4 de dez. de 2009

Elefantilt

Foto: Regina Protskof / La Photo

Às favas com a astrologia

Passei um tempão pesquisando sobre as peças de Berthold Brecht (1898 – 1956) para encontrar as referências na composição de “Elefantilt – Um exercício brechtiano”, cuja direção é assinada por Humberto Vieira, recém Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Descobri várias coisas sobre a peça, principalmente depois de ter lido “O filhote de elefante” e “Um homem é um homem”, textos do dramaturgo alemão datados nos anos 20 (o primeiro é um excerto do segundo). Ao olhar para folha virtualmente branca do meu computador com o desafio de preenchê-la com um registro da minha análise sobre o espetáculo, me pergunto para quê servirá, nesse caso, tanta pesquisa?

“Elefantilt” é um produção bastante simples, embora nada simplista. Dois músicos tocam guitarra e percussão. É um bar, uma taverna, um boteco... Chega a dona do boteco, feliz por encontrar o salão do seu estabelecimento cheio de soldados com as “burras cheias de dinheiro”. Participam da cena também o “Escritor de peças” e quatro soldados que, logo, se transformarão em atores de um pequeno espetáculo para divertir o público. A peça dentro da peça, cujo mote é a intenção de uma “Bananeira” e a “Lua” de descobrir se o pequeno elefantinho matou mesmo sua própria mãe ou não, logo acaba. A peça vai embora. A noite continua. Fim.

E isso me faz pensar numa mania que toma conta de mim e de quem se aproxima de mim quanto à astrologia. Você mal conhece uma pessoa, ou nem mesmo nunca a viu, mas dela já ouviu falar, e já sabe o signo solar, o ascendente, a posição da lua, da Vênus, quais planetas estão na casa seis... Pesquisas e mais pesquisas para racionalizar a emoção, como se isso fosse fazer com que ela durasse um pouco mais. É como se você morresse e, tão logo chegasse ao céu, pensasse: “se eu tivesse uma nova chance aproveitaria muito mais”. Então, sabendo que só terá uma, você racionaliza a vida tentando “aproveitá-la muito mais”. Fechei todas as abas da minha pesquisa e procurei só pensar no quanto eu ri assistindo às deliciosas cenas construídas pelo elenco de “Elefantilt”. Às favas com a aquarianisse de Brecht ou com a sagitarianisse desse espetáculo.

Com um figurino muito mais do que interessante - por ser bonito, útil, inteligente - os oito atores ocupam um lugar muito próprio na cena com bastante adequação. O diretor os fixou o tempo inteiro em cena nesse exercício em que Brecht é o ponto de partida, não só pelo que tinha desenvolvido nos anos 20, mas como o que tinha criado nos anos 40. No caso dessa encenação, o tom épico quase não aparece: há personagens (músicos e dona do bar) que representam o público, situando-se entre a narrativa e o público assistente. Mas, por seu figurino e marquiagem (bem forte!), pela sua mise-èn-scene, pela construção do seu personagem, está claro que são narrativos, que são cênicos e que não estão ali para nos dizer atores sociais ou para promover uma anti-catarse ocasionada pelo célebre distancialmento brechtiniano. Os dois músicos se esforçam em reclamar, mas, talvez por se esforçar demais, convencem como personagem e não como parte ou representantes do público. Nisso, para mim, consiste o ótimo trabalho de Eduardo Tartarotti (guitarra), Maiquel Klein (percussão), Richard Biglia (a ótima dona do bar) e Yheuriet Kalil (autor de peças): vencer o desafio da não ação. Com raríssimas exceções, os quatro personagens ficam sentados em cena o tempo inteiro. Não podem puxar o foco sobre si, mas devem ser críveis como assistentes tanto quanto nós, o público. E são. Pacientes, honestos, criativos, os quatro atores construíram seus personagens sob uma direção de pulso firme que os conscientizou da hierarquia dramatúrgica que, nesse momento brechtiniano, apenas apontava para o que viria depois com o “Círculo de Giz Caucasiano”, “A decisão” e “A alma boa de Setsuan”.

O domínio da cena é mesmo da peça dentro da peça: o julgamento do filhote de elefante. Quatro soldados interpretam cada um um personagem. A Bananeira e a Lua narram o assassinato da mãe do elefante pelo próprio filho, o elefantinho. Tomados pelo surrealismo da história, as quatro atrizes reforçam o absurdo da ação por uma construção que, hoje, nos lembra Ionesco. Tatiana Vinhais ( A Bananeira) sustenta uma fortíssima presença cênica. Com habilidade, a atriz domina a ação, essa narrada de forma clara e interessante. A mesma dominância se vê em Daniela Guerrieri, forte não pela presença, mas pela comicidade clownesca. Com um timing perfeito, Guerriere é, sem dúvida, o ponto alto do elenco, não apenas por ficar sobre uma escada o tempo inteiro, mas porque não conseguimos tirar o olho dela, certos de que seus comentários faciais serão causa de grandes risadas e um ótimo divertimento. Vivian Salva, como o elefantinho, é aproveitada pela direção em todo o seu potencial. Com um olhar terno e doce, mas com movimentos ágeis, a atriz contribui para o espetáculo principalmente pela forma como olha e pelo jeito como muda a voz quando, na dualidade que há em seu personagem, chave da meta-narrativa de que tratamos, precisa se colocar como assassina de sua mãe (Juliana Dal Bem) ou como inocente desse crime.

Outros elementos ricos enriquecem a produção pelos seus usos bastante conceituais. A utilização do espaço que nos coloca muito próximos da cena, a simplicidade dos elementos (claramente por opção estética) que nos convida a nos aproximar da história, a trilha sonora (dirigida como também os cantos por ninguém menos que Cida Moreira) que não define tempo único, mas define a produção como atemporal, incluindo do nosso tempo, dessa temporada, de forma muito significativa. Essa proximidade é o que posso identificar como uma citação da produção ao tema épico de Brecht, que foi mais desenvolvido ainda no Teatro Ambientalista de Richard Schechner no fim dos anos sessenta.

Então, me vejo dentro de “Elefantilt” novamente ou, pelo menos, das minhas impressões sobre ele. Fui conhecendo aos poucos, convidado, agradecido, conversando com a história e a ouvindo. Sem juízos prévios sobre onde estavam os planetas e as constelações na data de seu nascimento, não é que aproveitei a peça e adorei escrever sobre ela? Esse despojamento não é lá muito capricorniano, mas às favas com a astrologia.


*

Elenco: Daniela Guerrieri, Eduardo Tartarotti, Juliana Dal Ben, Maiquel Klein, Richard Biglia, Tatiana Vinhais, Vivian Salva e Yheuriet Kalil.

Direção e Roteiro: Humberto Vieira
Direção Musical: Cida Moreira

Assistência de direção: Shirley Rosário
Iluminação: Cláudia De Bem
Figurinos: Fabrízio Rodrigues

Produção: Palco La Photo e Companhia Babel de Teatro

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