Dançarei sobre o teu cadáver
Foto: Licia Arosteguy
A quente realidade
Julio Conte começa “Dançarei sobre o teu cadáver”, espetáculo que se originou de uma oficina oferecida pelo hoje diretor, com os atores sentados na platéia, espalhados pela sala. Desde então somos tomados por duas certezas: que a história a ser contada nascerá do palco e não da coxia, tendo a não-realidade como método; e que a narrativa dirá a respeito da contemporaneidade de que todos somos construtores. Uma realidade quente a todos nós será o tema. Não fosse teatro, o diálogo não-real sobre um assunto real seria contradição. Como é, que fique entendido que o não-real, aqui, é o “como”, e o real é o “o quê”. “Dançarei sobre o teu cadáver” é uma história contada a partir de personagens e textos que, assumindo-se como teatro, diz sobre nossa relação com a contemporaneidade, bem aos modos brechtinianos. Uma relação também quente.
Parece, no entanto, que o quente da relação e da história não são o suficiente. Já na apresentação dos atores se tornando personagens, num esforço da direção em deixar ainda mais clara a dramaturgia, essa já cândida como mais tarde apresentaremos, ouvimos piadinhas “quebra-gelo”. Nas duas vezes em que assisti ao espetáculo, não lembro de terem sucesso frases do tipo “Eu sou o Boni, mas não o Boni da Globo” ou, então, “1,95cm pra cima e 30cm pra frente”, apenas para citar alguns exemplos. O pesado título “Dançarei sobre o teu cadáver”, ao som de Elza Soares, num palco sem cenário com a predominância da cortina negra discordam desse tipo de tentativa de aproximação, já estabelecida, aliás, pela recepção. Só se quebra gelo quando há gelo. Estando a platéia disposta a assistir ao espetáculo, o gelo é unicamente construído por quem conta a história.
As tentativas de acessar o público pela via direta continuam acontecendo, nem todas fracassadas graças ao carisma de alguns atores. Fernanda Moreno, interpretando Vida, mas merecendo Tracy Turnblad só pra ela, é a melhor atriz nesse espetáculo simplesmente por lembrar que é atriz, que está interpretando uma personagem e ter a certeza de que todos sabem disso. Como felizmente também acontece com Nina Eick (Anastácia), Anderson Oreda (Pantera) e Carol Falcão (Lorinha), não vemos neles o texto duro, escrito por Júlio Conte e Vicky Mendonça, dito com todos os Ss e Rs a que se tem direito num português que nem professores como eu falam. Quanto aos demais atores, com alguns momentos de exceção, o que se sente é basicamente o mesmo: ocupar um lugar em cena, firmar as pernas e dizer o texto sem errar nenhuma palavra. Depois, sair e seguir a rígida marca, template Júlio Conte do teatro gaúcho, tão bem feita em Bailei na Curva e Se meu ponto G falasse, cujos sucessos fazem com que, ano após ano, voltem a cartaz. “Dançarei sobre o teu cadáver” não tem o mesmo bom resultado dos espetáculos citados porque, embora firmado nos mesmo conceitos de direção, tem atores que não sustentam a história que contam. E, em peça de Júlio de Conte, não há o subterfúgio: ou é o ator ou é o ator.
Outro exemplo de tentativa de acessibilidade é a narração das cenas. Na primeira parte do espetáculo, antes da cena se estabelecer, algum personagem informa o público sobre o que ela se trata e quem está nela. Como uma forma de dizer “também estamos assistindo à peça como você! ;-)”, os personagens aumentam o ritmo da narrativa por facilitar o entendimento, pasteurizando a história e tornando irreal o tema que nos foi apresentado como real. E que história é essa?
A história é sobre um garoto, Lifeboy, que, embora esteja a caminho de uma mudança de vida, ainda vive as conseqüências de seu passado envolvido com drogas e ilicitudes da periferia da cidade. Em seu entorno, amigos, nem-tão-amigos e familiares que, de alguma forma, ligados entre si, poderiam ter feito alguma coisa para que Lifeboy não morresse. Qualquer um que já leu “Crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel Garcia Marquez, lembra acertadamente do clima de incapacidade em que os personagens são absorvidos diante do destino. Essa que é a tragédia já tão bem tratada por Beckett, agora com cores de novela policial, adquire a acessibilidade com as classes populares fazendo-se entendida por toda a população. Chico Buarque, na mesma intenção, já cantava: “Mas eis que vem a roda-viva e carrega a roseira pra lá”. “Dançarei sobre o teu cadáver”, no entanto, não situa a história numa localidade latina sem nome, nem fala de roseiras pra falar sobre o vento que leva as pétalas por mais lindas que elas estejam. O lugar é Porto Alegre. O protagonista estuda na PUCRS. A narrativa, assim, já é bastante acessível.
Pouco se sabe dos personagens. Pouco há no palco para ser visto. Ambas realidades são desafiadores para um encenador, para um ator e também para o público. Centrar a história e construir uma trama faz com que seja elevada a importância da interpretação a um limite maior do que o elenco disponibiliza. “Dançarei sobre o teu cadáver”, embora apresente uma história interessante, não só não quebra o gelo como o faz ficar ainda maior. Do lado de cá, assim, a realidade continua quente.
