. O homem que busca o sentido, na verdade, procura outro sentido. Nas “Breves Entrevistas”, faltam mais buscas para que todas tenham a mesma força sígnica dessa última.

*

Ficha técnica:

Dramaturgistas: Daniel Colin e Felipe Vieira de Galisteo
Direção geral: Daniel Colin
Direção das entrevistas, concepção e atuação: Daniel Colin, Guadalupe Casal, Ricardo Zigomático, e Rossendo Rodrigues.
Atriz especialmente convidada: Tatiana Mielczarski
Cenário: Eder Ramos e Ricardo Zigomático
Figurinos: Daniel Lion
Iluminação e operação de luz: Carol Zimmer
Operação de luz (stand by): Maíra Prates
Coordenação de Trilha Sonora: Rafael Lopo
Trilha Sonora Pesquisada: Rafael Lopo, Daniel Colin e Ricardo Zigomático
Direção, edição e operação dos vídeos: Thais Fernandes
Design Gráfico: Pedro Gutierres
Cabelos e maquiagem: Márcia Pazzini
Fotografias: Marina Fujiname
Assessoria de imprensa: Bruna Paulin
Coordenação de Produção: Fernanda Marques
Assistência de Produção: Cassiano Fraga
Produção internacional: Simone Buttelli
Realização e Produção Geral: TEATRO SARCAUSTICO

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