O dia desmanchado
Vsevolod Meyerhold (1874-1940) reage ao teatro realista de Danchenko e de Stanislavsky explorando no teatro as influências do simbolismo, do cubismo, do impressionismo e, depois, do expressionismo. Com isso, o jovem expoente das artes russas estabelece uma nova relação com o público teatral: todos são criadores, não apenas o elenco de atores. Elimina o cenário, dá maior importância para a luz e, pelo que é mais conhecido, investe mais na forma do que no conteúdo, estetizando o teatro russo daquele início de século XX. A técnica da biomecânica, cujo repertório ainda hoje é estudado (e deve ser valorizado), consiste no exagero dos gestos, no aumento absoluto da tensão em cada movimento, na exploração do corpo do ator como uma peça a mais na máquina teatral. O corpo do ator não está a serviço do texto, mas o constrói, o expressa tanto quanto a voz do ator, podendo ser essa, suprimida da encenação sem que haja perda informacional. Evoluindo da Commedia Dell Arte e do Teatro Oriental, da pantomina e do grotesco, o ator, nesse contexto, é a materialização da força que expulsa a idealização e não representa a realidade, mas a reflete.
O Grupo Teatro Torto, dirigido por Tatiana Cardoso, traz ao palco de Porto Alegre o, antes de tudo, lindo espetáculo “O dia desmanchado”, monólogo cênico interpretado por Marcelo Bulgarelli, aluno do mestre russo Gennardi Bogdanov, discípulo em segunda geração de Meyerhold. A peça consiste num dia de um homem normal num plano não convencional. O seu dia não tem um número de horas que se repete, mas um número que se desmancha, fazendo com que haja mais amanheceres do que anoiteceres, com que situações se repitam ou não terminem, permitindo que sonhos e realidades se misturem e nunca se definam. O tempo, assim como o espaço, é fluido. O que vemos no palco é como um reflexo de espelho veneziano, torto, distorcido, com configurações próprias, sem compromisso total com o objeto refletido.
O dia desmanchado é uma alternativa ao que reflete. Usa algumas cores, algumas formas, estabelece uma certa reflexão, mas investe em suas próprias realidades. Bulgarelli está nada menos que excelente, nesse espetáculo que tem uma direção de arte tocante. As cores e as texturas dispersas no cenários e nos figurinos fazem lembrar um não-sei-o-quê de imaginário, de algo que não é desse mundo, mas conversa com ele, está nele, é imanente a ele. O espectador tem sua sensibilidade para o tom, para o movimento, para o ritmo fisgada: o espetáculo força quem o vê a dar algo de si, e esse algo não é racional. A trilha sonora de Jackson Zambelli e de Sérgio Olivé remetem a uma melancolia de um tempo não vivido, mas sonhado. E sonho e idealização não são a mesma coisa: em O dia desmanchado nem tudo são flores.
O personagem é construído por Bulgarelli em todas as suas partes: cada músculo foi muito bem treinado e cada movimento é domado pelo seu (excelente) ator, que conhece a si próprio a ponto de não deixar um só milímetro ou grama escapar-lhe do projeto cênico. O personagem corre, dorme, pula e caminha dando ao público ver cada mínimo gesto desses caminhos. O conteúdo se esvanece, interessa a quem vê a expressão que, de tão bem articulada, provoca uma quebra na realidade, essa, então, deixada do lado de fora do teatro, sem que haja a aristotélica catarse. A fruição é plena no sentido de que a peça hipnotiza a plateia.
A cena de aviões jogados ao anoitecer emociona. Outros momentos fazem rir. A reação espontânea, vinda da proposta imagética também construída pela assistência, é tudo o que se quer. Tatiana Cardoso, também diretora de As bufa, mais uma vez, é magnífica ao presentear a cidade com tão belo trabalho. É preciso reagir ao mundo que encontramos lá fora, depois de aplaudir fortemente a produção, e sair para o dia normal que conhecemos e que também se desmancha sem que percebemos (sempre).
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Ficha técnica:
Direção e Dramaturgia de ações: Tatiana Cardoso
Atuação: Marcelo Bulgarelli
Assist. Direção e contrarregragem: Aline Marques
Trilha sonora original: Jackson Zambelli e Sérgio Olivé
Bandoneón: Mano Monteiro
Figurino: Teatro Torto
Cenário e Objetos: Maíra Coelho
Iluminação: João Marcos Dadico
Formação musical: Simone Rasslan
Arte visual: Ernani Chaves e Viviane Martins
Rádio: Heitor Schmidt
Produção Executiva: Simone De Dordi
Produção: Marcelo Bulgarelli e Simone De Dordi
Realização: Teatro Torto
3 Comentários:
Acredito que muito mais do que dialogar apenas com o ator, tudo que envolve os acontecimentos em cena dialogam conosco, público que faz parte.
Em nenhum momento o dia - que se repete, que se desmancha e repente mais uma e outra vez - nos coloca fora. Pelo contrário, cada vez mais nos envolve e abraça pra esse dia que é tão como os nossos.
O trabalho está muito lindo mesmo.
Gostei do que tu escreveu, Rodrigo, e acho que falaste com propriedade.
[...]
e o mundo conversa com tudo isso!
=D
Assistindo "O dia desmanchado" ontem me fiz uma pergunta: o que me incomodou neste trabalho? É um bom trabalho? Sim. Mas hoje, relendo o programa a resposta me veio muito clara. A forma pesquisada e estudada pelo ator está à frente da peça, e o espetáculo existe para que isso apareça, mais que o lindo conto apresentado. E a certa altura cansa.Grandes espetáculos usam de certos conceitos e técnicas para criar uma obra maior a quem o assiste, e a beleza está aí: na transparência do que foi pesquisado e que dilui-se no todo da peça. E aí a diretora pecou. O meio do espetáculo é lento, arrastado, com partituras incompreensíveis e de leitura apenas para o próprio grupo que as criou. O público esforça-se para compreender mas fica na tentativa. Quando o espetáculo é "mais claro", some o ator e aparece a ação e daí retoma-se o interesse. A cena dos aviões, com o ator parado, é o mais bonito momento.
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