10 de fev. de 2011

O segredo íntimo dos homens

Foto: divulgação

A importância das relações na construção do sentido

Interessante que, em espetáculos como O segredo dos íntimos dos homens, é possível se identificar, de forma muito clara, a força que as relações estabelecem na construção de sentido de um texto cênico. Tantas vezes eu repito do lamentável uso de piadas escatológicas, de referências a sexo como recurso para a comédia, da exploração de clichês do universo masculino e feminino como limite para o sucesso numa produção fracassada. Nada disso é caso aqui. Estarei eu me contradizendo? Não. Aqui chamo a atenção para o fato de que um sentido só se dá pela relação entre os signos, pela mobilização dos sistemas. O segredo íntimo dos homens, cuja abertura se dá num consultório de urologia, cujo nome contempla a palavra Pinto, não se propõe a outra coisa se não tratar justamente, de forma cômica, da questão sexual masculina. Quem espera outra coisa está enganado. O espetáculo vai dizendo, assim, onde quer chegar, isto é, a que veio: estabelecer um universo em que o pênis é o protagonista e suas dores são o desafio que ele tem que vencer.E, ainda com certos percalços, há que se dizer que ele chega onde quer chegar, o que resulta num resultado positivo.

Com texto e direção de Pedro Delgado, vemos dois pênis indo visitar um especialista neles. O problema de um, o personagem Robin (Émerson Maicá), é timidez. Ele não consegue sentir-se corajoso o suficiente para fazer aquilo que o seu dono gostaria que ele fizesse. O problema de outro, o personagem Garrincha (Pedro Delgado), é o fato de ser torto. É interessante como a identificação desses dois personagens se dá aos poucos: no início, pensamos que se tratam de dois homens e, mais para o fim, é que entendemos que são dois órgãos sexuais e não os seus donos que estabelecem o conflito dramático. A figura do doutor (Henri Nunes) é híbrida. Veste-se de mulher, pinta a unha, usa maquiagem, mas expõe uma relação sexual com sua secretária (Márcia Mello). Embora cause alguns problemas, a dificuldade criada na identificação dos personagens tem o benefício de estimular um certo interesse da assistência em saber quem está contando essa história.

Também são positivos os aspectos visuais do espetáculo que mostram um certo cuidado com aquilo que é mostrado ao público. Tanto a sala de espera do consultório como o próprio consultório é decorado com luminárias, móveis, e detalhes que, às vezes, infelizmente, faltam em várias produções. O figurino igualmente: percebe-se que houve uma certa reflexão em sua definição que resultou no que o público vê na produção.

Mas, voltando à dramaturgia, o seu problema está na sua evolução. Os dois motivos que fizeram com que os pênis procurassem um especialista não se desenvolvem. Vemos os personagens falarem sobre as causas e as conseqüências. No caso de Robin, presenciamos uma tentativa de tratamento. Mas, ao fim, ambos vão embora ainda na mesma situação inicial. E por que vão embora? Porque o expediente acaba, a mãe da secretária está com a janta pronta, posta à mesa, esperando a filha e o doutor para jantar. Assim, a solução final é fraca, simplória, não justificada. Os dois “heróis” encerram a peça lendo uma série de definições de “corno” que, de forma muito superficial, se relaciona com o tema do espetáculo (ser corno pode ser uma das conseqüências de um dos problemas apresentados, mas não dos dois), o que é uma pena.

Com exceção de Pedro Delgado, nada há para destacar na construção dos demais personagens, todos suficientemente expostos sem grandes momentos nem positivos, nem negativos. Quanto ao dramaturgo, diretor e ator, deve-se chamar a atenção para uma evidência: mais uma vez, com uma superficial construção estética, o ator concebe seu personagem com um cerne já repetido em outros espetáculos. Assim como em As favas com os homens que as mulheres vão à luta, Q os homens pensam q as mulheres pensam e Como enlouquecer sua alma gêmea, o personagem de Delgado toma para si um discurso que representa um grupo contra o outro de forma generalizada. Algumas vezes como homem, algumas vezes como mulher, a voz, a força e a função narrativa é sempre a mesma: um discurso monocorde, rabugento e cansativo sobre o que idealizadamente um determinado grupo faz. Essa chamada é uma reflexão sobre o trabalho desse ator que, também diretor e dramaturgo desses espetáculos, parece deixar de explorar em suas construções sua potencialidade ou repeti-la nos mesmos contornos.

