Pode ser que seja só o leiteiro lá fora
Foto: divulgação
Vivo!
Escrito em 1983, o texto teve sua primeira versão cênica no ano seguinte dirigido por Luciano Alabarse e apresentado no Clube de Cultura. No elenco, constavam os seguintes atores: Gilberto Gawronski (Baby), Mauro Soares (Alice Cooper), Ivan Mattos (Leo), Eliane "Gorda" Steinmetz (Rosinha), Clélia Admar (Mona e Carlinha Baixo Astral), Haroldo Aro (João) e Java Bonamigo (Angel). No cenário, havia uma carcaça imensa de um velho caminhão e a trilha sonora era toda de músicas de Meredith Monk. Em tempos pós hippies (Hair já estava fazendo 15 anos) e pré-AIDS (Só em 85, com a morte de Rock Hudson, o mundo tomou conhecimento da doença), Pode ser que seja só o leiteiro lá fora causava impacto sem ofender, promovia o debate sem ser de todo politicamente incorreto. Hoje, o mesmo texto não nem é tão mofado como Hair, nem tão denso como Bernard-Marie Koltèz.
O primeiro e grande mérito da produção atual do Grupo Teatro Ofídico é mesmo a coragem de trabalhar nesse texto. Como já foi dito, seu caráter datado é forte e assustador. Além disso, todos sabem que não está, na dramaturgia, o Melhor de Caio Fernando Abreu, mas, sim, nos seus contos, tamanha é a força de suas palavras a ponto de, em vários textos, desconsiderar a ação dramática. Eduardo Kraemer, o corajoso que já dirigiu a ótima produção Apareceu a Margarida, investe no texto e, em vários momentos, dribla a dificuldade de interpretá-lo na condução de seu grupo de atores, quase todos pouco experientes, e consegue bons resultados estéticos.
Ainda nos aspectos positivos, o ritmo do espetáculo é constante, ágil, vivo. Todos os elementos visuais se encaixam e os movimentos cênicos fazem parte desse todo muito bem cuidado. A produção se utiliza do espaço de forma bastante rica, explorando as possibilidades no sentido de ressignificar os lugares do jeito que estão. Uma fita preta e amarela separa o público do espaço cênico, esse composto por sucata, lixo, uma enorme quantidade de objetos dispensados pela sociedade consumista. Os personagens, por sua vez, que passam a habitar esse espaço, também assim se sentem: preteridos, desfavorizados, esquecidos... Em comum, criam um mundo à parte e, nele, podem ser aquilo que lhes apetece. Por mais racionais que algumas figuras sejam, Leo, por exemplo, sabemos que no seu íntimo ele está desfrutando a falsa segurança que ali vive. Esse contexto, que termina com fortes batidas na porta, talvez da polícia, talvez do leiteiro, talvez de Deus ou do Diabo, talvez de outros querendo entrar e participar, relaciona-se diretamente com o terrível (e real) fim de O diário de Anne Frank. A SS vem tirar as duas famílias do seu esconderijo e levar todos para campos de concentração. O anexo, o esconderijo, a proteção, a segurança terminou. Não sobra muito de vida na sequência. Os personagens da peça de Caio F. também morrerão quando a palavra FIM chegar no texto ou, segundo diz o próprio autor, quem sabe quando o último espectador sair do teatro? Os personagens de Kraemer morrerão quando as luzes se apagarem e o público aplaudir.
Entre os atores, Andryos Montanari se destaca em absoluto. É verdade, sim, que o personagem Alice Cooper, por ser homessexual, é rica em relação aos demais, o que ofuscaria a conclusão sobre a excelência do trabalho desse jovem ator. No entanto, qualquer um que leia o texto reconhece as imensas possibilidades de trabalho que o texto oferece também aos outros personagens e que não foram desenvolvidas pelos demais atores no mesmo nível que Montanari. Seus colegas de elenco, embora num padrão suficiente e plenamente aceitável, estão presos ao texto, amendrontados com as imagens e cuidadosos com o bem dizer. Em conclusão, as interpretações estão boas, mas o ponto alto da encenação é Andryos Montanari.Sua construção é plena de movimentos, de criatividade, de pulsação. As reações são honestas, instantâneas, críveis. Sem dúvida, uma possível grande revelação.
