31 de ago. de 2009

Marleni


Foto: Betânia Dutra

A la Leni.

Quando duas pessoas se encontram, há que haver crescimento para as duas. Para as duas. Esse negócio de uma plantar sementes na outra para uma terceira colher não me agrada. Não agrada ninguém que tenha somente o altruísmo necessário para não ser uma má pessoa. São dois sistemas que se encontram, que se unem, preservando as individualidades, mas compartilhando uma e outra informação. Nem sempre há objetivo para o encontro, mas, não havendo modificação, é como se ele não tivesse acontecido. Encontro de diferenças é uma redundância. Encontro de iguais é repetição. E encontrar-se é tramar, dramar, acionar. Em todo encontro, há ação.

Paris, 1992. Leni Riefenstahl (1902-2003) invade o quarto de Marlene Dietrich (1901-1992) a fim de fazê-la atriz de seu novo filme. A peça começa e o encontro se estabelece.

Mas a mudança não aparece. O encontro, então, é desfeito, sem que uma vá embora para longe da segunda.

"Marleni", de Thea Dorn (Tradução de Susanne Umnirski-Gattaz), é um incessante discorrer sobre o passado. Há quem chame de teatro museológico o tipo de espetáculo em que, ao sair, você sabe como é que era tal e tal num tempo qual. Nesse caso, você sai conhecendo um pouco considerável sobre a vida de uma grande atriz e de uma grande diretora, ambas cujas vidas foram, de alguma forma, influenciadas pela Segunda Guerra. A importância de Dietrich e de Riefenstahl para a arte do ocidente faz do encontro entre o público de Porto Alegre e da proposta dirigida pela atriz Márcia do Canto e pela cineasta Liliane Sulzbach um encontro aplaudível. O passado, no entanto, não ajuda o teatro a ser teatro. Tampouco a ser encontro.

A Marlene Dietrich de Araci Esteves não justifica no passado o conflito do presente: fazer ou não o filme. Marlene fará ou não fará o papel se estiver com vontade, mudando de opinião algumas vezes, voltando pra cama ou passando baton. Lembrar o passado, no entanto, para a Leni Riefenstahl de Ida Celina, é justamente o que faz com que o aceite de Dietrich seja tão importante. Durante boa parte do espetáculo, sentimos que a cineasta depende da atriz e, vendo, na personagem de Celina, nossa heroína, torcemos por ela. Ocorre, contudo, o afogamento do conflito diante de tantas lembranças. O roteiro do filme é esquecido numa poltrona, a câmera fica ao lado num tripé e o diálogo volta a ser sobre Hitler, nazistas, ex-maridos, filhos e juventude. A duvida se perde e o ritmo se arrasta.

A fraca dramaturgia é, vale dizer, compensada pela boa equipe envolvida no projeto. Araci Esteves e Ida Celina são grandes atrizes e tenho a absoluta certeza de que, em outros corpos, essas duas personagens correriam um risco bastante grande. O cenário de Élcio Rossini é uma das maiores qualidades do trabalho, concorrendo talvez com os figurinos de Rô Cortinhas. O fundo em perpectiva, os quadros, os ambientes são riquíssimos. Concordam em todos os aspectos com a dramaturgia, substituindo os buracos do texto por pausas para reflexão nas zonas escuras. O desenho de luz de Cláudia De Bem acompanha o processo desenhando uma história que preferiu se mostrar interessante mais pelo recuperar do que pelo apresentar. A direção, assim, optando por não fugir dos problemas do texto, mas fazê-los ver como impulso para qualidades, desafia sua reconhecida equipe e nos traz um espetáculo nada menos (nem mais) que importante. Já na casa dos noventa, as duas personagens se movimentam no espaço que lhes é reservado de forma coesa. Marlene morre no ano dramático. Leni vive por mais onze.

Por algum motivo, as duas diretoras entenderam ser necessário a inclusão de projeções. Diferente de todos os elementos apontados e também os que não foram (a trilha sonora, por exemplo), não nos é dado a ver a relação dessa opção com o todo desse encontro Mar-Leni. Na boca das duas personagens, o cinema é passado. O último filme de Dietrich foi em 1978 e, antes desse, havia se passado quatro anos de reclusão. Leni lembra de filmes ainda produzidos antes da Segunda Guerra, citando experiências fotográficas depois disso apenas. E o objeto câmera presente já significa o bastante, sem que sejam necessários signos sombrios como é o caso das projeções. O encontro redunda-se. Falamos em Olympia e vemos cenas de Olympia. Falamos em Triunfo da Vontade e vemos cenas desse filme. E, assim por diante. Fora as exceções do momento em que Marlene fala com um ajudante de ordens e quando ela se vê no espelho ainda no auge de sua beleza, as demais incursões nesse linguagem outra pintam um quadro pastel com um tom também pastel.

Desfeito o encontro, os sistemas voltam para suas casas. Se antes lembravam juntos, agora lembrarão sozinhos. Aqui ninguém está dizendo que não é bom lembrar. Assistir "Marleni" é um prazer pela lembrança. Eu, no entanto, fico com a produção.

E me toco a fazer filmes.

*

FICHA TÉCNICA

Texto: Thea Dorn
Tradução: Susanne Umnirski-Gattaz

Elenco
Araci Esteves - Marlene Dietrich
Ida Celina - Leni Riefenstahl


Direção:Liliana Sulzbach e Márcia do Canto
Produção Executiva: Francine Kath
Cenografia: Élcio Rossini
Desenho de Luz: Clåudia de Bem
Direção Musical: Nico Nicolaiewsky
Desenho de Som: Kiko Ferraz Studios
Figurino: Rô Cortinhas
Maquiagem: Aline Matias
Preparação Corporal: Silvia Wolff
Produção de objetos e adereços: Jéssica Baltezan
Assistentes de Produção: Marcinho Zola, Silvia Penna e Viviane Rasia

2 Comentários:

Unknown disse...

Concordo com Rodrigo Monteiro. O que me agradou na peça em si foi sua produção muito bem construída, as boas interpretações. E claro, o relembrar da história de duas grandes mulheres. Porém, a justificativa do encontro é de pouco peso. Não que há sempre de se ter uma justificativa de peso. Contudo, ainda se poderiam achar melhores formas de se contar esse encontro.
A inclusão de vídeos em certos momentos são bem interessantes, nos levando a viajar nas lembranças de Marlene e Leni. Porém, em certos momentos, bem inoportunas, nos tirando a atenção e fazendo com que o espectador perca o foco por completo.
Também fico com a produção. No mais. Parabéns para as atrizes e a direção de elenco.

ninguém disse...

Rodrigo. Parabéns por tua crítica, que me levou a viajar pela montagem que não vi. E gostaria de ter lido a tua visão sobre esta direção bipartida, o quanto ela pode ou não ter influenciado a recriação do texto cuja proposta, até onde sei, é mesmo debater a arte num momento de choque em que o nazifascismo ditou o modo de viver. um abração

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