*
Direção: Júlio Conte
Texto: Júlio Conte e Vicky Mendonça
Elenco:
Anderson Oreda (Pantera)
Boni Rangel (Luiz)
Carol Falcão (Lorinha)
Cristiano Godinho (Habib)
Fabiano Geremias (Lifeboy)
Fernanda Moreno (Vida)
Luciana Domiciano (Cida)
Martha Brito (Neneca)
Nina Eick (Anastácia)
Romes Pinheiro (Santos)
Julio Conte começa “Dançarei sobre o teu cadáver”, espetáculo que se originou de uma oficina oferecida pelo hoje diretor, com os atores sentados na platéia, espalhados pela sala. Desde então somos tomados por duas certezas: que a história a ser contada nascerá do palco e não da coxia, tendo a não-realidade como método; e que a narrativa dirá a respeito da contemporaneidade de que todos somos construtores. Uma realidade quente a todos nós será o tema. Não fosse teatro, o diálogo não-real sobre um assunto real seria contradição. Como é, que fique entendido que o não-real, aqui, é o “como”, e o real é o “o quê”. “Dançarei sobre o teu cadáver” é uma história contada a partir de personagens e textos que, assumindo-se como teatro, diz sobre nossa relação com a contemporaneidade, bem aos modos brechtinianos. Uma relação também quente.
Parece, no entanto, que o quente da relação e da história não são o suficiente. Já na apresentação dos atores se tornando personagens, num esforço da direção em deixar ainda mais clara a dramaturgia, essa já cândida como mais tarde apresentaremos, ouvimos piadinhas “quebra-gelo”. Nas duas vezes em que assisti ao espetáculo, não lembro de terem sucesso frases do tipo “Eu sou o Boni, mas não o Boni da Globo” ou, então, “1,95cm pra cima e 30cm pra frente”, apenas para citar alguns exemplos. O pesado título “Dançarei sobre o teu cadáver”, ao som de Elza Soares, num palco sem cenário com a predominância da cortina negra discordam desse tipo de tentativa de aproximação, já estabelecida, aliás, pela recepção. Só se quebra gelo quando há gelo. Estando a platéia disposta a assistir ao espetáculo, o gelo é unicamente construído por quem conta a história.
As tentativas de acessar o público pela via direta continuam acontecendo, nem todas fracassadas graças ao carisma de alguns atores. Fernanda Moreno, interpretando Vida, mas merecendo Tracy Turnblad só pra ela, é a melhor atriz nesse espetáculo simplesmente por lembrar que é atriz, que está interpretando uma personagem e ter a certeza de que todos sabem disso. Como felizmente também acontece com Nina Eick (Anastácia), Anderson Oreda (Pantera) e Carol Falcão (Lorinha), não vemos neles o texto duro, escrito por Júlio Conte e Vicky Mendonça, dito com todos os Ss e Rs a que se tem direito num português que nem professores como eu falam. Quanto aos demais atores, com alguns momentos de exceção, o que se sente é basicamente o mesmo: ocupar um lugar em cena, firmar as pernas e dizer o texto sem errar nenhuma palavra. Depois, sair e seguir a rígida marca, template Júlio Conte do teatro gaúcho, tão bem feita em Bailei na Curva e Se meu ponto G falasse, cujos sucessos fazem com que, ano após ano, voltem a cartaz. “Dançarei sobre o teu cadáver” não tem o mesmo bom resultado dos espetáculos citados porque, embora firmado nos mesmo conceitos de direção, tem atores que não sustentam a história que contam. E, em peça de Júlio de Conte, não há o subterfúgio: ou é o ator ou é o ator.
Outro exemplo de tentativa de acessibilidade é a narração das cenas. Na primeira parte do espetáculo, antes da cena se estabelecer, algum personagem informa o público sobre o que ela se trata e quem está nela. Como uma forma de dizer “também estamos assistindo à peça como você! ;-)”, os personagens aumentam o ritmo da narrativa por facilitar o entendimento, pasteurizando a história e tornando irreal o tema que nos foi apresentado como real. E que história é essa?
A história é sobre um garoto, Lifeboy, que, embora esteja a caminho de uma mudança de vida, ainda vive as conseqüências de seu passado envolvido com drogas e ilicitudes da periferia da cidade. Em seu entorno, amigos, nem-tão-amigos e familiares que, de alguma forma, ligados entre si, poderiam ter feito alguma coisa para que Lifeboy não morresse. Qualquer um que já leu “Crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel Garcia Marquez, lembra acertadamente do clima de incapacidade em que os personagens são absorvidos diante do destino. Essa que é a tragédia já tão bem tratada por Beckett, agora com cores de novela policial, adquire a acessibilidade com as classes populares fazendo-se entendida por toda a população. Chico Buarque, na mesma intenção, já cantava: “Mas eis que vem a roda-viva e carrega a roseira pra lá”. “Dançarei sobre o teu cadáver”, no entanto, não situa a história numa localidade latina sem nome, nem fala de roseiras pra falar sobre o vento que leva as pétalas por mais lindas que elas estejam. O lugar é Porto Alegre. O protagonista estuda na PUCRS. A narrativa, assim, já é bastante acessível.
Pouco se sabe dos personagens. Pouco há no palco para ser visto. Ambas realidades são desafiadores para um encenador, para um ator e também para o público. Centrar a história e construir uma trama faz com que seja elevada a importância da interpretação a um limite maior do que o elenco disponibiliza. “Dançarei sobre o teu cadáver”, embora apresente uma história interessante, não só não quebra o gelo como o faz ficar ainda maior. Do lado de cá, assim, a realidade continua quente.
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Direção: Júlio Conte
Texto: Júlio Conte e Vicky Mendonça
Elenco:
Anderson Oreda (Pantera)
Boni Rangel (Luiz)
Carol Falcão (Lorinha)
Cristiano Godinho (Habib)
Fabiano Geremias (Lifeboy)
Fernanda Moreno (Vida)
Luciana Domiciano (Cida)
Martha Brito (Neneca)
Nina Eick (Anastácia)
Romes Pinheiro (Santos)
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