31 de jan. de 2010

Solos Trágicos

Foto: Betânia Dutra

F5 teatral

Outro dia, tive que excluir um amigo do twitter. Não. Ele não é do tipo chato, quem posta cinco tweets por minuto informando aos seus mil followers notícias chocantes sobre o alface que cai do seu sanduíche ou impressionantes apontamentos sobre uma letra que digitou errado no MSN. Não é esse o caso. Trata-se de um amigo que expressa no miniblog do momento a ânsia por mostrar ao mundo que seus vinte anos valeram a ele, até agora, mais leituras e vivências do que a muita gente de quarenta. A cada novo post, havia uma informação mais nova, um hiperlink mais interessante, uma expressão que eu nunca tinha ouvido falar. Resultado: ao efessincar o browser, eu acabava desviando minha atenção dos estudos para saber sobre o quê o menino estava dizendo. E lá ia eu pesquisar alucinadamente até compreender a mensagem coolest do minuto. Deusmelivre da não atualização!

Há tempos, me intrigava essa coisa nervosa do teatro pós-dramático. É fácil compreender o que motiva o espectador/leitor de uma história hierarquizada: ele quer saber o que vai acontecer no final, uma vez que tudo se encaminha pra isso. E não desiste do objeto enquanto não descobrir que final é esse. Então, só ontem eu entendi o frenesi de um texto em que as informações não convergem, os personagens não se unem, os elementos narrativos não são interligados e a lógica é a ausência de lógica, a coerência vive independente da coesão. Na platéia de “Solos Trágicos”, novo espetáculo do Depósito de Teatro, eu percebi que, a cada efessincada, uma multidão de hiperlinks surge com novos sentidos na fruição dessa assinatura de Roberto Oliveira. E você não descansa enquanto não dominar todos eles, ávido por não ser/estar ultrapassado.

Não há dúvida: Porto Alegre é uma cidade bem servida de diretores teatrais. Mas, de fato, muitos precisam comer bem mais feijão para se aproximar de quem também se chama Modesto Fortuna. E, para que não se pense que o calor da hora ainda não passou e se reflete nessa consideração, explico: noto que, quando vou ver uma peça do diretor X, Y ou Z eu já sei o que vou ver. Já sei que vai ser uma peça tradicionalista, já sei que vai ser um espetáculo sem cenário, já sei que vai ter muitos vídeos, já sei que os atores vão gritar muito, já sei que vai ser uma produção muito cuidadosa, etc, etc... Como poucos, no entanto, Roberto Oliveira me dá duas certezas: já sei que vou ver algo que o diretor, até então, nunca fez e que, para ele, é um desafio. E tenho a certeza de que vou ver algo bom. “Solos Trágicos” é o exemplo da vez.

Fiz questão de não ler o blog da peça que, agora sei, mais funciona como o caderno de direção de Oliveira, o que é um material de consulta excelente! Assim, sabia por amigos que se tratava de um espetáculo em que vários trechos de tragédias foram picoteados e colocados fora de seus contextos em forma de monólogos na boca de oito atores. Para me prevenir da chatice conferentória, não me interessei em saber que tragédias eram essas, que personagens eram esses, que textos seriam utilizados à guisa de outros. Na platéia, então, aqui e ali reconhecia uma Ofélia, uma Antígona, um Hamlet, bibibi, mas nunca realmente tinha a total certeza disso. Invocação: quem são esses personagens? Que texto é esse? Que história é essa? Que autor é esse?

Então, vem o coro e outros elementos surgem, muitas vezes, em direções opostas ao texto dito. O texto dito é só um texto pronunciado. Completamente descontextualizado, unido a outros textos e de outras partes da mesma história, e, ainda, acompanhado de personagens de outros tempos e luzes com outras propostas e uma trilha proposital (os músicos) e não proposital (os sons do ambiente) motivadora, sua força semântica se perde totalmente. Dele, das palavras ditas, fica quase sempre apenas o som. Convocação: O que esses personagens têm a ver com isso? O que esse ator está dizendo? Por que ele está assim vestido? Que barulho é esse? Olha aquela luz lá!!! Meldeuz, que imagem linda!

Então, olho para o público, cochicho com um amigo que me acompanha nessa assistência e que não sabe absoltamente nada de Shakespeare, Racine, Eurípides e Nelson Rodrigues. Os rostos de quem recebe a peça me dizem muito: poucos parecem entender o que estão vendo, mas ninguém tira os olhos da cena em nenhum momento. Então, me lembro de um relato da estréia de Show Boat, um musical de 1927. Quando o espetáculo produzido por Florenze Ziegfield, o maior produtor da Broadway antes da depressão americana, termina os aplausos vêm mornos. Entristecido, Ziegfield vai pra sua casa consciente de que, pela primeira vez em sua carreira, produziu um fracasso. Um espetáculo teatral como aquele nunca tinha sido produzido: caro, grandioso e inovador: números de vaudevilles, música popular, figurinos modernos, dança contemporânea (anos 20). Só no dia seguinte, o produtor entendeu que os aplausos não eram de decepção: eram de êxtase em excesso. Ninguém estava acostumado com aquilo, não sabiam como reagir, não tinham meios de se expressar. O sucesso foi absoluto e repetido e repetível ainda hoje a cada musical que estréia no planeta. Em “Solos Trágicos”, me senti na platéia de Show Boat: você sabe que tem muita coisa ali, você sente que é algo muito bom, mas você não sabe o que é, você não domina, é alheio a você. Que raiva!

