11 de jul. de 2009

O Sobrado

Foto: Myra Gonçalves


Água para Maria Valéria

Quando eu tinha 17 anos, fiz CLJ: Curso de Liderança Juvenil, movimento da Igreja Católica. Três dias de retiro no Seminário de Viamão com mais 80 jovens como eu, provenientes de cinco paróquias diferentes do que hoje se conhece como Vicariato de Gravataí. Não conto mais porque, antes de terminar, fizemos um pacto no sacrário, em frente ao Monsenhor (Pe. Ireneo Flach) de somente dividir o que aconteceu naqueles três dias com outras pessoas que, ao longo dos trinta anos, também vivenciaram exatamente a mesma programação. Na missa de chegada, cada cursista teve que dizer à assembléia o que mais chamou a atenção nos três dias recém terminados. Naquele 04 de maio de 1997, disse que descobri duas coisas que modificaram a minha vida. No 252º CLJ 1, vi a maravilha que é chegar para desconhecidos e abraçá-los como velhos amigos desejando coisas boas do Deus que habita em mim para o mesmo Deus que habita nele. E também (com o microfone em punho) disse que descobri que eu amava muito meu pai e minha mãe (os dois chorando, de pé, num banco da igreja) e que eles eram muito importantes para mim. Lá se foram 12 anos em que eu, com uma vida bastante diferente da que tinha nos tempos de normalista, segui dizendo que aqueles três dias dividiram a minha história em duas partes. Emocionado e com real interesse em preservar aquela lembrança, não vi qual era o diferencial daquela sensação. Só ontem percebi qual era esse diferencial.

A Igreja Católica chama de Espírito Santo o Deus Santificador. Aquele que motiva, que estimula a perseverar, que faz olhar para frente. O símbolo é a pomba que voa para o alto e o fogo que queima as coisas ruins e ilumina o caminho a seguir. É após Pentecostes (a vinda do Espírito Santo sobre os apóstolos reunidos no Cenáculo) que os discípulos, falando idiomas diversos, partem para o mundo anunciando a Boa Nova. Fiquei quatro anos no CLJ com a real motivação de evangelizar. E pensei que esse sentimento era fruto unicamente de uma experiência cristã até quando percebi que sensações muito parecidas com aquela vivenciei em outros momentos. E vou narrar apenas um: ontem, ao sair do Memorial do Rio Grande do Sul, caminhando do centro até a Cidade Baixa, gastei horas no telefone ligando para amigos e conhecidos dizendo: “Vão ver O Sobrado”. Minha vontade era ter um cartaz da peça em punho. Aos desconhecidos que eu via, a vontade que tinha era de dar informações sobre o espetáculo. Em casa, no MSN, anunciei: “Faça um favor para você mesmo, vá ver...!” O espetáculo dirigido por Inês Marocco era, ontem, a minha Boa Nova. E longe de ter a pretensão de considerar que o meu texto abaixo será um Evangelho, vou tentar um apócrifo meio desorganizado.

RODRIGO FIATT

Uma vez disse aqui que um dos prazeres de ver uma peça de João Ricardo (Cia. Espaço Branco) era a sensação de ver o trabalho do diretor que melhor representa a sua geração através do teatro. Ontem, e lembrando também de outros trabalhos a que já assisti, tive a certeza: Rodrigo Fiatt é o melhor ator de sua geração. Por mais diferentes que lhe sejam os desafios, o resultado mostrado ao público é sempre de primeiríssimo nível. A voz, o corpo, o gesto, o movimento, as pausas e todas as categorias semióticas que qualquer Pavis poderia levantar nos levam para a mesma percepção: houve pesquisa, houve trabalho, houve empenho e, antes de tudo, grande talento. Rodrigo Fiatt sabe que Licurgo Terra Cambará, não por ser Licurgo, mas por ser Terra, por ser Cambará e por morar no Sobrado é a chave que Erico Verissimo criou para virar a história que compreende sete romances, quase três mil páginas. Nisso, nesse aspecto códico do personagem protagonista em relação a toda obra, encontram-se a relação do ator com os demais. É absolutamente imperdível as cenas de Rodrigo Fiatt com Isandria Fermiano, que faz Maria Valéria. Para que eu não me alongue, coisa que tenho vontade de fazer, vou levantar apenas um detalhe dessa atriz cujo trabalho eu só agora conheci: não há um fonema destoante na voz dada à personagem. Só pela voz, a atriz expressa o traço angular da mulher gaúcha segundo Veríssimo: firme, convergente, atemporal. Quando Maria Valéria fala, é Dona Henriqueta Terra, mãe de Ana, cento e cinqüenta anos atrás, quem clama. E a dona da velha tesoura que faz o parto da Aurora morta quem conversa com o índio Pedro Missioneiro dono do punhal agora nas mãos de Rodrigo, filho de Licurgo.