É necessário ainda tratar de duas questões referentes a esse espetáculo antes de encerrar essa pequena análise. De um lado, a luz e a trilha sonora, na apresentação a que eu assisti, teve boa parte das entradas e saídas expostas cheias de equívocos, exibindo a falta de ensaios que, penso eu, garantem um melhor resultado. De outro, o sucesso que a produção faz entre seu público. Não lembro de ter presenciado uma fila tão grande no Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana. E esse fato só faz aumentar ainda mais a responsabilidade dessa produção frente ao teatro gaúcho. Nunca podemos nos esquecer de que uma má peça faz com que o público não se afaste dessa produção, mas do teatro de um modo geral. Felizmente, de todo, esse não é o caso felizmente.

*

Ficha Técnica
O texto: Pedro Delgado

Elenco:
Márcia Mello
Jorge Gil
Pedro Delgado
Henri Iunes

Iluminação:
Eder Santos

Trilha Sonora:
Eduardo Britto
Operação: Daniela Carvalho
Direção: Pedro Delgado
Cenário e figurinos: Grupo de Teatro cacimba
Produção: Reluz – Produção & Marketing Cultural
Realização: Grupo de teatro Cacimba

Show de Calouros


Foto:divulgação

O divertido Show de Calouros


Show de Calouros é um espetáculo cênico que, como outro, dialoga com a Televisão na medida em que constrói sua narrativa utilizando os signos, os formatos, os tempos construídos mais significativamente por esse veículo de comunicação. Assim temos, de um lado, um apresentador âncora e seu assistente. Quatro jurados num segundo grupo e os concorrentes que, juntos, formam o terceiro grupo de personagens. As marcas de teatralidade estão na construção dos personagens, na ausência das câmeras reais, na falta de pausa para comerciais. Como em qualquer peça tradicional, aqui há atores que interpretam personagens diante de um público. As marcas de narratividade estão na relação da apresentação do espetáculo ao longo da temporada. A cada dia, os concorrentes se modificavam. Há uma votação e os vencedores vão evoluindo. No domingo, quando eu fui assistir, era a final. O prêmio: uma bolsa de estudos na Casa de Teatro de Porto Alegre.

O diálogo com a realidade, ou melhor, com aquilo que está além da narrativa, é bastante rico. Além do prêmio que é real, entre os concorrentes há Iuri, o mágico e Lúcia Becker, personagens que o artista circense Iuri ColesNik e o ator Iran Marcon interpretam fora desse espetáculo. Os personagens que compõem o júri, Bete Gorete (Pitti Sgarbi), Eneida (Alexandre Scapini), Vô Ini (Felipe de Paula) e Jaqueline Bueiro (Jeffie Lopes), também aparecem em outras produções sozinhos ou junto com outros personagens.

O foco da produção em seu colocar-se diante do espectador é entretê-lo, oferecendo um divertimento leve e descontraído, contando com sua participação na hora de escolher os concorrentes que evoluirão ou, no caso da fase final, aquele que vencerá, ganhando o prêmio. O vencedor nessa edição foi o ator Iran Marcon, que, pela opinião da maioria dos presentes, se destacou diante dos demais: Aninha (Ana Paula Schneider), Iuri, o mágico (Iuri ColesNik) e Nega Jurema (Thiago Souza). Os jurados fazem um show à parte em seus comentários, engrandecendo esse espetáculo dentro daquilo a que ele se propõe: fazer rir de modo fácil, rápido e leve, sem grandes pretensões a não ser fugir da vulgaridade o máximo possível. Uma obra de arte deve ser sempre avaliada a partir de si mesmo, de suas propostas, de onde chegou em comparação com onde quis chegar. Show de Calouros vence seu pequeno desafio com galhardia e movimenta o teatro gaúcho, recebendo, inclusive, o retorno do público que quis assistir mais de uma vez a produção dentro da mesma temporada, na torcida pelos seus concorrentes preferidos.

