1 de nov. de 2010

Wonderland e o que M. Jackson encontrou por lá

Foto: Patrícia Dyonísio

Excelente!

Wonderland e o que M. Jackson encontrou por lá é, para mim, até agora, o melhor espetáculo produzido por Porto Alegre nesse ano de 2010. É extremamente interessante, bastante rico e, talvez, um dos mais importantes que a capital gaúcha teve nesse período. E aplaudi-lo não é uma gentileza, mas um dever. Um dever que se justifica na análise que se tentará fazer aqui, essa um passo além do aplauso já certamente dado.

Após anos de pesquisas, O Grupo Teatro Sarcáustico proporciona a cidade uma peça que dura três horas. Nela a relação com o espectador é raramente não plena e a relação com o teatro é não só bastante próxima, como também enriquecedora. O teatro enriqueceu a peça, mas também a peça  faz o teatro avançar. No primeiro momento, falaremos da primeira relação, para depois, tratarmos da segunda.

O espetáculo começa bastante acanhado frente ao seu público. A cena inicial é medrosa, com um ator sob pernas falsas a equilibrar-se num texto pantonoso. A primeira música é cantada de um jeito quase envergonhado, atrás de um véu que semi-esconde o grupo de atores. A vida de Michel Jackson começará a ser contada e é muito devagar que começamos a dar atenção a quem  conta essa história.

Eis que uma nova cena acontece. “Isso é Wonderland” é cantado e dançado num exemplo de pujança que raramente atinge tanta qualidade nessa cidade. Sarcáustico dá ao seu público a grandiosidade que tanto gosta de apregoar, mas que, até então, nunca de fato se tinha visto. O grupo ganha o público e o conserva junto dele em todo o primeiro ato. Cena após cena, o novo espetáculo fica ainda melhor: de um lado a peça tem uma conversa interessantíssima com o seu público. De outro, o público se sente confortável e alegremente preso a ela, sendo incluído não só tematicamente como também fisicamente. A cidade que abriga a peça está dentro dela e o resultado não poderia ser melhor. O primeiro ato termina e, no intervalo, anseia-se pelo recomeçar urgente.

A peça que estava próxima ao seu público se distancia, virando as costas a ele quando o intervalo termina. O segundo ato começa distante, difícil e lento. As possibilidades de relações ficam difíceis porque a dramaturgia exige que você saiba coisas para conversar com ela. Se você não sabe, ou não sabe bem, então, se sente excluído, diminuído e, consequentemente, desinteressado. Felizmente, a situação não dura muito. Uma cena de julgamento acontece e todos, mesmo sem saber nada sobre Michel Jackson, conhecem como ela funciona. Os atores mexem no público e o desorganizam. O interesse começa a voltar e a cena é tão ágil e tão competentemente construída e interpretada que dá prazer em voltar a prestar a atenção. O tempo passa rápido e o final chega, primeiro, terno, delicado, depois, vibrante, irônico e potente. O papo termina, após três horas, com um gosto saboroso na boca: o interlocutor fala muito bem e é ótimo estar com ele.

A relação da peça com o teatro, isto é, da parte com o todo ou da fala com a língua é bastante profícua, o que, por si só, já justificaria a frase de abertura desse texto.

A dramaturgia de Daniel Colin e de Felipe Vieira de Galisteo é rica por se utilizar de metáforas quase sempre acessíveis, por recorrer a imagens que sejam simbólicas, por criar situações que propiciem à cena momentos de interação e movimento.

Figurinos, desenho de luz e cenário são aspectos tão bem empregados na encenação que se misturam com ela como se fossem, como a relação entre os atores, parte essencial da obra. O mesmo, com ainda mais elogios, pode ser dito sobre a trilha sonora, seus usos e conexões com o todo, estando em nenhum momento desnecessários, mal cuidados ou exagerados. Wonderland tem os elementos coadjuvantes da encenação tão bem afinados que é difícil vê-los em separado.

É visível a hierarquia dos personagens pela divisão deles no elenco. Daniel Colin (que também é o diretor) não tem um personagem que protagoniza na dramaturgia, mas, na encenação, é, em todos os momentos, o protagonista. Pela forma como o ator está entregue à cena, mas também pelo jeito como ele “rouba o foco”, é difícil olhar para os demais quando ele está em cena, o que nem sempre é positivo. Ele encabeça o coro do espetáculo, esse muito bem organizado e responsável por boa parte dos grandes momentos da peça. Rodrigo Marquez, como Prince, está excelente. O ator consegue, nesse trabalho, mostrar força e intenções, além de mobilidade e limpeza de gestos. Sua construção faz vencer positivamente o duelo entre o vilão e o mocinho, latente na produção como um todo, dando ao espectador a certeza naturalista (todos somos mocinhos e vilões), e adequada que se deve ter do seu personagem. Duelo parecido com esse vence Tatiana Mielczarski: seu Michel Jackson correria o risco de ser melodramático estivesse em mãos menos talentosas. O texto final é sensível e tocante, o que dá a produção um final excelente. Ricardo Zigomático tem uma construção corporal digna de nota uma vez que seu Michel Jackson atua num plano em que o cantor real já vivia em estado quase fictício, de tão midiatizado, quando naturalmente vivo. É muito difícil recriar todos aqueles movimentos corporais que tornaram esse astro do pop tão famoso e o ator consegue essa façanha. No entanto, a maior surpresa positiva desse trabalho é Rossendo Rodrigues. Com sensibilidade e carisma, o ator emprega o seu talento em nos fazer apaixonar por Michel Jackson, um cantor muito conhecido no mundo, mas que nem todos na plateia, tenho certeza, conheciam e gostavam como o grupo responsável pelo trabalho. É Rodrigues quem nos faz enternecer e garante a nossa atenção já ganha pela cena da chegada à Wonderland de que já se tratou.