O único ponto baixo que me parece precisar ser levantado é a concepção de figurinos. A produção das roupas “fantasia” os atores e, não fosse o material utilizado, os afastaria do lugar que foi concebido para estarem. Vestir-se com lixo, com que é jogado fora é bom e vem a calhar no todo do trabalho, mas enfeitar-se com ele nubla o sentido. O saco preto, por exemplo, funciona em todos os lugares em que ele não está propositalmente colocado, como no caso dos figurinos de Leo e de Carlinha Baixo-astral. Os talheres de plástico na cartola de Babe é outra expressão de equívoco: em um momento da peça, os personagens se fantasiam para uma festa idealizada por Mona. Com um figurino concebido dessa forma, qual o sentido das fantasias se eles as roupas já estão produzidas tão ricamente?
A rapidez das cenas, também mais ágeis pela retirada do personagem João, garante o ganho de quem vai assistir a esse espetáculo, tão rico em poética e em possibilidades múltiplas de relações. O Projeto Usina das Artes, responsável pela produção tem aqui um bom exemplo de seu sucesso. Quem, como eu, não viu a produção histórica dos anos 80, não deve perder essa oportunidade.
*
Ficha técnica:
TEXTO: Caio Fernando Abreu
DIREÇÃO: Eduardo Kramer
ELENCO: Andryos Montanari (Alice Cooper), Diego Dornelles (Leo), Maiquel Klein (Babe), Moni Lannes (Rosinha), Pingo Alabarce (Alejandro/Angel) e Rejane Meneghetti (Mona).
FIGURINOS: Ana Hoffmann
MAQUIAGEM: Luana Zinn
CENOGRAFIA: O Grupo e Alexandre Moreira
REALIZAÇÃO: Usina das Artes e Teatrofídico
Vivo!
Escrito em 1983, o texto teve sua primeira versão cênica no ano seguinte dirigido por Luciano Alabarse e apresentado no Clube de Cultura. No elenco, constavam os seguintes atores: Gilberto Gawronski (Baby), Mauro Soares (Alice Cooper), Ivan Mattos (Leo), Eliane "Gorda" Steinmetz (Rosinha), Clélia Admar (Mona e Carlinha Baixo Astral), Haroldo Aro (João) e Java Bonamigo (Angel). No cenário, havia uma carcaça imensa de um velho caminhão e a trilha sonora era toda de músicas de Meredith Monk. Em tempos pós hippies (Hair já estava fazendo 15 anos) e pré-AIDS (Só em 85, com a morte de Rock Hudson, o mundo tomou conhecimento da doença), Pode ser que seja só o leiteiro lá fora causava impacto sem ofender, promovia o debate sem ser de todo politicamente incorreto. Hoje, o mesmo texto não nem é tão mofado como Hair, nem tão denso como Bernard-Marie Koltèz.
O primeiro e grande mérito da produção atual do Grupo Teatro Ofídico é mesmo a coragem de trabalhar nesse texto. Como já foi dito, seu caráter datado é forte e assustador. Além disso, todos sabem que não está, na dramaturgia, o Melhor de Caio Fernando Abreu, mas, sim, nos seus contos, tamanha é a força de suas palavras a ponto de, em vários textos, desconsiderar a ação dramática. Eduardo Kraemer, o corajoso que já dirigiu a ótima produção Apareceu a Margarida, investe no texto e, em vários momentos, dribla a dificuldade de interpretá-lo na condução de seu grupo de atores, quase todos pouco experientes, e consegue bons resultados estéticos.
