4 de jul. de 2009

América Café




Foto: Artur José Pinto

Eu me despeço e vou pra capital

Por motivos óbvios, não escrevi sobre o espetáculo “O Vendedor de Palavras” do Grupo Mototóti. Mas uma música da peça, composta por Fernanda Beppler (que também compôs as músicas de “A Canção de Assis”, dir. Gilberto Fonseca; e “O Homem da Cabeça de Papelão”, dir. Hermes Bernardi), voltou à minha cabeça ontem à noite.

“Adeus! Adeus, pedacinho de chão onde eu sou tão feliz,
Mas sei que é chegada hora de partir.

Eu dou adeus aos meus avós e tudo que eu deixo aqui,
Para a lagoa, o píer e o milharal.
Eu me despeço, pois entendi o que eu tinha para cumprir aqui já fiz
E agora eu vou prá capital!”

Junto com essa música, recordei uma cena bastante clássica da história do musical: a abertura de O Fantasma da Ópera. Um lustre imenso está no chão fazendo companhia a muitos outros objetos de tamanhos e valores diferenciados, mas igualmente cheios de pó, velhos, esquecidos. A peça de Andrew Lloyd Weber começa com um leilão. Christine, já velha, volta à Ópera de Paris para rever e, talvez, comprar uma peça que conserva em suas formas a chave para reencontrar seu passado. Compra. E, numa apoteose musical bem clássica, o lustre sobe, o palco se ilumina, a velharia dá lugar ao esplendor do Grande Teatro. Christine está de volta ao seu passado.

E, se alguém lembrou de Titanic, está certo. Quando Rose DeWitt Bukater vê o casco do transatlântico e se vê nele, o mesmo efeito acontece. James Cameron faz nascer da ferrugem, o brilho; do lodo, a brancura das paredes; das rugas, a tenacidade da protagonista em sua juventude.

É exatamente essa a situação inicial de América Café, espetáculo escrito e dirigido por Artur José Pinto. Dona Leda volta ao lugar onde trabalhou nos anos 40 e o encontra em pedaços, velho, sujo, esquecido. Numa chave subjetiva, a personagem vê-se de volta aqueles anos, suas músicas, seu linguajar, seus conflitos. Situar o espectador na situação de encontro com o passado é um meio bastante baixo de sensibilizar a visão, embaçar a história, esconder falhas na produção cênica. Quem olha para o passado, esquece do presente: quem assiste fica, o tempo inteiro e de uma forma muito forte, com as próprias lembranças na cabeça, vendo-se em situação similar. Eu, por exemplo, me vi aos 16 anos visitando as casas onde morei na minha infância em São Paulo, incluindo a que nasci (visitei todas!), ou, no ano passado, entrando na minha sala de aula do Colégio Dom Feliciano, e sentando na minha mesa de 1996. Experimentar a sensação de encontrar-se consigo mesmo e avaliar se os objetivos outrora traçados agora foram conquistados é um jeito de ocupar a mente do espectador, produzindo uma catarse paralela à ficção. É nesse imediatismo que os teóricos esnobes do mundo se baseiam para dizer que o melodrama, que a comercialização da arte, que a banalização das emoções, essas desprovidas de reflexão, são pobres, quando não também vulgares. Mesmo ocupado com a peça e com minhas próprias lembranças de lembranças passadas, consegui ter uma folguinha para olhar a platéia: a Álvaro Moreyra, que não é muito grande, estava cheia. Cheia como nas platéias de Pedro Delgado, de Homens de Perto, de Cama de Casal, de Titanic, dO fantasma da Ópera, e Caminho das Índias. Porque esse negócio de achar que, para valorizar o teatro difícil é preciso falar mal do teatro fácil, é discurso fajuto de quem não precisa tirar do bordereau seu aluguel e seu queijo Quaker. É preciso fazer bem o que está para ser feito.

Defendido o teatro lotado (aqui sinônimo de teatro sem muitas experimentações, baseado na mais do que comprovada estrutura dramática circular, em expressões bastantes próximas daquilo que se tem como cotidiano dentro da esfera ficcional, etc, etc) voltemos à produção dA Caixa de Pandora APCEF/RS. O espetáculo tem vários pontos a enaltecer além da situação dramática inicial (e, pela lógica, final). Os atores cantam muito bem, a pesquisa de figurino é muito rica (embora o seu uso seja formal demais) e a distribuição do cenário adequada. A protagonista Leda (Vilma Loner) chega perto de uma construção mais televisiva, destoando dos demais, mas promovendo um alívio no público diante dos exagerados estereótipos do resto do grande elenco. Rudimar, o herói da trama, interpretado por Gabriel Bolzan, usa e abusa do seu carisma, fazendo como Loner: levando a interpretação mais para o lado da telinha, para o nosso bem.

As situações propostas pelo texto são sofríveis. Não fossem as músicas, pelas quais ansiamos ouvir, o espetáculo, todo narrativo, seria um fracasso. Os diálogos são pobres, sem evolução e nem riqueza. Repetem o que os figurinos já dizem, o que as caras e bocas informam, o que o contexto já define. Inexperientes, os atores em sua maioria baseiam-se naquilo que imagina-se serem as rubricas e em nada além. Casca de figuras que, individualmente, agradam, mas que, no conjunto, chateiam. É recorrente o pensar que nada está acontecendo e, em se tratando de uma peça que, desde o primeiro minuto, se apresenta como querendo contar uma história, nada acontecer é uma discrepância.

Sem recursos, preciso dizer, levar um elenco de dezesseis pessoas à cena não é coisa fácil. Ainda bem que, tampouco, não é impossível. Importante é fazer bem para que o público volte.

Fazer bem uma coisa, seja ela qual for, é terminar com ela. É encerrar um ciclo. Quando volto para Gravataí ou para São Paulo ou mesmo para o ontem, volto para saber que estou aqui. Assim, Leda resolve-se com suas lembranças do América Café, Christine faz as pazes com o seu fantasma, Rose encontra-se com o seu Jack.

Podemos, pois, ir pra capital.

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