RITMO DESCE

Em dois momentos, o ritmo cai. Duas cenas ilustrativas: a infância e a trova. Em uma, há a quebra da situação de guerra, Rodrigo e Toríbio são os filhos de Licurgo, presos em casa em função do sítio. Na literatura, são o reinício. Erico Verissimo começa ali a destruir em cinco romances o Rio Grande que construiu em dois. É o Dr. Rodrigo Terra Cambará que concentrará o protagonismo de O Retrato e O Arquipélago, conservando em si a visão do gaúcho no período histórico que hoje sabemos ser entre ditaduras. O gaúcho afetado e metido a besta (sugiro um passeio na Pe. Chagas ou na Dineylandia Gramado), sempre envolvido com política (tirando os mineiros Carlos Luz, que ficou três dias, e Tancredo Neves, que nem assumiu, é daqui que saíram o maior número (seis!) de presidentes do Brasil.) e com mania de ditar a moda (Gisele?), mas, no fundo, um machão barranqueador, sem escrúpulos (líder na inandimplência nacional), nem paciência. Essa não é a visão estabelecida nO Sobrado. Licurgo não se permite abrir o casarão mesmo na iminência da morte de sua esposa, tamanha é a importância dada a honra, característica de um personagem mítico, tal qual os demais da primeira parte (O Continente). E quando se sensibiliza, Verissimo lhe traz a redenção terminando a guerra. A cena dos meninos, assim, descontextualizada no recorte capitular no primeiro terço da obra, bóia. Estranha é ainda a força que Philipe Philippsen e Filipe Rossato fazem para parecer crianças. A mesma força foi felizmente evitada por Rita Maurício, também intérprete de uma personagem cuja idade é bastante distante da dela. No segundo caso, o resultado foi extremamente positivo, como também vários outros casos que só não vou detalhar aqui para que o texto não fique muito mais extenso do que já está. Quanto à cena da trova, recupera-se o Angico, a fazenda dos Cambará. Licurgo é muito mais um homem do campo do que da cidade. E o Dr. Rodrigo, saberemos, irá se abastecer várias vezes na solidão do campo, numa clara alusão à Fazenda Itu, de Getúlio Vargas. Também descontextualizada, a cena possibilita a perda do ritmo. O retomar é mérito da direção.

INÊS MAROCCO

Juntar um elenco de atores experientes num texto clássico com uma montagem recheada de recursos visuais e atingir um bom resultado, graças a Deus, não é coisa bastante rara em Porto Alegre. Tirando Rodrigo Fiatt, recentemente em cartaz numa badalada produção do circuito comercial, não lembro de ter visto os demais atores em outras produções comerciais (não Mostra DAD, não Novas Caras) em anos anteriores nem nas 58 peças a que assisti desde primeiro de janeiro desse ano até ontem. O espetáculo O Sobrado também não tem helicóptero entrando em cena como em Miss Saigon (Hairspray estreou ontem no Rio de Janeiro!), nem trilha em 5.1, nem mesmo cortina “de abre e fecha”. E duas horas se passam sem que você perca a vontade de continuar assistindo, mesmo após duas pequenas perdas de ritmo. De elásticos, Marocco constrói um labirinto. Com três lençóis (?) brancos, Marocco nos dá um belíssimo flashback. Com uma única porta, vários ambientes são construídos. É nessa simplicidade que não nos resta medo de dizer “O Sobrado é mais teatro do que produções cheias de recursos”. Não falo em qualidade, porque os musicais de WestEnd, um dia, serão minha tese de doutorado. Falo em uso do que o teatro lhe oferece. “O Tempo e o Vento” é literatura e a dramaturgia, embora tenha havido a versão cinematográfica, não pré-existe ao Grupo Cerco. Assim, a direção de Inês Marocco, excelente enquanto teatro, continua a excelência empregada na atualização de um sistema, antes bidimensional e não-etéreo, para o teatro não dimensional porque não só lingüístico. Não há resumo, não há cortes, não há supressão de informação na atualização de um gênero para o outro. O Sobrado de Marocco caminha em paralelo aO Sobrado de Verissimo, respeitadas as condições que cada gênero possibilita e o grande valor de cada um.