As figuras, sejam de qual dos grupos pertencer, estão no auge de suas exposições. Gratas surpresas para mim, que não conhecia boa parte deles, fazem com que eu renda elogios pela força de suas construções e pela rápida e eficaz relação com o público. Destacar um significa relevar a segundo plano os outros e, por não encontrar justificativas para isso, prefiro não avançar, terminando ao dizer que todos estão muito bem.

Além dos atores e sua relação entre si, os aspectos plásticos da produção, de um modo geral, exibe o respeito que o projeto presta ao seu público. Nada está fora do lugar, nada deixa a desejar, nenhum detalhe desmerece a longa fila da assistência e os aplausos que surgem no final.

Há quem, infelizmente, pense que eu tenho rancor ou mágoa sempre que eu faço uma crítica negativa. Será que agora eu teria interesse em participar desse que tanto elogiei? Deusmelivre abdicar do lugar de plateia, nenhum pouco indigno e muito valorizado por mim. De onde, nesse caso, eu aplaudo fortemente.

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Ficha técnica:

Coordenação: Eduardo Mendonça
Apresentação: Egídio Filho (Eduardo Mendonça)
Elenco Júri: Bete Gorete (Pitti Sgarbi), Eneida (Alexandre Scapini), Vô Ini (Felipe de Paula) e Jaqueline Bueiro (Jeffie Lopes)
Elenco Calouros: Aninha (Ana Paula Schneider), Iuri, O Mágico (Iuri ColesNik), Nega Jurema (Thiago Souza) e Lúcia Becker (Iran Marcon)
Assistente de palco: Isaías da Silva (Francisco de Los Santos)
Participação especial: Caio Prates
Operação de Som: DJ Claudiomiro (Emilio Farias)
Operação de Luz: João Cláudio
Cenografia: Ana Paula Schneider e Pitti Sgarbi

6 de fev. de 2011

A milímetros de Mercúrio


Foto: Ricardo Duarte

A quilômetros de distância...

Assim, como Pílula de Vatapá, Dançarei sobre o teu cadáver e Larissa não mora mais aqui, A milímetros de Mercúrio não tem um resultado positivo. E por quê? Por que a avaliação acontece num lugar que não é adequado. Diferente do Tepa, da Casa de Teatro de Porto Alegre, do Grupo Sarcáustico, do Depósito de Teatro e da Oficina Margarida Leoni Peixoto, que também oferecem, ao longo do ano, oficinas e cursos de formação de atores com montagem de espetáculo, a Cômica Cultural insiste mais uma vez no terrível engano de colocar seus alunos na roda de teatro profissional de Porto Alegre. De um lado, desrespeita o teatro profissional de Porto Alegre. De outro, faz mal aos jovens atores que, inexperientes, provam de sabores para os quais ainda não estão preparados. Uma coisa é assistir e avaliar A milímetros de Mercúrio numa Mostra Cultural de Espetáculos de Formação (Aliás, a Cômica realizou essa Mostra no último dezembro), em que todos os participantes são atores que estão iniciando suas carreiras, suas leituras, seus experimentos. Lá qualquer avaliação tem que considerar o processo, lembrar que os novos artistas estão ainda buscando formas de expressão, guardar o muito que ainda falta depois de admitir o belo trabalho que os professores realizaram ao produzir a peça junto aos seus alunos. Atores profissionais crescem ao longo de seus trabalhos, mas atores estudantes precisam crescer. Evoluir, para o estudante, é palavra que o define, que o identifica, que o constrói. No Porto Verão Alegre, no entanto, não se quer saber do processo, da evolução, do aprendizado e dos valores desse estudante. A milímetros de Mercúrio ocupa o mesmo espaço numa grade de programação em que também estão Nove mentiras sobre a verdade, Goela abaixo ou por que tu não bebes?, Pois é, vizinha... , Desvario, Mães & Sogras, Fora do ar, Bailei na Curva, Se meu ponto G falasse, Inimigas Íntimas, O avarento, Dona Gorda, A comédia dos erros e tantos outros espetáculos de altíssimo nível, cujos currículos que os constroem não dependem desse ou daquele curso de formação, mas de anos e anos de trabalho e estudo e vivência. Daí que uma avaliação justa colocará os responsáveis por A milímetros de Mercúrio diante de critérios muito além de suas possibilidades, já que, ao escolher o espetáculo, o grande público, a quem essa crítica se dirige em primeiro lugar, não foi avisado de que o que verá é nada mais que um trabalho de formatura em nível médio (o nível superior seria de um espetáculo fruto de um Curso de Graduação em Artes Cênicas na UFRGS ou na UERGS).

