7 de nov. de 2010

O animal agonizante

Foto: Júlio Appel

Para Roth

David Kepesh aparece pela terceira vez em O animal agonizante, romance publicado em 2001, pelo escritor norte americano vivo mais importante, Philiph Roth (1933). As outras duas vezes foram nos romances The Breast (1972) e The professor of desire (1977). Em Porto Alegre, ele aparece na pele de Luiz Paulo Vasconcellos, grande professor e coordenador do Departamento de Artes Dramáticas da UFRGS, além de um dos melhores e mais importantes diretores da história do nosso estado. O espetáculo homônimo é uma versão livremente inspirada no romance dirigida por Luciano Alabarse, nacionalmente conhecido como diretor gaúcho e internacionalmente lembrado como o idealizador e coordenador do Porto Alegre em Cena. O texto é um monólogo em que o personagem, um professor universitário, expõe seus sentimentos sobre uma aluna. Ele fala consigo mesmo, fala com o público, fala sozinho, mas, sobretudo, constrói imagens. Consuela Catillo é uma filha de cubanos com quem o professor teve um caso, findas as aulas. A conquista, o relacionamento, o sexo, o ciúme, o fim, o desfecho são situações dramáticas descritas pelas mãos hábeis e já muitas vezes premiadas de Roth. Alabarse/Vasconcellos sabiam que estavam diante de algo bastante desafiador. Se o melhor de Roth é o modo como ele descreve, como atualizar isso usando os signos teatrais, esses tão diferentes da literatura?

A única coisa realmente importante na hora de atualizar algo é saber o como isso será feito. Dentre as muitas, mas finitas, possibilidades do artista, cada escolha é sempre de total responsabilidade dele. E, sendo Roth conhecido pela forma como ele trata sobre sexo, sobre desejo, sobre excitação e suas circunstâncias diante da diferença de idades, da doença, da morte, das convenções sociais, qualquer gesto no sentido de diminuir a importância disso levaria a obra, que também já foi um filme (Elegy, 2008) para um lugar que não é digno dela. Felizmente, não é isso que acontece. Em cena, o que a plateia vê é muito mais retórica do que interpretação: os signos teatrais foram trabalhados bastante modestamente, timidamente, mas não de forma pobre. Há pouco espaço para o teatro em O animal agonizante. Mas o que há foi plenamente utilizado.

As palavras de Roth são, como já se disse, as coisas mais importantes da obra. Poucos atores na nossa cidade sabem valorizar as palavras tão bem como Luiz Paulo Vasconcellos. (Marcelo Adams, José Baldissera, Mauro Soares são outros.) Quando bem dita, a fala se torna um ato. Há nela, assim, duas potencialidades cênicas importantes: o ato de dizer e o ato que é dito. Vasconcellos diz as palavras com uma dicção perfeita e uma tonalidade que, sem importar o volume, o teatro inteiro compreende cada sílaba do texto sem faltar uma só. Além disso, bem dirigido, seu texto tem corpo, tem cor, tem intensidade.

A interpretação de Kepesh se desenha sem formas fixas. O personagem é livre e se mostra de várias maneiras. Diante de uma cultura invejável, o professor fictício é, no fundo, um animal selvagem vítima de seus impulsos. Vasconcellos, embora ainda não tenha conseguido se desvencilhar de seu sotaque carioca e tenha explorado pouco ou nada a sua tonalidade a fim de encontrar a voz de Kepesh, se utiliza do ritmo, da métrica para construir as imagens que belamente constrói, mantendo o seu jeito natural de falar tantas vezes ouvido nos palcos gaúchos, tanto na boca de personagens como nas palestras e aulas que dá. Às vezes, rápido, às vezes, devagar, dançando ou completamente preso em si, o ator se utiliza desses instrumentos vocais para nos fazer ver a grande quantidade de nuances que há em cada passagem da história que, sozinho, conta. A produção acerta por ser humilde, por ser discreta.