IDENTIDADE

Quando na página 08 do primeiro livro, Liroca diz “Água para Maria Valéria” entendemos o valor dos vínculos. Não era água para qualquer um. Maria Valéria e o Sobrado tornavam o simples soldado maragato alguém diferente em relação aos demais do seu grupo. Também não era qualquer coisa para Maria Valéria. A necessidade de água nos faz humanos e humanos ainda com vida. O Sobrado de Santa Fé não é, também, qualquer história em sete livros. J. K. Rowling tem a sua, mas Hogwarts está longe de fazer os britânicos repensar sua identidade. Montar O Sobrado é mexer com o sotaque, com o costume, com o vento, com o passado, com as laranjas e as guerras, com os amores sedimentados, com os ruídos de rocas e as cadeiras de balanço que, para o Rio Grande, tem outro valor.

E é esse valor que enche o coração, queima mas não destrói as cinzas, ilumina mas não esclarece, afaga mas não aperta.

Shalom!
*
*
ELENCO
Anildo Michelotto – Florêncio, Inocêncio, Capitão Rodrigo, Peão
Celso Zanini – Liroca, Antero, Coronel Alvino Amaral
Elisa Heidrich – Santo, Tinoco, Menina, Peão, Coro de Mulheres
Filipe Rossato – Rodrigo, Peão
Isandria Fermiano – Maria Valéria
Kalisy Cabeda – Santo, Sombra de Pedro Malasarte, Menina, Peão, Coro de Mulheres
Luís Franke – Fandango, Pedro Terra
Manoela Wunderlich – Luzia, Peão, Coro de Mulheres
Marina Kerber – Santo, Sombra do Homem à Cavalo, Peão, Corpo de Mulheres
Martina Fröhlich – Alice, Santo, Coro de Mulheres
Mirah Laline – Laurinda, Santo, Menina, Coro de Mulheres
Philipe Philippsen – Toríbio, Bolívar, Peão
Rita Maurício – Bibiana, Santo
Rodrigo Fiatt – Licurgo
*
Promoção: Departamento de Arte Dramática do Instituto de Artes da UFRGS
Direção: Inês Alcaraz Marocco
Adaptação e criação: O grupo
Cenografia: Élcio Rossini
Figurinos: Rô Cortinhas
Assistentes de Figurino: Amanda Rocha, André Dullius, Carolina C. Puccini e Geluza Tagliaro
Desenho de luz e operação: Cláudia de Bem
Assistência de Direção: Isandria Fermiano, Kalisy Cabeda e Rodrigo Fiatt
Dramaturgia: Celso Zanini, Elisa Heidrich, Isandria Fermiano, Marina Kerber, Mirah Laline e Rodrigo Fiatt
Trilha Sonora: Celso Zanini, Luís Franke, Martina Fröhlich e Philipe Philippsen
Pesquisa Histórica: Filipe Rossato e Philipe Philippsen
Produção: Inês Alcaraz Marocco, Manoela Wunderlich, Martina Fröhlich e Patrícia Gatteli
Contra Regragem: Beliza Gonzales e Adriana Sommacal
Bilheteria: Patrícia Gatteli

3 Comentários:

Modesto Fortuna disse...

nossa, rodrigo, parece que não vimos a mesma peça. normalmente concordo com a maioria das coisas que escreves, mas desta vez nos distanciamos. tanto na parte religiosa, quanto na parte gauchesca e muito mais na parte teatral. vimos peças diferentes. um abraço,
r.o.

Dani disse...

Oi Rodrigo, fui assistir o espetáculo ontem.
Considerei que o trabalho é rico em teatralidade e a direção de cena da Inês é muito boa.
O ator que vive o personagem Fandango está perfeito, correto e realmente pode ser o representante do gaudério que existe em nosso imaginário.
Concordo que há trabalho de pesquisa, mas a maioria dos atores está muito longe da qualidade artística do intérprete de Fandango. Talvez seja a tão falada maturidade e o (re)conhecimento das suas técnicas pessoais.
O espetáculo é belo plasticamente e as soluções cênicas são excelentes e, em algumas vezes excessivas, talvez para suprir a falta da "força dramática" nas atuações.
O Sobrado é um bom espetáculo para iniciados e um excelente espetáculo para leigos.
Abraços.

Patricia Ruschel disse...

Eu, como leiga, adorei!!!! Percebi algumas falhas, mas a impressão geral foi ótima! Adorei os recursos utilizados pra demonstrar as angústias e as memórias!

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