Sem nenhuma exceção, nenhum ator tem preparo vocal adequado. As palavras se perdem na ausência de boa dicção, de volume, de força, de entonação. A situação pra quem ouve fica ainda pior numa das cenas finais em que todos dizem o texto usando máscaras.

O trabalho corporal é pífio, com algumas esparsas exceções em Fabrizio Gorziza e Gisela Sparremberger. As ações se resumem em levantar, mexer-se, ocupar o espaço cênico e produzir sem método uma imagem fixa. É visível não haver incorporação do texto e do personagem, havendo total ausência de construção do mesmo um pouco além da “casca”.

A dramaturgia é um exemplo comercial (e ofensivo) do Pós-dramático. Resulta de uma compreensão equivocada de que ser contemporâneo (Ryngaert), e, pior, ser pós-dramático (Lehmann) é simplesmente misturar vários personagens e muitas histórias num roteiro narrativo fragmentado. Em A milímetros de Mercúrio, há sete atores. Cada um conta uma pequena história no início. Ao longo da encenação, essas histórias são esquecidas e retornam, se modificam e retornam novamente, fazendo o público rir, ou, ao menos, se mexer, apenas nos momentos em que palavrões ou referências a sexo surgem gratuitamente (e é praticamente só isso que acontece na construção do personagem mais velho), o que deveria envergonhar qualquer dramaturgo. Outros personagens surgem, outras histórias e situações aparecem, o que é formalmente pós-dramático. Mas o teatro estudado por Lehmann não está na forma, mas no conteúdo. E conteúdo não há. As histórias e as situações expostas não se relacionam entre si e nem oferecem possibilidades de relação no âmbito de sua temática, visto que, em primeiro lugar, há um número imenso de plots dispersos, e, em segundo lugar, a linguagem utilizada, de um modo geral, é muito dispersiva, bailando de um tom a outro, de um assunto a outro, de um tema a outro de forma muito rápida. De um lado, por exemplo, temos a total interna desconexão de diálogos que não concordam entre si. De outro, temos a cena das lanternas em que um ator fala em inferno e os demais gritam diabolicamente, ou um ator fala em rasgo e os demais balançam suas luzes em diagonal, numa repetitiva imagetização do discurso, contrário à desconexão recém vista. O cruzamento possível é apenas plástico. Em vários momentos, sabemos que, por haver sete atores, os sete vão falar, os sete vão trocar de lugar, os sete vão jogar com seus pares em duplas ou em trios, os sete vão usar máscaras, os sete vão usar lanternas, e assim por diante.