Uma poltrona, um piano, uma mesa de trabalho, uma mesa de centro, uma cadeira e um telefone. Os movimentos cênicos acontecem nesse espaço nobre, muitas vezes, tido como a caverna onde esse animal se esconde. É quando o espectador vê o ator alternar-se pelos ambientes, cavando buracos e descansando. Pouco histriônico, Vasconcellos sabiamente se coloca abaixo do texto, preocupando-se em oferecer muito mais de Roth do que Alabarse, o que é o maior ganho dessa produção.

A mesma modéstia tem Luciana Éboli, atriz que interpreta Consuela. Sua figura vem menos para aparecer e mais para aliviar o espectador da tarefa de tanto imaginar. É fundamental que Consuela seja materialmente visível para que o espectador possa acompanhar a história com mais liberdade. Le grand nu, de Mondigliani, é a inspiração de Roth, e o jeito Kebeshe de ver Castillo. E atriz, em cena, ocupa eficientemente o seu lugar.

Na noite de estreia, notam-se dois desacertos: a interpretação de Thales de Oliveira e a trilha sonora, pois ambos quebram o paradigma e avançam o limite que dá sucesso aos demais elementos arregimentados. Oliveira, ao interpretar o filho, numa situação difícil, de desabafo contra o próprio pai, grita, esperneia, polui. O comedimento que sobra até então em tudo, nessa construção falta, o que prejudica a cena como um todo diante de nós que olhamos mais para os seus movimentos do que prestamos a atenção no texto que o jovem ator diz.

No entanto, é a trilha sonora, como já aconteceu em Édipo Rei, o maior equívoco de Alabarse. Lascia Ch’io Pianga, da ópera Rinaldo (1711), de Handel (1685-1759), e Aquarius, do musical Hair (1967), por serem bastante simbólicas, aliviam as tensões do texto, duelando com ele que não quer ser pasteurizado.

A lição de sucesso dessa produção vem do fato notório de saber curvar-se. Artistas menos experientes e mais egocêntricos teriam esforço em mostrar suas marcas, mostrar suas vozes, seus pesos e o que sabem/aprenderam no palco de O animal agonizante. Aqui o resultado mostra que o processo foi privelegiar bem mais o fazer teatral dentro de seus limites desafiadores, do que privilegiar-se.Talvez por isso nos sentimos tão a vontade em sorrir e em se emocionar com essa história tão bem contada.

*

Ficha técnica

Elenco:
Luiz Paulo Vasconcellos………David Kepesh
Luciana Éboli…………………………Consuela Castillo
Thales de Oliveira…………………Kenny Kepesh

Adaptação e cenografia: Luciano Alabarse
Cortes e ajustes: Luiz Paulo Vasconcellos
Iluminação: Cláudia de Bem
Trilha sonora: Moysés Lopes
Seleção trilha: Luciano Alabarse
Figurinos: Equipe
Design gráfico: Dídi Jucá e Fernando Zugno
Fotos: Júlio Appel
Operação de luz: Cláudia de Bem e João Dadico
Operação de som: Moysés Lopes
Produção executiva: Fernando Zugno e Miguel Arcanjo Coronel
Coordenação de produção: Luciano Alabarse

3 Comentários:

Unknown disse...

gosto muito do seu blog, mas acho desta vez quem se equivocou foi voce. as musicas da peça sao lindas. acho que o luciano acertou em cheio neste ponto. e quanto ao ator thales de oliveira, digo o mesmo.nao o conhecia, mas achei ele maravilhoso.

Rodrigo Monteiro disse...

Olá, Caio! Que bom que você teve uma visão diferente da minha. Certamente muitos tiveram e têm, tanto de mim, como, também, aliás, de você. Creio que o Thales e a produção como um todo ficará feliz em saber que você teve essa avaliação. Afinal, o teatro é feito para todos e não para mim.

Continue participando do blog. Serás bem vindo!

Abraços,

Rodrigo

Iuri Wander disse...

Também acho que tu te equivocou. Como tu diz sempre, é bom que várias pessoas com visões diferentes comentem.

Não gostei dos coadjuvantes, muito inseguros (talvez seja o dia que eu tenha ido ver). Achei o Luiz Paulo meio arrastado.

As partes "engraçadas" são piadas fraquissimas, e todo mundo ri quando ouve as palavras "pau" e "foder".

abração

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