Tangos e Tragédias
Foto: Camila Camomila
Estação
Há muitos anos, talvez quatorze, eu lembro que Tangos e Tragédias terminava com Trenzinho Caipira do Villa Lobos. E hoje refleti sobre uma frase que ouvi: a vida é como um trem com vários vagões. Há, como em todos, a primeira classe, onde os lustres são de crital, há as cortinas brancas e o estofado lhe faz sentir como se tudo fosse o descansar. Há, também, a segunda classe, em que as pessoas são mais alegres, a música é mais dançada e as bebidas são menos alcoólicas e você pode beber mais. No fim, há o baixo calão, em que a margarina do pão faz a diferença e, sem cortinas, a janela te obriga a olhar para dentro. Você escolhe, nesse trem, onde quer viajar, optando por todas as coisas boas e ruins que puder encontrar em cada vagão. Pode, ainda, trocar de um vagão para o outro, o que talvez não aconteça na vida lá fora. Tem, é preciso que saiba, que esperar o trem parar numa estação para fazer a troca. Você não pode mudar de vagão com o trem em movimento. A parada é necessária para a mudança. O principal, caro viajante, é que seja lá qual for o vagão escolhido e seus motivos naquele momento de sua viagem, o destino desse trem é sempre e inevitavelmente o mesmo, como também as paisagens e o vento. Tape, daí, o sol com a peneira se quiser.
Tangos e Tragédias faz 25 anos e...
... eu pensei em falar na luz de Batista Freire. Destacar o como ela é importante no espetáculo, dando relevo, ritmo, corpo pro espetáculo composto só de dois atores-músicos: Nico Nicolaiewsky e Hique Gomez.
Mas prefiro lembrar que a primeira vez em que assisti ao espetáculo foi na praça central de Gravataí. Eu ainda era um adolescente que mal ia sozinho para Porto Alegre, mas que vi o show ser o primeiro grande espetáculo da vida de muita gente que estava ali (o meu havia sido Bailei na Curva). E lembrar também de ter levado, em momentos separados, a primeira mulher do meu pai e, depois, a segunda, que é minha mãe, pra ver a peça no Teatro São Pedro. Ambas nunca tinham entrado no nosso cream of the top, e cada qual do seu jeitão, reformaram o casaco de pele e passaram horas no salão para desfrutar da tal noitada, ainda hoje, para nós, inesquecível. Faz parte de mim tratar bem de quem eu gosto.
... pensei em deixar claro que Tangos e Tragédias não é , nem sem apresenta, como um espetáculo de teatro (no significado aprisionante), mas como um show, uma aquarela cujas cores, de tão usadas, se misturam. É a olhos vistos o quanto eles usam do que o teatro oferece enquanto linguagem, e o quanto utilizam de outras linguagens as quais não me sinto preparado para destacar. O trabalho de foco, de desfile no espaço cênico, de condução dramatúrgica, de continuidade e coerência na construção dos personagens... Nico e Hique podem até ser músicos mais que atores nesse trabalho, mas são grandes nas duas tarefas certamente, mostrando isso não agora, hoje ou ontem, mas há vinte e cinco anos.
Mas prefiro lembrar que, como professor, levei, em alguns anos, a música The eleven's train para a sala de aula. Tirei a palavra Jaçanã e pedi, com-uma-cara-bem-fechada-de-professor-mal, que traduzissem , deixando que o alunaredo sozinho descobrisse que a música é, na verdade, Trem das Onze. E, a seguir, pedi que traduzissem para o inglês músicas brasileiras, exigindo que cantassem no ritmo original o resultado, bem aos moldes da gravação de Tangos e Tragédias que eu já tinha em CD. Ou, então, que descobrissem as únicas 5 paroxítonas das palavras finais de cada verso de O Drama de Angélica, brincando com o significado maluco de cada palavra e seus usos. E em como nos divertimos com isso nas manhãs de inglês ou de português.
... achei que era justo destacar o trabalho de ator que há tanto em Nicolaiewsky como em Gomez e em como o espetáculo se faz novo a cada nova temporada ou apresentação de 1984 pra cá. E no quanto isso é teatral, arte que sofre e, ao mesmo tempo, se orgulha de ser perene.