É interessante, vale dizer, o ponto de partida: a Soneide é um Call Center e os personagens primeiros são funcionários atendentes dessa prestadora de sonhos. Alguns dos textos, giram em torno dos sonhos de cada um e do que fizeram para realizá-los. Retirar, no entanto, esse sistema significativo, e, por isso, passível de produção de sentido junto aos demais, do emaranhado dramatúrgico é tarefa quase impossível. A situação fica ainda pior quando, ao final do espetáculo, numa longa cena, há a dissertação sobre o Mercúrio, sua origem mitológica, suas definições químicas, seus usos na história do mundo e do Brasil. É como se um novo e ruim espetáculo tivesse início antes do anterior ter terminado.

A partir de critérios sob os quais também se avalia os outros espetáculos profissionais anteriormente citados, é preciso que se diga que os aspectos visuais de A milímetros de Mercúrio são excelentes. A ocupação do palco por bambolinas de plastico transparente, a opção por bolas de borracha, o uso de respiradores numa metáfora a um asfixiante Call Center são belos e potentes. A união tonal disso com a paleta de cores dos figurinos igualmente. Sobretudo, há que se elogiar e aplaudir o desenho de luz, de fato, um dos mais belos nessa temporada.

Ninguém nasce sabendo e aprender faz parte da vida de todos. Mas por que fazer entrevista de emprego numa multinacional quando ainda não se terminou o primário? Numa Mostra de Formatura, certamente, o meu recado seria outro:

“Continue estudando, continue descobrindo, parabéns por suas conquistas até aqui e não desista! O teatro pode até viver sem críticos, mas não existe sem atores, por isso, é necessário que você permaneça firme no tortuoso, difícil e desafiador processo de construção do fazer artístico. Por mostrares ter coragem para chegar até aqui, é possível que também tenhas garra para ir adiante. Então, vá!”

*

Ficha técnica:
Texto e Direção: Júlio Conte
Assistente de Direção: Catharina Cecato Conte
Elenco: Alessandro Peres, Gisela Sparremberger, Guega Peixoto, Fabrizio Gorziza, Duda Paiva, Vanessa Cassali e Jordan Martini
Criação de cenário e fiigurino: Grupo
Trilha sonora pesquisada: Júlio Conte
Iluminação: Gabriel Lagoas
Realização: Cômica Cultural
Material Gráfico: Alessandro Peres
Divulgação: Gisela Sparremberger

A encalhada


Foto: divulgação

Encalhada

Lisiane Berti é Maria do Amparo, uma mulher de 33 anos que está há dois anos sem namorar com ninguém. Ela é professora de Educação Física, mora sozinha e gosta muito de um dos personagens (Darci) do filme Orgulho e Preconceito. O que o público ouve e vê são seus desabafos na inglória vida de uma encalhada.

(Algo bastante semelhante a isso, o público de Porto Alegre vê em Dona Gorda, texto assinado pela mesma Lisiane Berti e interpretado por Lúcia Bendati.)

Ocorre que o que sustenta a narrativa é fraco. Vejamos algumas questões:

1) O espetáculo começa com Amparo entrando no espaço cênico vestida de noiva. Se a história começa pelo fim, isto não está claro. Vemos que ela entra já tirando a roupa de noiva enquanto fala ao telefone com sua colega professora de escola. De repente, o vestido de noiva se torna um horroroso conjunto de saia e blusa que faz a atriz parecer mais uma mãe de santo do que uma professora. Então, conhecemos Darci, uma fotografia presa na parede com quem Amparo conversa. Poderíamos pensar que o vestido de noiva é uma referência a algo que aconteceu no passado da personagem: teria sido ela abandonada no altar há dois anos? Isso também não está claro...

2) A cena da aula de Educação Física é boa, porque é uma oportunidade para conhecemos melhor a personagem. No entanto, a ação fica ilustrativa e o ritmo do espetáculo cai já logo nesse início de narrativa. O fato de conhecermos melhor Amparo não nos garante a resposta de uma questão fundamental: por que estamos ali? Que história é essa que nos será contada? O que nos motiva? O tempo corre e tudo se parece muito sensível: dois anos sem namorado ainda não nos parece ser a eternidade que teoricamente moveria a personagem para a loucura iminente.

