O programa da Eneida
Foto: divulgação
Dor de tanto rir
"O Programa da Eneida” é um espetáculo teatral que, de uma forma muito interessante, relaciona o teatro com a linguagem de TV. Na parte da TV, está a estrutura: o cenário é um programa de auditório comandado por Eneida, uma espécie de Hebe Camargo com Marley Soares. O ritmo corre com interrupções marcadas pela chegada do horário comercial. Neles, Sandra, a assistente de palco da apresentadora Eneida, atua de forma “visível”, enquanto que, quando o programa está no ar, ela está “invisível”. A organização espacial está toda voltada para o público, entre o que se imagina haver uma ou mais câmeras. Na parte do teatro, está a relação dos atores com seus personagens e o público: Alexandre Scapini, interpretando Eneida; e Pitty Sgarbi, Sandra. Então, no encontro desses dois, partimos para os aspectos mais interessantes da produção. Não é um programa de televisão, mas um espetáculo de teatro. A relação entre todos os elementos, ora de um sistema, outra doutro, no entanto, nos conduz para o universo do programa de auditório. Um programa como esse é de TV quando é exibido na TV. Quando está sendo gravado, é teatro. “O Programa da Eneida”, assim, falsamente aponta para a TV e, investindo ainda em mais jogos falsos como esse, nos concede a graça de um ótimo e elegante divertimento.
Eneida aponta para uma apresentadora de programa de TV, mas não se parece de todo com uma. Ela tem um problema visível no olho direito (não consegue abri-lo, como faz com o esquerdo), é atrapalhada demais (se perde na organização do programa, modifica as informações que dá várias vezes, fala constantemente com a produção, ...) e tem atitudes que fogem do normal em relação aos seus psedo-pares. Por exemplo, ao fazer a propaganda de uma cerveja, ela mergulha dos dedos no copo e passa no pescoço para expressar a refrescância que a bebida oferece. Tudo isso, no entanto, compõe o que há de melhor nesse todo espetacular: o espectador vive um jogo de repertório, o riso vem desses contrastes, desses imbricamentos, dessa idéia: “Eu sei que não pareço o que gostaria de parecer, mas aceite brincar comigo mesmo assim!” Jeffie Lopes está, ao mesmo tempo, na iluminação/sonorização tanto do programa de TV (ficção) como do teatro (situação atual). E quando ele fala com Eneida também está falando com o ator que a interpreta.
A personagem Sandra é viva em cena desde o início quando indica ao público o lugar de sentar, recolhendo os ingressos na entrada. Ela é sempre visível, mas a sua postura em falar baixinho, permanecer longe da luz e pouco se movimentar em oposição ao exato contrário quando estamos no “intervalo comercial” estabelece a estrutura e nos convence a fingirmos não vê-la quando um novo bloco do programa inicia.
O roteiro é todo pautado nessa necessidade de nos convencermos de que algo é algo embora não pareça ser algo. Há, por exemplo, um “momento de reflexão” em que Eneida lê uma frase para os telespectadores. As frases lidas nesses momentos, no entanto, são ditos populares que, embora cheios de sabedoria, não oferecem ao ouvinte a profundidade que se espera. “Água mole, em pedra dura, tanto bate até que fura” seria um exemplo que dialoga convergentemente com outros sistemas menores dentro da mesma narrativa. O martelo usado por Eneida na hora do Leilão, bem como os valores absurdos cobrados pelos produtos seguem na mesma linha das mensagens. O funil feito com garrafa pet e papel crepom acompanha a mesma concepção. E assim por diante: em todos os aspectos, “O Programa da Eneida” é uma aula de como produzir dramaticidade, isto é, entrelaçamento narrativo, num espetáculo de comédia dissertativo.
O que faz a peça começar e terminar é o início e o fim do programa, em que cada bloco é um argumento a mais na construção desse texto. Não há uma curva, um conflito potente, um ápice... A sucessão de quadros avança o tempo e estabelece a união das situações que bem poderiam estar organizadas de outra forma. O centro é mesmo Eneida e apenas ela: a tese a ser desenvolvida.
Alexandre Scapini está nada menos que excelente nesse personagem criado integralmente por ele e já assistido por milhares de pessoas não só por vias teatrais, mas também através do Youtube. Tendo reforçado o processo criativo em espetáculos de diversos formatos, o ator exibe, hoje, domínio sobre ele “de uma maneira” primorosa. Pitty Sgarbi, sem dúvida, uma das poucas atrizes a sempre ter sucesso na exploração de múltiplas caricaturas, nada deixa a desejar e só acrescenta bons valores. Os aspectos plásticos igualmente.
É verdade que a energia baixa em certo ponto da produção. Seria porque as pessoas simplesmente já cansaram de tanto rir? Penso que é possível haver elementos a crescer que venham do espetáculo e não da assistência. Em certo momento, a relação com o programa de TV fica fluída demais e quase não acreditamos no jogo proposto inicialmente. Os intervalos não são matematicamente regulares, a luz e a música nem sempre entram na hora, a brincadeira “Quem quer ser Eneida?” não acontece... Nesses momentos, o jogo perde em força, o espetáculo perde em amarração porque o se desequilibra: fica teatro demais e programa de TV de menos.
“O Programa da Eneida”, contudo, tem grandes patrocínios e voltará em algum canal. O seu público fiel lotou a sala da Casa de Teatro no horário das 23h45min e saiu de lá com problemas faciais de tanto se divertir, o que aqui convida outros públicos para assistirem em outras oportunidades. Enquanto isso não acontece, a internet disponibiliza gotas dessa ótima produção tão rica teoricamente quanto eficaz e valoroso meio de entretenimento.
