18 de jan. de 2010

Há um incêndio sob a chuva rala



Foto: Claudia Elia

Sem chuva e sem fogo


Uma parte discordante torna o todo disforme. Em peça que se apresenta como dramática, ou seja, um único foco, uma história contada do início ao fim com peripécias, reconhecimentos e catarse, a parte é só uma amostra do todo. Embora o todo “Há um incêndio sob a chuva rala” tenha um cenário significativo, uma luz pontual, um figurino interessante e uma atriz que não deixa a desejar, o texto adaptado equivocamente impede que os sentidos se estabeleçam de forma plena. Diferente de todos os elementos do palco, o ator é o único que, sendo também ele um elemento, pode transformar os demais: Daniela Lima transforma as meias paredes do cenário de Cláudio Benevenga em um apartamento, o blackout na luz de Taylor Rocha em uma queda de energia, barulhos de trovões saindo das caixas de som, em uma tempestade. Diante, no entanto, de uma adaptação nada coerente, não consegue fazer com que todo o esforço empregado atinja o grande potencial a que se propôs.

No conto de Vera Karam, a personagem principal não aparece em seu apartamento. A história começa quando ela surge na porta do vizinho de cima e se apresenta como a nova moradora de baixo que precisa dar olhada na área de serviço para... (Reticências de Karam.) O conto é intimista, a personagem fala baixo, seu ouvinte está próximo. Ao entrar numa casa desconhecida, ela visita uma intimidade que não é sua. E, como em Nelson Rodrigues e em tantos outros contistas do século XX, é no final que teremos a grande revelação que dará sentido a todo o seu anterior. A personagem de Karam, na verdade, não visita um desconhecido, nem o desconhecido é desconhecido. Ela e o vizinho já foram íntimos num passado revisto na situação dramática do conto. “Há um incêndio sob a chuva rala” é uma imagem cuja profundidade é digna de muitas páginas e horas de discussão. Aqui podemos imaginar um incêndio queimando as gotas de uma chuva fina. A chuva não desiste de tentar. O fogo não desiste de tentar. Em seu absoluto contraste, ambos coexistem.

Na terrível adaptação de Juliana Thomaz, não há fogo e muito menos chuva. Não há também intimidade e nem ao menos visita. E, que tédio!, não há desconhecido, uma vez que esse espetáculo é, por sua dramaturgia, uma cópia mal feita de “Pois é, vizinha...”, adaptação de “Uma mulher só”, de Dario Fo e Franca Rame. Maria, de “Pois é, vizinha...”, está em seu apartamento e fala com a nova moradora do apartamento em frente ao seu. Maria fala porque tem necessidade de conversar consigo mesma, sendo essa sua única chance de não enlouquecer. Sua loucura crescente explica os gritos janela a fora e nos alivia de tentar achar explicações, dando-nos tempo para descobrir novos sentidos. No monólogo em cartaz em Porto Alegre há 17 anos, Maria exibe para o público sua própria intimidade. No monólogo estreante no 11º Porto Verão Alegre, a protagonista desvenda a intimidade do outro que, inacreditavelmente, não fecha a janela, mas permanece em silêncio.

Não se consegue entender o porquê da protagonista almejar olhar a área de serviço do apartamento do prédio da frente na adaptação de Thomaz. Em Karam, é natural o vizinho debaixo precisar entrar no apartamento de cima em função de algum vazamento. Que olhos têm a protagonista de Thomaz para enxergar a coleção de discos do vizinho? Como ela faria uma extensão do telefone dela para o apartamento da frente? E que sacada é essa em que a nova moradora precisa se esconder para não ver o vizinho tomar banho em seu próprio banheiro dentro de sua casa? Essas perguntas são sem respostas coerentes e, sem elas, o espetáculo não anda porque não conseguimos acreditar na história. Verossimilhança, base para a cartarse, passa longe.

Fica a voz projetada da atriz Daniela Lima que conversa com alguém além da rua dizendo um texto que é para ser dito baixinho. Não fica o impacto final do belo conto de Karam, em que nova vizinha aponta uma arma para o morador, seu anfitrião agora indefeso. Em Thomaz, ao ver a vizinha louca e faladeira do prédio da frente lhe apontar uma arma, com toda certeza, ele simplesmente entrou para o seu apartamento e fechou a porta, como deveria ter feito nos primeiros cinco minutos de falatório, esse escutado por toda a rua, todo o condomínio, todos nós.

Literatura e Teatro são duas artes que vivem muito bem em separado há milênios. Mas, assim como a água da chuva e o fogo precisam de oxigênio para existir, a literatura dramática e o teatro dramático necessitam de coerência para se estabelecer em plenitude.

Aristóteles precisa ser lido mais vezes.

*

Ficha Técnica:

Texto: Vera Karam
Adaptação e Direção: Juliana Thomaz
Atuação: Daniela Lima
Orientação Cênica: Vinicios Cáurio
Trilha Sonora: Rafael Siqueira
Cenário e Figurino: Cláudio Benevenga
Iluminação: Taylor Araújo
Produção: Produtora Teatro Hebraica

1 Comentário:

Jujux disse...

Sempre crescemos após ler uma belíssima crítica!
Obrigada! Você é fera! Beijos
JT

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