A motivação desse novo espetáculo do “Depósito de Teatro”, um dos grupos mais importantes da história do teatro gaúcho, é o constrangimento. Roberto Oliveira e sua equipe de produção desorganizam o público, nos deixam atônitos com tamanha carga sígnica, expressam na dramaturgia encenada a realidade vivida por quem não é Édipo, mas está em frente à Esfinge: ou responde, ou morre. Talvez, o trágico da pós-modernidade é a incapacidade humana de conviver com tamanha velocidade informacional: se um dia, o nome genealógico dividia os humanos entre castas, ou, então, a classe social e os bens patrimoniais, hoje, certamente, quem sabe mais, manda mais. E corra você ao seu browser mais próximo, evitando o Wikipédia, para estar on top dos assuntos do momento.

Em termos técnicos, pouco não deve ser elogiado na produção. O elenco é excelente, estando na surpreendente força de Fernanda Petit a concretização da força de Oliveira em fazer os músicos andarem com seus sons, em fazer a luz de Cláudia de Bem espalhar o espaço e aumentar o lugar, em motivar a concepção de figurinos que gritem tanto quanto e não menos do que qualquer outro elemento. As vozes dessa produção são, com apenas uma exceção, afinadas.

A exceção é Marcelo Adams e chegar a isso parece ridículo uma vez que, sabe-se, de todo o elenco, é o ator mais bem preparado intelectual e fisicamente para a tragédia clássica. Converso: ao andar pelo espaço de assistência, notei que, não importando o lugar em que eu parava, não conseguia fugir da dicção perfeita do ator. Na cena mais longa de todo espetáculo e também a última, só houve um elemento: o texto tão bem dito, tão bem interpretado, límpido. Diferente de tudo o que acontece até ali, no encerramento do espetáculo, estabelece-se uma hierarquia, dominamos o contexto, os demais elementos ficam em segundo plano infelizmente. E o ritmo cai. Por mais que o coro passante em roupas de banho e com champagne tente, o foco está inevitavelmente nele e não há outra opção. A voz de Marcelo Adams pára tudo, divergindo das demais cenas em que aproveitamos a confusão do texto para deitar nosso olhar em todos os outros elementos que, nem de longe, são o resto.

Apertar o F5 é atualizar a tela. Atualizar é unir o presente a quem assiste a ele. Assistir a Solos Trágicos é chorar por tudo o que não se sabe e vibrar pelo momento em que se sente vivo e disposto a correr atrás do que se perdeu. Até que, cansados da corrida, você resolva excluir do seu twitter teatral quem é mais cool que você, rendendo-se aos seus próprios interesses.

Mas minha sugestão é que você não faça isso e siga o @solostragicos.

*

Ficha Técnica:

Elenco: Marcelo Adams, Daniel Colin, Isandria Fermiano, Fernanda Petit, Rodrigo Fiatt, Elisa Heidrich e Lucas Sampaio.

Direção: Roberto Oliveira
Trilha Sonora: Arthur de Faria e Adolfo Almeida Jr.
Preparação Corporal: Carlos Gontijo
Preparação Vocal: Lígia Motta
Ambientação Cenográfica: Modesto Fortuna
Iluminação: Cláudia De Bem
Assistente de Iluminação: João Fraga
Figurinos: Coca Serpa, Francisco de los Santos e Modesto Fortuna
Maquiagem: Heinz Limaverde
Adereços: Elton Manganelli
Projeto Gráfico: Modesto Fortuna
Produção Executiva: Francine Kliemann
Orientação: Profª Dra. Marta Isaacsson de Souza e Silva

2 Comentários:

Helena Mello disse...

Pôxa...pensei que íamos ver este espetáculo juntos. Eu ia na estréia lembra? Perdi. Agora, vou voltar para terminar a tua crítica depois. Para te redimir, quem sabe tu me avisa quando eles voltarem em cartaz?

disse...

Sobre o primeiro parágrafo: não cri. A solução seria não entrar no Twitter enquanto o senhor se concentra nos seus textos e estudos. Muitas vezes excluímos o outro porque ele pensa algo que não conseguimos pensar. E existem várias teorias para isso.
Sobre os parágrafos que seguem: reflexões. Sobre sabermos o que vamos ver, quando assistimos tal diretor ou ator é questão de assinatura, de aptidões, ou porque o cara se limita apenas àquilo que sabe.
Sobre F5 acho que todos nós o temos, mas tem quem não saiba onde está o seu e quando encontra incomoda-se com o que vê.
Abraços no senhor.

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