Ainda nos aspectos positivos, o ritmo do espetáculo é constante, ágil, vivo. Todos os elementos visuais se encaixam e os movimentos cênicos fazem parte desse todo muito bem cuidado. A produção se utiliza do espaço de forma bastante rica, explorando as possibilidades no sentido de ressignificar os lugares do jeito que estão. Uma fita preta e amarela separa o público do espaço cênico, esse composto por sucata, lixo, uma enorme quantidade de objetos dispensados pela sociedade consumista. Os personagens, por sua vez, que passam a habitar esse espaço, também assim se sentem: preteridos, desfavorizados, esquecidos... Em comum, criam um mundo à parte e, nele, podem ser aquilo que lhes apetece. Por mais racionais que algumas figuras sejam, Leo, por exemplo, sabemos que no seu íntimo ele está desfrutando a falsa segurança que ali vive. Esse contexto, que termina com fortes batidas na porta, talvez da polícia, talvez do leiteiro, talvez de Deus ou do Diabo, talvez de outros querendo entrar e participar, relaciona-se diretamente com o terrível (e real) fim de O diário de Anne Frank. A SS vem tirar as duas famílias do seu esconderijo e levar todos para campos de concentração. O anexo, o esconderijo, a proteção, a segurança terminou. Não sobra muito de vida na sequência. Os personagens da peça de Caio F. também morrerão quando a palavra FIM chegar no texto ou, segundo diz o próprio autor, quem sabe quando o último espectador sair do teatro? Os personagens de Kraemer morrerão quando as luzes se apagarem e o público aplaudir.
Entre os atores, Andryos Montanari se destaca em absoluto. É verdade, sim, que o personagem Alice Cooper, por ser homessexual, é rica em relação aos demais, o que ofuscaria a conclusão sobre a excelência do trabalho desse jovem ator. No entanto, qualquer um que leia o texto reconhece as imensas possibilidades de trabalho que o texto oferece também aos outros personagens e que não foram desenvolvidas pelos demais atores no mesmo nível que Montanari. Seus colegas de elenco, embora num padrão suficiente e plenamente aceitável, estão presos ao texto, amendrontados com as imagens e cuidadosos com o bem dizer. Em conclusão, as interpretações estão boas, mas o ponto alto da encenação é Andryos Montanari.Sua construção é plena de movimentos, de criatividade, de pulsação. As reações são honestas, instantâneas, críveis. Sem dúvida, uma possível grande revelação.
O único ponto baixo que me parece precisar ser levantado é a concepção de figurinos. A produção das roupas “fantasia” os atores e, não fosse o material utilizado, os afastaria do lugar que foi concebido para estarem. Vestir-se com lixo, com que é jogado fora é bom e vem a calhar no todo do trabalho, mas enfeitar-se com ele nubla o sentido. O saco preto, por exemplo, funciona em todos os lugares em que ele não está propositalmente colocado, como no caso dos figurinos de Leo e de Carlinha Baixo-astral. Os talheres de plástico na cartola de Babe é outra expressão de equívoco: em um momento da peça, os personagens se fantasiam para uma festa idealizada por Mona. Com um figurino concebido dessa forma, qual o sentido das fantasias se eles as roupas já estão produzidas tão ricamente?
A rapidez das cenas, também mais ágeis pela retirada do personagem João, garante o ganho de quem vai assistir a esse espetáculo, tão rico em poética e em possibilidades múltiplas de relações. O Projeto Usina das Artes, responsável pela produção tem aqui um bom exemplo de seu sucesso. Quem, como eu, não viu a produção histórica dos anos 80, não deve perder essa oportunidade.
*
Ficha técnica:
TEXTO: Caio Fernando Abreu
DIREÇÃO: Eduardo Kramer
ELENCO: Andryos Montanari (Alice Cooper), Diego Dornelles (Leo), Maiquel Klein (Babe), Moni Lannes (Rosinha), Pingo Alabarce (Alejandro/Angel) e Rejane Meneghetti (Mona).
FIGURINOS: Ana Hoffmann
MAQUIAGEM: Luana Zinn
CENOGRAFIA: O Grupo e Alexandre Moreira
REALIZAÇÃO: Usina das Artes e Teatrofídico
3 Comentários:
O Andryos além de lindo e querido é excelente ator. É o q Salva a peça.
Quando os teatreiros se perguntam por que não há público no teatro atualmente, eu respondo. Por que vocês fazem péssimos espetáculos. Eu assisti a primeira montagem do "Pode ser...leiteiro", foi a coisa mais horrível e podre que já vi. Por isso o Luciano Alabarse se tornou funcionário da justiça, por incompetência teatral, por isso o Alabarse é secretário da cultura, por incompetência total. Porto Alegre merece os espetáculos ridículos que produz e o público, que somos nós que pagamos, sabemos disso. Desistam, vocês não são do ramo.
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