Quanto a direção, cujo mérito é imenso, há que se destacar a forma como proporciona às artes cênicas de Porto Alegre um espetáculo que é, ao mesmo tempo, hermético em termos de logística, tão fluído em termos de fruição. De um lado, há muitos cenários, ambientes, situações. Há música, há dança, há projeções e há o bom e velho teatro intimista também, numa salada que só mãos talentosas e hábeis poderiam produzir sem causar indigestão. De outro, há a valorização do momento, da improvisação, da mobilidade que torna o público parte essencial da história que está sendo contada. “Wonderland”, sem dúvida, é não só um marco na carreira do Grupo Teatro Sarcáustico, como também é o primeiro grande e bom trabalho de Colin.

Há, no entanto, que se tratar dos momentos em que o ritmo do espetáculo cai. E são dois grupos de situações: as cenas com o Agente e o início do segundo ato. As cenas de diálogo entre o Agente e Michel Jackson (interpretado por três atores diferentes em cada parte) são importantes e ricas, mas longas. Em todas elas, sente-se, em determinado momento, que não há mais nada novo para tratar, nenhum avanço e, mesmo assim, elas continuam num desequilíbrio perigoso. No segundo ato, as sequências de Sandy e Júnior, Tim Burton e Monstro são pautadas sob um repertório cultural que, se o público previamente não tem, encontra, na peça, quase nenhum instrumento de relação. E, sem fazer relações, a comunicação perde a liga de que precisa e não se estabelece.

Como um todo, o espetáculo dialoga com a brasilidade teatral ricamente encontrada no Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa: há pessoas peladas, palavrões, ironias e imagens cênicas ricas em metáforas e potencialidades. O lugar escolhido não é um teatro com palco italiano, mas um corredor que se transforma. E a forma escolhida é híbrida e, ao mesmo tempo, equilibrada como dificilmente outro exemplar se vê. A história de Michel Jackson, a fábula Alice no país das maravilhas e questões pertinentes ao teatro brasileiro e gaúcho se misturam na questão do conteúdo, em que se discute a midiatização e o culto ao pop (Madonna e Lady Gaga inclusas). Todos esses aspectos fazem com que a produção resultante faça avançar o teatro de que se serve o grupo proponente.

O Grupo Teatro Sarcáustico ganhou verba pública do Fumproarte para produzir esse trabalho. Se como crítico já destaquei acima os valores da produção, como cidadão pagante dos impostos que, entre outras coisas, sustentam esse fundo (que precisa aumentar para que mais grupos a ele tenham acesso), envio à Secretaria Municipal de Cultura o meu muito obrigado e ao Grupo o meu parabéns por ter usado tão valorosamente a verba, com muito suor, obtida.

*

Ficha Técnica:
Dramaturgia: Felipe Vieira de Galisteo e Daniel Colin Direção
Geral: Daniel Colin
Assistência de Direção: Tainah Dadda
Direção de Atores: Maico Silveira
Atores: Cláudio Loimil, Daniel Colin, Éder Ramos, Guadalupe Casal, Fernanda Marques, Priscila Gracez, Renata, Teixeira, Ricardo Zigomático, Rodrigo Marquez, Rodrigo Shalako, Rossendo Rodrigues, Tatiane Mielczarski, Thais Fernandes, Ursula Collishonn
Trilha Sonora Original: Arthur de Faria
Preparação Vocal: Simone Rasslan
Coreografias: Diego Mac
Vídeo Designer: Paula Pinheiro
Figurinos: Daniel Lion
Cenografia: Elcio Rossini
Maquiagem: Nikki Goulart
Iluminação: Carol Zimmer
Design Gráfico: Pedro Gutierres
Assessoria de Imprensa: Bruna Paulin
Diretor de Produção e Divulgação: Rodrigo Marquez

5 Comentários:

DIEGO FERREIRA disse...

Rodrigo, belo comentário sobre o espetáculo. Acompanho sempre o teu blog e percebo que você está ficando mais direto em relação a análise dos espetáculos, e na minha opinião isso é ótimo.
Abraços!
www.escapeteatro.blogspot.com

Rodrigo Monteiro disse...

Obrigado, Diego! Adicionei o seu blog na minha lista também. Sinto o mesmo que você. Que graça tem viver se não crescemos, não é mesmo?? E eu te garanto que só cresci e continuarei crescendo graças às críticas que eu recebi.

Um abração,

Rodrigo

Morgana Kretzmann disse...

Querido...
Me anima ainda mais ver o espetáculo agora. Estamos com uma boa safra, para esse segundo semestre de 2010, e com certeza Wonderland faz parte das prioridades a serem vistas.
Beijos
Mogui.

José María Souza Costa disse...

Extraordinário comentário comentário vc faz sobre o espetaculo Muito interessante o seu blog estou lhe convidando a visitar o meu blog e se possivel seguirmos juntos por eles Estarei grato esperando vc lá
www.josemariacostaescreveu.blogspot.com

Miguel Piaccini Filho disse...

Achei o espetáculo cansativo. O primeiro ato, depois de dez minutos,não acrescenta nenhuma nova informação. Michael já chegou a Wonder e o sistema fala logo o que deseja dele. A cena do chá não atinge o publico mediano geral. O segundo ato melhora. O momento que emociona é a "lavagem" do astro e sua retirada ao som de Smile, única múnica bem cantada. Mesmo assim parabéns pela investida.

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