3) Teclar com alguém em cena é sempre um problema para o dramaturgo. Aqui não é diferente. Amparo combina de, finamente conhecer o Escravo47, nickname de seu amigo virtual, muito rápido. Passa muito pouco tempo entre a conversa via MSN, o encontro e a volta para casa. Esse é um exemplo de que, quando as ações acontecem nesse espetáculo, elas são rápidas demais. O resultado é que a peça vai se tornando mais reflexiva que dramática, o que é um problema em se tratando de uma comédia. As dicas do tipo "auto ajuda", quando são mais sutis, garantem um resultado melhor. A sutileza acontece quando a história contada disfarça o tema. Aqui, até então, a história não é explorada suficientemente.

4) A mesma rapidez acontece na cena do supermercado quando Amparo conhece o Cowboy. O aparecimento desse novo personagem é um nítido e pobre exemplo deus ex-machina, uma solução dramatúrgica que cai do céu sem precedentes. Após isso, vem o fim, esse realizado de forma brusca, estranha e inverossímil.

Contada de forma nervosa, a história, além de deixar de explorar outras possibilidades, é mal contada. Vale dizer, no entanto, que é bem interpretada.

Lisiane Berti tem grande carisma e, por isso, conquista o público com muita facilidade. Em movimentos rápidos e muita expressão, a atriz confere riqueza à construção de sua personagem, aprofundamento de níveis e alguma verdade entre o que é dito a partir desse texto já considerado pobre. A movimentação é simples e clara, os objetos cênicos são reduzidos ao essencial (o que também é pobre) e os ambientes são bem definidos.

A encalhada é uma comédia simples, sem grandes pretensões e que pode, um dia, se tornar um sucesso. Para tanto, precisará vencer os desafios que ela própria criou para si. O noivado com o público, de forma tímida, acontece desde já.

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Ficha Técnica:
Texto e Atuação: Lisiane Berti
Direção: Julio Zaicoski
Cenário e Figurino: Dani Amaral
Programação Visual: Charle Oliveira
Trilha Sonora: Gustavo Freitas

1 de fev. de 2011

O programa da Eneida


 Foto: divulgação

Dor de tanto rir

"O Programa da Eneida” é um espetáculo teatral que, de uma forma muito interessante, relaciona o teatro com a linguagem de TV. Na parte da TV, está a estrutura: o cenário é um programa de auditório comandado por Eneida, uma espécie de Hebe Camargo com Marley Soares. O ritmo corre com interrupções marcadas pela chegada do horário comercial. Neles, Sandra, a assistente de palco da apresentadora Eneida, atua de forma “visível”, enquanto que, quando o programa está no ar, ela está “invisível”. A organização espacial está toda voltada para o público, entre o que se imagina haver uma ou mais câmeras. Na parte do teatro, está a relação dos atores com seus personagens e o público: Alexandre Scapini, interpretando Eneida; e Pitty Sgarbi, Sandra. Então, no encontro desses dois, partimos para os aspectos mais interessantes da produção. Não é um programa de televisão, mas um espetáculo de teatro. A relação entre todos os elementos, ora de um sistema, outra doutro, no entanto, nos conduz para o universo do programa de auditório. Um programa como esse é de TV quando é exibido na TV. Quando está sendo gravado, é teatro. “O Programa da Eneida”, assim, falsamente aponta para a TV e, investindo ainda em mais jogos falsos como esse, nos concede a graça de um ótimo e elegante divertimento.