Mas prefiro contar que uma mesma atriz fez a personagem Madame Giry de O Fantasma da Ópera por mais de vinte anos e isso, para alguns incluindo eu, valoriza o espetáculo, ao contrário do que muitos pensam, correndo, na boca pequena, muxoxos de desprazer quando um espetáculo não estreante re-aparece e enche platéias, como é o caso de Tangos e Tragédias.
... eu precisava falar da relação que toda a produção, e não só os atores, estabelece com o público. É o vendedor de livros (Renan Bleasté) que recebe as pessoas anunciando o Free Shop da Sbórnia; a luz na platéia acompanhando o ritmo da participação; a mão dos atores a conduzir nossas vozes e palmas; a saída em que os atores, tocando acordeon e violino, nos conduzem para o foyer e a praça... O desconhecido passa a ser íntimo. O ator conhece o nosso coração e, com muito cuidado, joga com ele.
Mas confesso que sempre invejei alguns amigos mais velhos que se lembram da Noviça Rebelde brasileira, em 1966, levando o elenco, os músicos e toda a assistência para a Praça Tiradentes, no Rio, ou mesmo para a Av. Independência, em Porto Alegre, a cantar Dó - Ré - Mi. A noção de espetáculo teatral como espetáculo da vida, o que não diminui outras noções, embora dessa eu sinta falta, apesar de Tangos e Tragédias e algumas outras em Porto Alegre. (Que saudades de Sonho de uma noite de verão, dir. da Patrícia Fagundes.)
... havia de comentar o aniversário jubilar desse grande e querido espetáculo que tem em seu repertório músicas que nos fazem cantar (Ana Cristina), que nos fazem rir (Romance de uma caveira), que nos fazem emocionar (Epitáfio), que nos fazem dançar (Copérnico) e que nos fazem estar (os inúmeros números sem melodia, mas cheios de musicalidade).
Mas devo expressar a saudade que Adriana Marques causou ao abandonar o palco de sua Rádio Esmeralda, outro espetáculo experiente de Porto Alegre que unia dois artistas através da performance cênica, músical, viva! Sei que o teatro serve para muitas coisas, mas meu teatro preferido é aquele que me lembra a importância de estar vivo e abrir as cortinas para platéias cheias em veludo italiano e também para as vazias sem forração. A sensação das pessoas que, um dia se vão de nossas vidas sem que a tenhamos aplaudido o suficiente pela sua importância na nossa, que sabe lá Deus porquê, fica.
Então, me dei conta de que, apesar de tudo isso que eu pensei, sentado na estação do trem, é hora de voltar e escolher qual vagão seguir viagem.
Agora Tangos e Tragédias termina com White Christmas. E, hoje, reflito que a beleza do natal, mais belo ainda em agosto, é justamente o poder de nos fazer olhar para o lado e nos vermos como uma só platéia, um só ser público, mesmo que que com sotaques diferentes na fileira de trás, celulares diferentes ao lado, idades e cortes de cabelo de todos os jeitos e signos. Porque só não é feliz quem não quer, e, sim, há gente e gentes que não querem.
Olhei para o bom e velho lustre do São Pedro, a iluminar Tangos e Tragédias por 25 anos, me iluminar por 15 e estar lá, ele mesmo, ou seus antepassados, há 150... Mudam os olhos e os sonhos. As músicas e os tons.
O trilho leva sempre para o mesmo destino.
E Copérnico sempre se dança do mesmo jeito. Sem mexer as pernas, nem as mãos.
Segui.
1 Comentário:
Acho digna tua crítica.
Assisti Tangos e Tragédias
e é realmente um espetáculo e tanto.
Quando o ator conhece bem seu público, conhece bem o caminho que deve traçar para levá-lo por essa fascinante viagem. Ele é o maquinista quando em cena está. O público está no vagão e não importa sua posição, por aqueles trilhos irá passar. Se ruim for para os da frente, para os de trás não menos também será. So há uma questão que eu deveria comentar, sobre o trem e os vagões. Quem vai lá na frente, está vendo onde se vai chegar. Os de trás, estes, infelizmente, apenas seguem o que predestinado está.
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