Dor de tanto rir
"O Programa da Eneida” é um espetáculo teatral que, de uma forma muito interessante, relaciona o teatro com a linguagem de TV. Na parte da TV, está a estrutura: o cenário é um programa de auditório comandado por Eneida, uma espécie de Hebe Camargo com Marley Soares. O ritmo corre com interrupções marcadas pela chegada do horário comercial. Neles, Sandra, a assistente de palco da apresentadora Eneida, atua de forma “visível”, enquanto que, quando o programa está no ar, ela está “invisível”. A organização espacial está toda voltada para o público, entre o que se imagina haver uma ou mais câmeras. Na parte do teatro, está a relação dos atores com seus personagens e o público: Alexandre Scapini, interpretando Eneida; e Pitty Sgarbi, Sandra. Então, no encontro desses dois, partimos para os aspectos mais interessantes da produção. Não é um programa de televisão, mas um espetáculo de teatro. A relação entre todos os elementos, ora de um sistema, outra doutro, no entanto, nos conduz para o universo do programa de auditório. Um programa como esse é de TV quando é exibido na TV. Quando está sendo gravado, é teatro. “O Programa da Eneida”, assim, falsamente aponta para a TV e, investindo ainda em mais jogos falsos como esse, nos concede a graça de um ótimo e elegante divertimento.
Eneida aponta para uma apresentadora de programa de TV, mas não se parece de todo com uma. Ela tem um problema visível no olho direito (não consegue abri-lo, como faz com o esquerdo), é atrapalhada demais (se perde na organização do programa, modifica as informações que dá várias vezes, fala constantemente com a produção, ...) e tem atitudes que fogem do normal em relação aos seus psedo-pares. Por exemplo, ao fazer a propaganda de uma cerveja, ela mergulha dos dedos no copo e passa no pescoço para expressar a refrescância que a bebida oferece. Tudo isso, no entanto, compõe o que há de melhor nesse todo espetacular: o espectador vive um jogo de repertório, o riso vem desses contrastes, desses imbricamentos, dessa idéia: “Eu sei que não pareço o que gostaria de parecer, mas aceite brincar comigo mesmo assim!” Jeffie Lopes está, ao mesmo tempo, na iluminação/sonorização tanto do programa de TV (ficção) como do teatro (situação atual). E quando ele fala com Eneida também está falando com o ator que a interpreta.
A personagem Sandra é viva em cena desde o início quando indica ao público o lugar de sentar, recolhendo os ingressos na entrada. Ela é sempre visível, mas a sua postura em falar baixinho, permanecer longe da luz e pouco se movimentar em oposição ao exato contrário quando estamos no “intervalo comercial” estabelece a estrutura e nos convence a fingirmos não vê-la quando um novo bloco do programa inicia.
O roteiro é todo pautado nessa necessidade de nos convencermos de que algo é algo embora não pareça ser algo. Há, por exemplo, um “momento de reflexão” em que Eneida lê uma frase para os telespectadores. As frases lidas nesses momentos, no entanto, são ditos populares que, embora cheios de sabedoria, não oferecem ao ouvinte a profundidade que se espera. “Água mole, em pedra dura, tanto bate até que fura” seria um exemplo que dialoga convergentemente com outros sistemas menores dentro da mesma narrativa. O martelo usado por Eneida na hora do Leilão, bem como os valores absurdos cobrados pelos produtos seguem na mesma linha das mensagens. O funil feito com garrafa pet e papel crepom acompanha a mesma concepção. E assim por diante: em todos os aspectos, “O Programa da Eneida” é uma aula de como produzir dramaticidade, isto é, entrelaçamento narrativo, num espetáculo de comédia dissertativo.
O que faz a peça começar e terminar é o início e o fim do programa, em que cada bloco é um argumento a mais na construção desse texto. Não há uma curva, um conflito potente, um ápice... A sucessão de quadros avança o tempo e estabelece a união das situações que bem poderiam estar organizadas de outra forma. O centro é mesmo Eneida e apenas ela: a tese a ser desenvolvida.
Alexandre Scapini está nada menos que excelente nesse personagem criado integralmente por ele e já assistido por milhares de pessoas não só por vias teatrais, mas também através do Youtube. Tendo reforçado o processo criativo em espetáculos de diversos formatos, o ator exibe, hoje, domínio sobre ele “de uma maneira” primorosa. Pitty Sgarbi, sem dúvida, uma das poucas atrizes a sempre ter sucesso na exploração de múltiplas caricaturas, nada deixa a desejar e só acrescenta bons valores. Os aspectos plásticos igualmente.
É verdade que a energia baixa em certo ponto da produção. Seria porque as pessoas simplesmente já cansaram de tanto rir? Penso que é possível haver elementos a crescer que venham do espetáculo e não da assistência. Em certo momento, a relação com o programa de TV fica fluída demais e quase não acreditamos no jogo proposto inicialmente. Os intervalos não são matematicamente regulares, a luz e a música nem sempre entram na hora, a brincadeira “Quem quer ser Eneida?” não acontece... Nesses momentos, o jogo perde em força, o espetáculo perde em amarração porque o se desequilibra: fica teatro demais e programa de TV de menos.
“O Programa da Eneida”, contudo, tem grandes patrocínios e voltará em algum canal. O seu público fiel lotou a sala da Casa de Teatro no horário das 23h45min e saiu de lá com problemas faciais de tanto se divertir, o que aqui convida outros públicos para assistirem em outras oportunidades. Enquanto isso não acontece, a internet disponibiliza gotas dessa ótima produção tão rica teoricamente quanto eficaz e valoroso meio de entretenimento.
1 Comentário:
Radiante e feliz pelo sucesso de meu irmão!
Postar um comentário