30 de jul. de 2009

Agora eu era: corte dois

Foto: Romi Pocztaruk


O caldinho da mamãe*

É quando vem o sol que tudo se acalma, se lagarteia. As pessoas param de girar, os zunidos param de girar, os problemas param de girar. Os adultos não ficam tontos porque já estão acostumados com a bebida. Acho que a adolescência é um porre. Um osso duro de roer. E, quando adultos, pais e mães de família, famílias boas e famílias reais, sabemos que, quando o osso é muito duro, a gente faz uma sopa.

“Agora eu era: corte dois” é o osso que bóia na sopa. Se o “Corte Um” era mamãe trazendo o prato da cozinha, a cozinha, a mamãe, o prato, o cheiro, a televisão ligada, o guardanapo de papel e a luz incandescente de 60watts... Se o “Corte Um” era o establishing shot. O “Corte Dois” é um close. Um closão no ossão.

- Ele é feio, mas ele dá tutano. Roa!

E ele não bóia. É o prato que não é fundo.

João Pedro Madureira nos dá a ver o segundo pedaço de sua pesquisa, essa feita junto com o Grupo Vai! e pede permissão para continuar a história em que temos, agora um protagonista e não só (e apenas) um herói. Há um osssão nessa sopa. Um ossão que nos diz que essa sopa não é de legumes, não é de miojo, não é capelletti: é de osso mesmo. E diz também que você não pode desprezá-lo, nem tem tanta liberdade imaginativa assim quanto tinha quando a mamãe de avental vermelho vinha da cozinha com os cabelos cheios de laquet. O personagem de Vinícius Meneguzzi, Camilo, é o protagonista-com-tutano. Ponto.

O mais não se sabe. Não me ocorre mesmo de ter tomado sopa de osso, mas lembro que o gosto que minha boca já sentiu lambendo ossos foi sempre o do frango que, segundos antes, esteve grudado ali. O personagem protagonista, assim como está dado, por mais tutano que tenha, se mostra sem gosto. E a sopa, por isso, também.

Madureira, e, quando eu digo diretor, digo, pelo que fiquei sabendo, todo o grupo incluindo Romi Pocztaruk, Mariana Terra, Felipe Catto e Francisco de los Santos (vídeos, iluminação, trilha sonora e figurinos), experimenta o teatro com muita intuição. Vemos belas imagens serem construídas em situações potentes. O leão de um lado e a paz do outro. Uma Marilyn que canta através de Camilo, por Camilo, para Camilo, sendo Camilo. Brincadeiras de crianças. No vídeo do youtube, pés cruzando linhas. Imagens potentes, quali-signos. Marcações desprovidas de significado, mas capazes de fazer nascer significados. O prato, assim, está dado como raso porque é para ser enchido várias vezes. O teatro desse jovem diretor também cheio de tutano se estabelece na disposição de potências e não na resolução, na centralização, na linearidade. No entanto, o aponte de Camilo como centralizador faz a gente, que sente, relacionar. E relacionar já é sin-signo, já é conflito, já é trama, drama, dramático.

Do tomate ao caldo, mesmo que o caldo tenha saído do tomate e não do osso, tudo parece vir do osso.

- Servir sopa em prato raso não é uma boa idéia! – deve pensar a mamãe quando vê o caldo escorregar e sujar a toalha.

O ritmo cai vertiginosamente no fim. E a peça termina numa sensação de repente. Osso não tem vocação para elemento principal da sopa, que não fica bonita num prato raso. Não chega a ser um desastre porque foi uma tentativa. Por que não lavar o prato fundo, sujo do Corte 1, ainda na pia da cozinha?

A grande diferença da linguagem verbal para as demais é que o falante da primeira não produz suas próprias palavras. Há um idioma (paradigma) e um número mínimo de usos (sintagma) que ele deve fazer para ser entendido. Na linguagem teatral, o falante é quem inventa a sua fala, podendo recorrer se quiser e da maneira e grau que desejar dos paradigmas existentes. Assim, a coerência dentro da obra não se dá na relação com outras obras, mas dentro de si mesmo. Camilo, com seus conflitos existenciais e tutano, não é coerente com o prato raso, por mais saudável que seja.

Fico pensando se a sopa não foi só a entrada e logo virá um prato principal. Como me acho gordo, por andar comendo tanto teatro dramático por aí, estava ficando satisfeito com o caldinho da mamãe.

*Texto publicado na revista Things Mag #9


*


direção: João Pedro Madureira

assistência de direção: Vinícius Meneguzzi

elenco: Lucas Sampaio, Rafael Régoli, Sofia Ferreira e Vinícius Meneguzzi

dramaturgia: Maria Luiza Sá e Madureira

figurino: Francisco de los Santos

iluminação: Mariana Terravideos: Romy Pocztaruk

trilha sonora: Filipe Catto

direção de produção: Laura Leão

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