Eneida aponta para uma apresentadora de programa de TV, mas não se parece de todo com uma. Ela tem um problema visível no olho direito (não consegue abri-lo, como faz com o esquerdo), é atrapalhada demais (se perde na organização do programa, modifica as informações que dá várias vezes, fala constantemente com a produção, ...) e tem atitudes que fogem do normal em relação aos seus psedo-pares. Por exemplo, ao fazer a propaganda de uma cerveja, ela mergulha dos dedos no copo e passa no pescoço para expressar a refrescância que a bebida oferece. Tudo isso, no entanto, compõe o que há de melhor nesse todo espetacular: o espectador vive um jogo de repertório, o riso vem desses contrastes, desses imbricamentos, dessa idéia: “Eu sei que não pareço o que gostaria de parecer, mas aceite brincar comigo mesmo assim!” Jeffie Lopes está, ao mesmo tempo, na iluminação/sonorização tanto do programa de TV (ficção) como do teatro (situação atual). E quando ele fala com Eneida também está falando com o ator que a interpreta.

A personagem Sandra é viva em cena desde o início quando indica ao público o lugar de sentar, recolhendo os ingressos na entrada. Ela é sempre visível, mas a sua postura em falar baixinho, permanecer longe da luz e pouco se movimentar em oposição ao exato contrário quando estamos no “intervalo comercial” estabelece a estrutura e nos convence a fingirmos não vê-la quando um novo bloco do programa inicia.

O roteiro é todo pautado nessa necessidade de nos convencermos de que algo é algo embora não pareça ser algo. Há, por exemplo, um “momento de reflexão” em que Eneida lê uma frase para os telespectadores. As frases lidas nesses momentos, no entanto, são ditos populares que, embora cheios de sabedoria, não oferecem ao ouvinte a profundidade que se espera. “Água mole, em pedra dura, tanto bate até que fura” seria um exemplo que dialoga convergentemente com outros sistemas menores dentro da mesma narrativa. O martelo usado por Eneida na hora do Leilão, bem como os valores absurdos cobrados pelos produtos seguem na mesma linha das mensagens. O funil feito com garrafa pet e papel crepom acompanha a mesma concepção. E assim por diante: em todos os aspectos, “O Programa da Eneida” é uma aula de como produzir dramaticidade, isto é, entrelaçamento narrativo, num espetáculo de comédia dissertativo.

O que faz a peça começar e terminar é o início e o fim do programa, em que cada bloco é um argumento a mais na construção desse texto. Não há uma curva, um conflito potente, um ápice... A sucessão de quadros avança o tempo e estabelece a união das situações que bem poderiam estar organizadas de outra forma. O centro é mesmo Eneida e apenas ela: a tese a ser desenvolvida.

Alexandre Scapini está nada menos que excelente nesse personagem criado integralmente por ele e já assistido por milhares de pessoas não só por vias teatrais, mas também através do Youtube. Tendo reforçado o processo criativo em espetáculos de diversos formatos, o ator exibe, hoje, domínio sobre ele “de uma maneira” primorosa. Pitty Sgarbi, sem dúvida, uma das poucas atrizes a sempre ter sucesso na exploração de múltiplas caricaturas, nada deixa a desejar e só acrescenta bons valores. Os aspectos plásticos igualmente.

É verdade que a energia baixa em certo ponto da produção. Seria porque as pessoas simplesmente já cansaram de tanto rir? Penso que é possível haver elementos a crescer que venham do espetáculo e não da assistência. Em certo momento, a relação com o programa de TV fica fluída demais e quase não acreditamos no jogo proposto inicialmente. Os intervalos não são matematicamente regulares, a luz e a música nem sempre entram na hora, a brincadeira “Quem quer ser Eneida?” não acontece... Nesses momentos, o jogo perde em força, o espetáculo perde em amarração porque o se desequilibra: fica teatro demais e programa de TV de menos.

“O Programa da Eneida”, contudo, tem grandes patrocínios e voltará em algum canal. O seu público fiel lotou a sala da Casa de Teatro no horário das 23h45min e saiu de lá com problemas faciais de tanto se divertir, o que aqui convida outros públicos para assistirem em outras oportunidades. Enquanto isso não acontece, a internet disponibiliza gotas dessa ótima produção tão rica teoricamente quanto eficaz e valoroso meio de entretenimento.

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